Ensaios
Raízes
forâneas do pensamento jornalístico brasileiro
Por
Richard Romancini*
O
conjunto de textos reunidos por Marques de Melo e Viana (2003)
sobre as chamadas "raízes forâneas" do
pensamento jornalístico brasileiro representa uma contribuição
importante ao estudo da atividade no país, ao esboçar
as teorias e problemáticas que configuram este campo
de pesquisa, sob a perspectiva da inevitável incorporação
do conhecimento produzido no exterior.
Nesse
sentido, o primeiro ponto que deve ser destacado é a
própria proposta de uma síntese sobre os trabalhos
estrangeiros (principalmente ligados aos âmbitos europeu,
norte-americano e latino-americano) que teriam tido mais impacto
na formação da reflexão autóctone
sobre o jornalismo.
A
contribuição européia
Um aspecto particularmente positivo e curioso apresentado pela
coletânea é a tradução do trabalho
Os relatos jornalísticos de Tobias Peucer, feita por
Paulo da Rocha Dias. É a oportunidade de conhecer, em
primeira mão, um texto que representa uma pioneira investigação
sobre o jornalismo, sua natureza e historicidade. Assim, este
texto, datado de 1690, possui um caráter duplo, à
visão contemporânea: documenta o que seria o jornalismo
na época em que escreveu o autor, ao mesmo tempo em que
capta aspectos que parecem ser essenciais a esta atividade.
Com efeito, muitas das passagens do texto possuem uma atualidade
bastante notável. É difícil não
ver uma antecipação da técnica do "lead"
em trechos do parágrafo XXI, por exemplo. Ainda atual
é a recomendação de que a linguagem usada
pelos periódicos seja "clara e concisa".
É
evidente também a séria tentativa de inscrever
os fenômenos jornalísticos no campo de estudos
acadêmicos, inaugurando uma reflexão sistemática
sobre os mesmos, a partir do embasamento dos autores clássicos.
Estes são apropriados de modo a substanciar a discussão
sobre a relação entre os periódicos e a
História. Peucer discute, assim, aquilo no qual estas
áreas se assemelham e se diferenciam. O estudioso alemão
procura também descrever o que são os relatos
jornalísticos, relacionando-os à exposição
de temas históricos e de interesse das pessoas. Sua causa,
o que motiva a realização dos relatos, estaria
ligada, tanto à curiosidade humana, quanto à busca
de lucro, por seus produtores e comerciantes. Comenta Peucer,
diferenciando os relatos da História, no parágrafo
XXIII, que "os relatos jornalísticos não
costumam [se] escrever tendo em vista a posteridade senão
tendo em vista a curiosidade humana".
Digno
de nota ainda é a justificativa feita pelo estudioso
alemão da censura (parágrafos XVII e XVIII). Trata-se,
pois, de um texto datado que possui interesse, em si mesmo,
como documento histórico. Ele mostra, afinal, a antiguidade
dos estudos sobre o jornalismo e a preocupação
que a atividade ensejou - há pouco mais de dois séculos
da imprensa de Gutenberg -, a ponto de merecer um exame acurado
como o feito na tese de Peucer. A primeira, ao que parece, discussão
no âmbito acadêmico do jornalismo - um texto realmente
fundador.
Já
o primeiro trabalho de Marques de Melo (1983) inserido na coletânea
realiza, particularmente na sua primeira parte, um mapeamento
do campo de estudos de jornalismo a partir do momento em que
esta área tinha de fato alcançado maior inserção
no ambiente acadêmico, ou seja, a partir do século
XX. O autor salienta a baixa precisão conceitual alcançada
a respeito do tema da "comunicação coletiva",
atribuindo este fato à configuração mutável
da sociedade e do próprio objeto de estudos. Com efeito,
havia uma forte tendência a reduzir a análise acadêmica
do jornalismo à imprensa, quando outros meios (rádio,
cinema e TV) "já haviam rompido o monopólio
da imprensa na reprodução e circulação
das informações da atualidade" (Marques de
Melo, 1983, 9).
A
despeito desse problema, o autor localiza no pensamento de Otto
Groth uma fundamentação mais sólida para
apreender a identidade do objeto de estudo. A formulação
do estudioso alemão está relacionada não
a um meio de comunicação único (como a
imprensa), mas a parâmetros da "totalidade jornalística":
periodicidade, universalidade, atualidade e difusão (Marques
de Melo, 1983, 14). Estas categorias são aprofundadas
no texto de Bueno (1972) que irá analisar a contribuição
de Groth ao campo de estudos do jornalismo, a partir de idéias
contidas no trabalho La ciencia periodista de Otto Groth, de
Angel Faus Belau.
Inicialmente
Bueno mostra a trajetória biográfica de Groth
e os esforços feitos por ele para que a "ciência
do Jornalismo" obtivesse reconhecimento. De acordo com
o autor, Groth procurou não apenas vislumbrar uma nova
ciência, mas entender a relação entre ela
e as demais, bem como delimitar os princípios teóricos
que poderiam justificá-la. A ciência do Jornalismo
seria "um imperativo do próprio momento cultural".
Aspecto que não faria, porém, que ela prescindisse,
como uma pré-condição de existência,
de métodos e objeto próprios.
Assim,
o objeto é constituído, segundo Groth, pelos jornais,
revistas e folhas, conjunto denominado "periodika".
Tal conjunto seria próprio a um novo campo, "na
medida em que não foi estudado, em sua totalidade, por
nenhuma outra ciência, a não ser como documento
auxiliar, ainda que, em muitos casos, essencial" (Bueno,
1972, 8). Quanto ao método, Groth é menos preciso:
"Acredita que, determinado o objeto, estabelecida a área
de estudo, o método surja espontaneamente como imperativo
e uma necessidade do próprio processo de investigação",
conforme descreve Bueno (idem, 9).
Porém,
a busca de um princípio que sirva para caracterizar a
nova ciência é, pelo contrário, bem detalhada.
E resultará na síntese de elementos que compõem
os "periodika", já apontadas no texto de Melo,
ou seja, a periodicidade, a universalidade, a atualidade e a
difusão que caracterizam o jornalismo.
São,
por conseguinte, termos de uma ciência para a qual Groth
formula leis, que têm, como nota Bueno, um caráter
ideal, motivo maior das críticas à proposta de
Groth. Aspecto este que se relaciona com a própria idéia
exposta por Melo sobre a natureza mutável do espaço
social e do jornalismo que podem implicar em reestruturações
teóricas.
Todavia,
as características dos "periodika", conforme
propostas por Groth e expostas no texto de Bueno, possuem um
alto nível de propriedade ao campo do jornalismo, razão
pela qual ensejam definições acuradas sobre cada
um dos aspectos estudados, tornados verdadeiros conceitos com
grande potencial explicativo a respeito do jornalismo. Assim,
por exemplo, a "periodicidade" é vista, tanto
em relação ao senso mais comum de intervalo de
publicação de um periódico, quanto à
adaptação a um "ritmo de vida", ligado
a fatores extra-jornalísticos (problemas econômicos,
sócio-culturais e psicológicos). Este ajuste desempenha
papel fundamental no êxito do periódico e no papel
que ele desempenha junto aos leitores, nota Bueno (1972, 16).
Outra
problematização importante estabelecida pelo autor
é a diferença entre a "atualidade" e
a "novidade". Enquanto o "atual" está
diretamente relacionado à questão temporal, o
"novo", não, pois se vincula a algo que não
é conhecido, a uma dimensão qualitativa dos fatos.
Algo que pode relacionar-se a um tratamento da informação
de modo a apresentar uma máxima novidade (na interpretação,
por exemplo), sem que a atualidade esteja diretamente vinculada
ao simultâneo.
Seria
muito importante, para entender melhor a proposta de Groth,
que o trabalho de Melo e Viana (2003) incorporasse numa futura
edição algum estudo empírico que fosse
baseado na perspectiva deste autor (talvez do próprio).
No nosso entender, é um pouco difícil perceber
a passagem das características essenciais da atividade
jornalística - sem dúvida, importantes e descritas
com rigor e adaptáveis a outros meios além do
impresso - à chamada Ciência Periodística.
A
"totalidade jornalística" parece apreender
com precisão propriedades do objeto, entretanto no que
consistiria exatamente o trabalho de investigação
na Ciência Periodística? Se, como afirma Belau
(apud Bueno, 1972, 13) "el auténtico contenido de
la Ciencia Periodistica no está em la investiación
de los contenidos [dos meios] [...], sino em la investigación
de cada uno de los 'media', considerados como um todo",
o esforço desta ciência consistiria apenas em formular
leis como as propostas por Groth e verificar sua pertinência
no mundo empírico?
Enraizamento
acadêmico nos EUA e Brasil
O segundo texto do professor Marques de Melo (1975) reveste-se
de extrema atualidade, num momento em que a pós-graduação
no Brasil, e não só em Comunicação,
passa por questionamento e redefinições sobre
seu papel. Em determinados aspectos, como a contínua
reestruturação do nível de mestrado, parece
que é justamente o modelo dos EUA, apresentado no texto,
que os proponentes de mudanças têm em mente.
Nesse
sentido, a exposição de seus êxitos e dificuldades,
tal como aparece no texto, é de muita relevância.
Seria, ao mesmo tempo, útil um pós-escrito (num
eventual edição dos textos da coletânea
em livro, por exemplo) sobre o quanto a realidade descrita continua
igual.
É
também interessante notar que a estrutura de profissionalização
do jornalista, em termos acadêmicos, nos EUA difere da
nossa, podendo realizar-se também no nível pós-graduado.
Mas num modelo mais próximo daquilo que nós tendemos
a entender, e talvez implantar no futuro, de um "mestrado
profissionalizante" - ou, algo já tradicional entre
nós, uma especialização ou mestrado lato-sensu.
Estas categorias no Brasil, porém, estão num nível
mais baixo do que o da experiência americana. Nela, ao
que parece, são igualados, em termos de título,
os estudos mais voltados ao aperfeiçoamento profissional
e aqueles dedicados à formação do pesquisador.
Em
todo caso, como se vê, a experiência norte-americana
apresenta um modelo que ainda é em parte diferente do
brasileiro. Mas, por um lado, sem dúvida, ela teve influência
na constituição, no nível de graduação
principalmente, dos estudos de jornalismo no Brasil. Assim,
observa-se que a intensificação das formas de
transmissão de informações para o público
justificou alocar o estudo do jornalismo na plataforma mais
ampla da comunicação (vide Melo, 1975, 22) desde
a Segunda Guerra. Não por acaso, quando nos anos 60 se
estrutura no Brasil um sistema acadêmico no qual a articulação
entre ensino e pesquisa ocorre de modo mais orgânico,
o campo do jornalismo é alocado dentro das escolas de
Comunicação. Vale lembrar também outro
dado sócio-histórico importante: as demandas por
profissionais e especialistas em função de um
forte desenvolvimento da indústria cultural, conforme
ocorre nesta época.
Este
fato histórico permite perguntar: se desde esse momento
os modos de transmissão de informações
só se intensificaram, adquiriram novas formas e maior
complexidade, não seria o caso de manter o jornalismo
nessa estrutura? Este é um bom tipo de questionamento
que textos sobre a história de um campo permitem.
Voltando
especificamente à pós-graduação
e à questão da organização da pesquisa
acadêmica nos EUA, enquanto uma das matrizes do pensamento
jornalístico brasileiro, é possível acreditar
que o modelo de instituição interdisciplinar do
campo nesse país tenha tido influência no Brasil.
Esse aspecto também é muito interessante por ressaltar
como a estrutura de "programa interdisciplinar" colocou-se
para os pesquisadores em Comunicação, ou pelo
menos parte deles, logo como uma proposta capaz de permitir
um intercâmbio de saberes para o conhecimento mais efetivo
de uma dada realidade. É significativo que o exemplo
dado no texto (os estudos regionais, vide Melo, 1975, 23) seja
o mesmo que dá Wallerstein (em Para abrir as ciências
sociais), muito depois, ao falar sobre os pesquisadores que
procuraram fugir da departamentalização relacionada
mais com as lutas de poder e constituição de áreas
de mando do que com o conhecimento efetivo.
É
certo que o panorama de institucionalização da
pós-graduação em comunicação
e jornalismo nos EUA já era bastante avançado
na década de 70 passada. Mesmo que relembremos a dupla
natureza da pós-graduação neste país
(profissional e acadêmica) isso teve natural impacto na
liderança dos EUA na pesquisa na área, cujo pioneirismo
internacional é reconhecido. Nesse sentido, o verdadeiro
"programa" que Melo (1975) propôs ao destacar
aspectos potencialmente aplicáveis do sistema dos EUA
à realidade latino-americana revela-se um modelo, de
fato, em parte utilizado, e com bons resultados. É possível
pensar, pelos menos ou principalmente nas Universidades, em
aspectos como a questão da "organização
curricular" ou da "orientação interdisciplinar",
discutidas no texto, como idealizações que a comunidade
acadêmica em Comunicação que foi se formando
no Brasil adotou, é claro, mesclando tais parâmetros
à influência européia também.
Por
outro lado, seria interessante ter mais dados para saber qual
a situação de outras sugestões colocadas
pelo autor, como a formação de um espírito
de equipe dentro dos quadros docentes ou a abertura para profissionais
destacados - ponto talvez mais ligado a um modelo profissionalizante,
é verdade. É inegável, porém, que
a institucionalização dos estudos em Comunicação
no Brasil realizou-se e isso tem contribuído para legitimá-la
como um campo acadêmico de pesquisa, cada vez mais, através
de contínuos avanços quantitativos e qualitativos
na área.
Melhorar
e aprofundar essa conquista são questões que podem
ser melhor equacionadas com conhecimentos e apropriações
de experiências alheias, algo que o texto de Melo (1975)
propicia. Além de permitir avaliar uma "herança"
da qual aparentemente já partimos.
Matrizes
teóricas de Park e Lippmann
Se o texto sobre uma "raiz acadêmica" da pesquisa
em jornalismo aborda o contexto norte-americano sob o prisma
de sua institucionalização, constituição
de um campo de reprodução didática e produção
científica, os textos de Park (1976) e Lippmann (1976)
apresentam contribuições teóricas específicas
ao embasamento do estudo do jornalismo.
Ambos
estão preocupados com as peculiaridades do discurso jornalístico
dentro de um contexto social complexo. Iniciam, assim, uma tradição
de pesquisa na qual conhecimentos das Ciências Sociais
ajudam a esclarecer aspectos da relação entre
jornalismo (comunicação) e sociedade. Nesse sentido,
deve-se observar o próprio ambiente histórico
no qual os textos originalmente são produzidos, os anos
de 1940, quando o fenômeno da interação
através da mídia ganha muita relevância
numa sociedade como os EUA (o desenvolvimentos da indústria
cultural que no Brasil só ocorreria nos anos 60, nos
Estados Unidos, por motivos óbvios, precedeu o brasileiro).
Um
autor como Park, pois, é emblemático de uma corrente
de pensamento - a chamada Escola de Chicago - na qual o fenômeno
da comunicação, e naturalmente o jornalismo como
um de seus âmbitos, é uma via fundamental para
entender os novos modos de vida na sociedade. Como nota Rüdiger
(Introdução à teoria da comunicação,
1998, 14), para esta linha de reflexão, a "comunicação
representa um processo estruturado simbolicamente, constitui
o emprego de símbolos comuns com vistas à interação,
que funda a própria sociedade". Naturalmente um
desses símbolos intercambiados é o resultado da
produção jornalística, daí o interesse
no estudo de sua natureza e papel no processo de interação
social na sociedade moderna.
Cabe notar, ainda, que os textos postulam problemas fundadores
da discussão científica do jornalismo e sugerem
propostas férteis como hipóteses de pesquisas
localizadas em contextos histórico-sociais específicos,
ainda hoje.
Dessa
forma, Park irá, no marco de uma sociologia do conhecimento,
sustentar que notícia consiste numa forma de conhecimento
situada em algum lugar do continuum existente entre o "conhecimento
de" (prático, intuitivo, ligado ao senso comum)
e o "conhecimento acerca de" (sistemático,
lógico, argumentativo, científico). Quase como
se houvesse retomado Peucer, o autor distingue a notícia
da História. Ao discutir o modo de recepção
diferenciado daquela em relação a esta, Park lança
mão da categoria de "espírito do público",
ao qual a notícia se dirige. Isto ocorre porque a essência
comunicacional da notícia é a da breve informação
independente, capaz de interessar ao público, daí
que ela realize para este "as mesmas funções
que a percepção para o indivíduo"
(Park, 1976, 176).
Lippmann
apresenta uma idéia similar ao defender que as notícias,
por imperativos comerciais (têm que interessar o leitor
que irá comprar o jornal), procuram "aproximar"
a notícia do leitor, isto é, destacam aquilo que
nos fatos noticiados possa fazer com que o público "participe
da notícia, como participa do drama, pela identificação
pessoal... [...] Para poder entrar, é mister que encontre
um ponto de apoio familiar na história, que lhe é
fornecido pelo emprego dos estereótipos" (Lippmann,
1976, 197). As más condições de trabalho,
baixos salários de um grupo de operários, por
exemplo, residem fora da experiência direta dos que não
estão envolvidos diretamente no caso. No entanto, o "ato
notório" da greve, resultado eventual das condições
mencionadas, será mais facilmente capaz de ensejar a
notícia, mobilizando, muitas vezes, emblemas que remetem
a estereótipos comuns a respeito de greves.
De
outro lado, Lippmann reforça ainda o caráter central
do estereótipo na notícia ao propor uma explicação
sobre como o modo de produção incide sobre a forma
dos jornais. Para o autor, a padronização e a
estereotipia estão ligadas mais a uma tomada de decisões
que deve ser rápida e buscar o máximo interesse
do leitor do que a fatores políticos imediatos, pois
"no produto padronizado existe economia de tempo e de esforço,
bem como garantira parcial contra o malogro" (Lippmann,
1976, 196). De fato, retornando ao exemplo da greve de trabalhadores,
nenhum jornal se disporia a investigar e expor as más
condições de vida desse grupo, que podem estar
por trás de um protesto, antes de um evento como esse.
É naturalmente mais fácil recorrer aos espaços
que sancionam a notícia, produtores por assim dizer da
mesma, e capazes de registrá-la.
Este
aspecto leva a outra similaridade na reflexão dos autores.
Tanto para Park, quanto para Lippmann, a notícia possui
uma dupla natureza pois, por um lado, tende ao inesperado (àquilo
que possa contar com a curiosidade pública), mas, de
outro, este "inesperado" nunca o é tanto assim.
Como reflete Park (1976, 179) :
Os acontecimentos que fizeram notícia no passado, como
no presente, são realmente as coisas esperadas, assuntos
caracteristicamente simples e comuns, como nascimentos e mortes,
casamentos e enterros. São estas as coisas esperadas,
mas são ao mesmo tempo as coisas imprevisíveis.
São os incidentes e acasos que surgem no jogo da vida.
Em
Lippmann esta questão é observada de um ponto
de vista relacionado com a própria prática cotidiana
do jornalista. O autor nota que existe uma relação
entre a notícia e instituições de registro,
que possam dar significação a atos cuja anterioridade
escapava ao conhecimento público, pois "a notícia
não é um espelho das condições sociais,
mas o relato de um aspecto que se impôs" (Lippmann,
1976, 188).
Em
outros termos, acontecimentos que foram "registrados",
assumiram um caráter público, ou melhor, ao qual
este acabou prestando atenção. (Tal questão,
estratégica a respeito do papel social do jornalismo,
seria aprofundada nas abordagens de teóricos funcionalistas,
em formulações como a questão do agendamento
dos meios de comunicação de massa, a espiral do
silêncio e outros temas que procuram entender as influências
dos media na sociedade.)
Novamente
no exemplo das más condições de trabalho
que possam conduzir a uma greve, observa o autor:
Más condições como essas não são
notícia porque, em todos os caso, exceto os excepcionais,
o jornalismo não é um relato de primeira mão
de matéria-prima. É um relato desse material depois
de estilizado. (Lippmann, 1976, 192)
Se
há um "registro", como um relatório
do Conselho de Saúde, diz Lippmann, ele poderá
sancionar o interesse noticioso nas más condições
de vida dos trabalhadores, e se ocorrer uma greve o valor da
notícia aumenta, embora pareça que a tendência,
nesse caso, é que o fator de interesse conduza o relato
para o estereótipo "greve". Tema que será
aproximado da experiência do leitor, permitindo a ele
envolver-se com os fatos de um modo pessoal.
A
questão da relação existente entre rotinas
produtivas e jornalismo, o que se torna notícia, influencia
toda uma corrente sobre o estudo da produção noticiosa,
pois as rotinas diferem de veículo a veículo e
estão enraizadas em certos padrões culturais de
uma empresa de comunicação que o trabalho de um
investigador poderá revelar. E é interessante
notar como a estereotipia (que eventualmente resulta desse processo),
de fato, penetra em tantos outros produtos da indústria
cultural; pelo primeiro ponto assinalado (a conexão com
experiências familiares). A experiência do jornal
é similar, por exemplo, ao tipo de relação
entre os estereótipos e a de música padronizada
que era dirigida às classes populares inglesas, conforme
a clássica reflexão de Hoggart, em As utilizações
da cultura.
Mas
é justamente este aspecto convencional da notícia,
somado à obstrução dos "canais diretos
que levavam à notícia" (Lippmann, 1976, 190)
que dá à figura do assessor de imprensa uma, precocemente
observada, importância. Importância ambígua,
porém, pois pode esconder mais do revelar, escolher,
editar, dar forma a eventos de modo interessado, a fim de que
eles se tornem públicos. Lippmann nota uma tendência
que o tempo acabou reforçando.
Outro
ponto importante em que ambos os autores convergem é
o destaque dado ao poder do jornalismo de criar opinião.
Lippmann concentra-se no modo como jornalismo "informativo"
cria opinião. O autor discute como a opinião termina
estando implícita na escolha dos fatos, no destaque que
é dado a eles, na busca de uma angulação
que permita envolver e interessar o leitor. Percebe-se, pois,
o quanto a "informação" e a "opinião"
são elementos relativos, inter-relacionados no mesmo
processo de formação da opinião do leitor,
pois, como nota o autor, os editoriais irão muitas vezes
situar o leitor sobre as páginas noticiosas, assim como
estas refletem-se na opinião, já que o
leitor exige alguma sugestão que lhe diga, por assim
dizer, onde é que ele, homem que se concebe como tal
e tal pessoa, integrará seus sentimentos nas notícias
que lê. (Lippmann, 1976, 197)
No
entanto, a força de uma convicção assim
adquirida, segundo Lippmann, seria em verdade bem pouco racional,
menos próxima de um processo de convencimento argumentativo
do que de uma adesão epidérmica, porém
persistente porque pessoal. Esse é um ponto que está
relacionado a uma certa concepção de público
como "massa", e que é relativizado pela formulação
do texto de Park que, por outro lado, também reforça
o papel do jornalismo na opinião pública, mas
de um modo mais sutil e cauteloso. A notícia, observa
o autor, é um dos elementos para as "discussões
de que se forma a opinião pública" (Park,
1976, 183). É claro que é um elemento central,
pois no "mundo moderno, o papel da notícia assumiu
uma importância antes acrescida que diminuída em
confronto com outras formas de conhecimento" (idem, 184).
Cabe
notar que o jornalismo é um fenômeno histórico,
assim, não é por acaso que muitos veículos
tenham procurado alternativas ao que pode parecer uma excessiva
simplificação do modelo de "interesse"
e "curiosidade", tal como visto por Lippmann e Park.
Ou tenham utilizado tais eixos em direções diferentes
das que são apontadas mais diretamente pelos textos.
Porém, esse caráter histórico, e portanto
mutável da instituição jornalística,
é contrabalançada pelo estudo da notícia,
que ambos os autores procuram realizar. Isto é, a notícia
é encarada como possuidora de componentes característicos
e, mais que isso, essenciais.
Assim,
principalmente em Park, existe uma busca de invariantes nessa
forma, razão pela qual o autor possa notar que ela preceda
à História. Assim, determinados componentes essenciais
da notícia, como "orientar o homem e a sociedade
num mundo real" (Park, 1976, 183) são elementos
que demarcam importantes parâmetros de crítica
do jornalismo em qualquer tempo. Nesse sentido, as reflexões
dos autores norte-americanos podem ajudar a entender melhor
como esta atividade se processa num dado momento. O quão
próxima ou não está de certos elementos
"noticiosos". Tais reflexões são, portanto,
ferramentas da investigação há muito oferecidas.
Seria
interessante, para o não especialista, saber melhor o
quanto estas perspectivas influíram nos estudos brasileiros,
afora seus méritos e suas propostas interdisciplinares,
em termos de trabalhos concretos. Sem dúvida, foram leituras
de pesquisadores, mas para quem não é da área
seriam válidos exemplos concretos dessa influência,
de modo a perceber melhor a influência da "raiz norte-americana".
Os
pioneiros latino-americanos e o jornalismo
Talvez, de imediato, o que mais chame a atenção
no texto de Dias (2001) sobre os precursores dos estudos em
Comunicação na América Latina é,
ainda que apenas um dos autores (Octavio De la Suarée)
chegue a falar numa "ciência do jornalismo",
a centralidade que esta área possui nessa produção
pioneira.
Outro
aspecto que se destaca numa proposta de investigação
como essa é o fato de evidenciar não apenas uma
raiz latino-americana na pesquisa em comunicação/jornalismo
que tenha ajudado a estruturar o campo brasileiro, mas, além
disso, uma possível escola de pensamento em comunicação
do continente. Este é um pressuposto do autor, mas que
assume ao longo do texto um positivo caráter de hipótese,
no sentido de que:
Devido à orientação comum, ao clima latino-americano
nela refletido e às influências recíprocas
recebidas pelos seus protagonistas aquela pesquisa pode ser
caracterizada como integrante de uma escola de pensamento comunicacional
latino-americano. (Dias, 2001, 124)
Assim,
de modo comparado e sintético, Dias procura mostrar similaridades
e influências que apontam para a existência dessa
escola, a partir de três obras paradigmáticas de
autores representativos da pesquisa realizada entre os anos
de 30 e 50: o brasileiro Carlos Rizzini (obra: O livro, o jornal
e a tipografia no Brasil), o boliviano Gustavo Adolfo Otero
(obra: La cultura y el periodismo em América) e o cubano
Ocatvio De la Suarée (obra: Socioperiodismo).
Antes
de voltar-se às obras, Dias salienta aspectos da conformação
institucional do campo de pesquisa em comunicação
que aproximam os pesquisadores: o surgimento dos primeiros cursos
de jornalismo na América Latina e a atração
de intelectuais de áreas conexas; nota inclusive a peculiaridade
dos três autores terem tido formação na
política e na jurisprudência. Por outro lado, compartilham
um contexto sócio-cultural parecido: sociedades marcadas
pela desigualdade e ao mesmo tempo sem preconceitos quanto à
assimilação do conhecimento produzido em outros
espaços, adaptando-o a uma nova situação,
para a produção de um "pensamento híbrido
em sua origem e específico em seu modo de produção
científica, como é mestiço o seu próprio
continente" (Dias, 2001, 126).
No
plano da efetiva comparação das obras, o rigor
dos três pesquisadores é apontado por Dias, relacionado
ao modo convincente com que se trabalha a questão metodológica
nas pesquisas realizadas, aspecto básico para que elas
possam reivindicar estatuto científico. Há também
um "forte grau de confluência entre o conhecimento
e as práticas dos três precursores" (Dias,
2001, 134) baseada numa utilização de fontes hemerográficas
primárias e na análise comparada.
Por
outro lado, o estudo propriamente bibliométrico das fontes
utilizadas pelos autores mostra algo surpreendente: não
há nenhuma, num universo de 1.272 fontes, que seja comum
aos três investigadores. De comum, há a preferência
pela citação de obras francesas (casos de Rizzini
e Suarée) e depois inglesas. O autor nota, entretanto,
que a influência norte-americana (autores dos EUA e do
Canadá) era bastante pequena na época. O Brasil
mostra-se isolado, conforme essa comparação, Rizzini
utiliza 21 fontes em língua espanhola, contra apenas
11 em língua portuguesa utilizadas pelos outros dois
autores. Há ainda uma grande utilização
de autores de "ciência afins" (cerca de 50%),
dada a própria incipiência do conhecimento produzido
na própria área de comunicação.
Mas essa característica não impediu que fosse
sendo delineada uma identidade de pesquisa em comunicação
- e, no caso específico desses autores, isso ocorre pela
própria vinculação das fontes que não
pertencem à comunicação aos temas estudados
pelos pesquisadores.
O
estudo de Dias, portanto, faz um resgate útil, que está
sendo aprofundado pelo autor. Já foi, porém, capaz
de demonstrar certas similaridades desse nascente pensamento
comunicacional latino-americano. Resta esperar um avanço
também na dimensão qualitativa das influências,
apropriações e reflexões desses autores
para a constituição do pensamento jornalístico
(e em comunicação) no Brasil e na América
Latina. Há bastante trabalho a fazer, tanto no plano
prático - por exemplo, na busca de novas edições
dessas obras, se possível acompanhadas por comentadores
tão interessados nas mesmas como Dias -, quanto no reflexivo.
Por exemplo, é difícil não ter curiosidade
em saber o quanto a "ciência periodística"
de Suarée eventualmente deve ao pensamento de Groth.
Ou qual o âmbito de influência dessas obras - já
que, como vimos, parecem não ter estabelecido de imediato
um diálogo (ou será que isso pode ter ocorrido
posteriormente?). Com quem discutiam este autores e em que espaço?
Quando começaram a ser introduzidos no Brasil (Suarée
e Otore)? O que pode explicar o relativo esquecimento de Rizzini?
Estas
são algumas das questões que a pesquisa da pioneira
"raiz latino-americana" na investigação
do pensamento jornalístico brasileiro pode aprofundar.
Bem como, tornar mais evidentes os nexos entre ela (a raiz latino-americana)
e as outras "raízes".
*Richard Romancini é doutorando
na ECA/USP.
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