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Ensaios


A comunicação como sistema:
matrizes de um campo em formação

Por Marcelo Januário*

"Entretanto, com o humanismo dá-se a recuperação da dignidade das culturas narrativas, pela disposição geral da modernidade de definir as condições de um discurso num discurso destas condições e por uma nova atitude científica em que o herói é o povo, aquele donde partia o saber narrativo, e que deve agora deliberar sobre o que lhe interessa."

Mayra Rodrigues Gomes

A tradição européia

No Brasil, o processo de sistematização de um método científico aplicado à comunicação, e especificamente ao jornalismo, atualmente em fase adiantada de consolidação, remonta aos estudos internacionais iniciados na virada do século XIX para o XX, quando se define como nova área de pesquisa e de ensino. Síntese entre a tradição européia e norte-americana, tal campo de estudo busca compreender, interpretar e prever com precisão conceitual e exatidão analítica as tendências dos sistemas de comunicação de massa nas sociedades contemporâneas.

Seus antecedentes, tanto históricos quanto literários e, por que não, científicos, podem ser detectados no início do século XIX, e ainda mais remotamente, no final do XVII.

Na Alemanha, onde surgiu o Leipziger Zeitung, primeiro diário da história da imprensa em seu formato moderno, surgiria também o primeiro ramo das Ciências da Comunicação e da Informação, a Periodistika, desenvolvido por Tobias Peucer e seu grupo. Foi em 1690 que Peucer apresentou sua pioneira tese de doutorado sobre jornalismo /'De Relationibus Novellis" à Universidade de Leipizig, onde já investiga de forma científica a maioria dos temas hoje sistematizados pelos centros de estudos avançados na área.

A tese "Os Relatos Jornalísticos", com efeito, abrange considerações sobre temas muito atuais no jornalismo, como ética, utilidade, amenidade, registro, linguagem, censura, sigilo, sensacionalismo, temática, fontes e lucratividade. Dentre tal amplitude de enfoque, destaca-se no tópico §VIII uma definição etiológica do "Zeitung", marcadamente em suas bases materiais, ao considerar que "as causas da aparição dos periódicos impressos com tempestiva freqüência hoje em dia, são em parte a curiosidade humana e em parte a busca de lucro, tanto da parte dos que confeccionam os periódicos, como da parte daqueles que os comerciam, vendem".

Tal proposição, embora não dominante na argumentação, evidencia as raízes mercantis e comerciais de uma atividade que transformaria para sempre a humanidade, ao promover a ruptura de um mundo predominantemente oral e plantar a semente da onipotente sociedade da informação, embasada na leitura passiva e repleta de ambigüidades residuais e artifícios políticos, mas também aberta ao exame lógico da linguagem, à abstração, à reflexão e, hipótese mestiça, à mudança.

As constatações que Roger Chartier e Guglielmo Cavallo realizaram sobre o desenvolvimento de um público leitor e sobre a disseminação do livro na Europa renascentista lançam perspectivas históricas complementares sobre este quadro.

Também Marques de Melo destaca que "a própria imprensa, que viabilizou tecnologicamente o jornalismo, (...) surgiu como resultado de crescentes exigências sócio-culturais que se manifestaram na nascente engrenagem burocrática, nas operações mercantis e financeiras que movimentavam as cidades, na circulação mais rápida das idéias e dos inventos que tornaram a reprodução do conhecimento um fator político significativo".

Em um momento em que os Estados e as línguas nacionais eram fixados pela palavra impressa, o monopólio do saber e o autoritarismo medieval são questionados pelo surgimento de uma incipiente consciência crítica e reflexiva.

Já esse jornalismo embrionário, por sua natureza e implicações políticas, se transformou em ameaça ao poder instituído, uma perigosa "máquina de ensinar" como bem comparou McLuhan , sendo rapidamente mimetizado em instrumento governamental, subtraído da proteção da Igreja Católica que o utilizava para propagar a Bíblia e mergulhado em uma nova era de regulação, controle e censura, onde a mera publicação de informações sobre a atualidade e o cotidiano se configurava passível de pena nas fogueiras da Inquisição.

Talvez este contexto de exceção, que se prolongou pela Idade Moderna afora, explique a hibernação que os estudos comunicacionais sofreram por séculos, após as bem-sucedidas experiências analíticas do grupo de Leipizig. Em termos práticos, o moderno jornalismo só emergiria com o apogeu da burguesia e com a abolição da censura prévia no século XVIII, mas apenas no início do século XIX, na mesma Alemanha, é que seus estudos avançados seriam retomados, notadamente pelo primeiro curso sobre "Ciência da Imprensa" realizado na Universidade de Breslau em 1806.

No entanto, a estruturação do campo de pesquisa só iria ter continuidade, como citado, ainda mais à frente, na passagem daquele século. Momento histórico de desenvolvimento e industrialização acelerada, o período propiciou a gestação da "Ciência da Comunicação" como fator de integração das sociedades, ramo baseado nos sistemas biológicos e em conceitos como "organismo-rede". Cursos, programas, escolas, universidades e institutos são fundados entre 1869 e 1916 em países como França, Suíça, EUA e Alemanha. Em 1907, Karl D'Esther apresentou na Universidade de Münster a primeira tese universitária dos tempos modernos sobre jornalismo, consolidando a Alemanha como centro de excelência pioneiro na área.

Deste país também viria um dos maiores estudiosos do jornalismo no século XX, Otto Groth (1883-1965). Ele foi jornalista profissional entre 1906, quando iniciou como correspondente do Frankfurter Zeitung, e 1934, quando interrompeu sua carreira devido à ascensão do nazismo. Aluno de Max Weber e doutor em economia política e direito, Groth publicou entre 1928 e 1930 o trabalho Die Zeitung, desde então obra clássica dos estudos sobre jornalismo, onde definiu as bases para o desenvolvimento teórico da área.

A partir de 1948, assume a cátedra de ciência jornalística do Instituto de Jornalismo da Universidade de Munique e desenvolve importante pesquisa sobre os fenômenos jornalísticos, essencialmente centrada na imprensa.

Seus livros posteriores apresentam a sistematização das diretrizes filosóficas da "ciência do jornalismo", compreendida por ele como investigação autônoma de obras culturais, com objeto e método próprio. Ao método, como decorrência natural do objeto, define como imperativo espontâneo, que surge na medida em que se desenvolve o processo de investigação.

Ao objeto, dividiu como Periodik, Periodika e Periodikum, instrumentos culturais diferenciados apenas em grau e com limitações conceituais, que correspondem, respectivamente, aos jornais (que visa comunicar constantemente a um público não limitado o conhecimento atualizado de todos os campos da vida), revistas (destinadas a comunicar constantemente, a setores específicos ou não, o saber dos objetos que se superam progressivamente seja em todos os campos, com uma atualidade limitada, seja em campos específicos, com atualidade ilimitada) e folhas (destinadas a comunicar constantemente, em um período limitado ou não, o saber dos objetos específicos de intrínseca atualidade).

Afastando as críticas que apenas creditam ao jornalismo o status de "técnica sofisticada", Groth acrescenta que o estabelecimento de um princípio fundamental ("ser e essência") é necessário para estruturar a "nova ciência". Este princípio estaria na investigação das características de cada um dos meios, e não em seus conteúdos.

Outra preocupação, talvez devido às experiências de expressão ideológica com a poderosa máquina de propaganda que o autor vivenciou na Alemanha nacional-socialista, é com a diferenciação do novo campo em relação à publicística (pesquisa sobre opinião pública com objetivos de manipulação).

Em busca do "importante fundamental", Groth analisa as características da "nova ciência", estabelecidas como periodicidade (efeitos mentais da repetição como "ritmo de vida", que formam uma comunidade no espaço e no tempo através da duração), atualidade (característica e meta do jornalismo como mediador, "momento do tempo" traduzido em fatos atuais), universalidade ("mundo presente" tornado compreensível pelo campo de conhecimento humano) e difusão (potencialidade de acesso geral, dividida em extensiva, de base geográfica, e intensiva, de base socioeconômica e cultural, inversamente proporcionais).

Tais características são funcionalmente articuladas e acionadas pelos mecanismos que determinam a necessidade social da informação, traduzida pelo anseio coletivo. O pensador alemão, a partir da análise destas características, define matematicamente as relações funcionais entre elas e elabora as cinco leis que as regem.

De forma esquemática, teremos:

As Leis de Groth:

1a Lei: D = f (U) - quanto mais (ou menos) ampla a universalidade, maior (ou menor) a difusão;

2a Lei: P = f (A) - quanto mais (ou menos) atualidade, maior (ou menor) a periodicidade, seja, maior (ou menor) freqüência de publicação

3a Lei: U = f (D) - quanto maior (ou menor) o público-alvo, maior (ou menor) a universalidade;

4a Lei: A = f (P) - quanto menor (ou maior) a periodicidade, menor (ou maior) a atualidade;

5a Lei: P = f (U A) - quanto maior (ou menor) universalidade e atualidade, maior (ou menor) a periodicidade, seja, maior (ou menor) freqüência de publicação; D = f (U A) ? quanto maior (ou menor) universalidade e atualidade, maior (ou menor) a difusão.

Neste modelo interativo, o jornalismo é concebido como um processo social contínuo, articulado pela relação (periódica) entre organizações formais (emissoras) e coletividades (público), através de canais de difusão (veículos) que determinam a transmissão de informações (atuais) em função das expectativas da coletividade (culturais ou ideológicas). Unindo emissor e receptor, estão os fatos.

Ainda como características da Periodika, correlatamente Groth estabelece os quatro "conceitos de perfeição", que definem a regência da periodicidade pela lei da repetição mais freqüente possível, da universalidade pela lei do conteúdo mais amplo possível, da atualidade pela lei da publicação mais rápida possível e da difusão pela lei da propagação mais ampla possível.

Novamente, para rebater as inevitáveis críticas de "idealismo" deste modelo, o pai da "ciência do jornalismo" reitera que as leis acima enumeradas teriam vigência em ações puramente jornalísticas, não se considerando a influência que fatores psicológicos, sociais, econômicos e técnicos exercem sobre a atividade na prática cotidiana. Admite também a importância da realização técnica no jornalismo (na estruturação, composição, apresentação e conteúdo), porém submetida ao embasamento conjunto da teoria científica-jornalística e da herança técnica e cultural.

A pesquisa e o ensino nos EUA

Como potência militar consolidada e centro da explosão tecnológica e midiática, no século XX os Estados Unidos passaram à frente na produção de conhecimento sobre jornalismo. Sua influente teoria, com nomes como Robert E. Park, Walter Lippmann, Raymond Nixon, Elihu Katz e correntes de pensamento como a Escola de Chicago e a Mass Communication Research, além da inovadora prática de figuras representativas como Tom Wolfe, Gay Talese, John Hersey e Truman Capote, atestam a hegemonia conquistada pela sociedade norte-americana no campo dos estudos e atividades comunicacionais na primeira metade do século passado.

Tal desenvolvimento teórico e prático foi provavelmente consubstanciado pelo ensino de pós-graduação naquele país, iniciado ainda em meados do século XIX como conseqüência das transformações econômicas ocorridas no período. Marques de Melo aponta o sistema educacional predominante na época como seguidor dos padrões britânicos, de formação humanística globalizante (liberal education).

Mas novamente foi a Alemanha, onde até então eram formados seus técnicos, que inspirou o modelo adotado para a implantação do sistema educacional. No final, como o abandono da separação das unidades de graduação e pós-graduação devido ao seu caráter deficitário, o resultado prático foi uma justaposição do modelo britânico (professional school) com o alemão (graduate school).

Os objetivos das instituições se dividiram em duas vertentes: formação humanística (docentes e pesquisadores) e profissionalizante (técnicos), ambas destinadas à obtenção do doutorado. Com a posterior introdução do sistema de seminários e o surgimento do grau de mestre (na época equivalente à nossa licenciatura), visando a formação de pessoal qualificado para o ensino secundário, houve a interligação entre college e graduate school, já inseridos no contexto da university, com todos os níveis de ensino superior centralizados administrativamente.

Conforme os críticos norte-americanos, nessa altura se iniciou a crise de qualidade da indústria educacional, com a massificação do ensino e a conseqüente perda de profundidade da reflexão. O caráter de competitividade e a pedagogia opressiva são características deste inchaço, além da saturação do mercado, o que não impediu que atingisse padrões científicos incomparáveis. Observamos que, mesmo em crise em sua matriz, o modelo foi de modo geral praticamente transplantado para o ensino superior no Brasil, com todos os seus desequilíbrios e disfuncionalidades em relação ao nosso contexto.

Ecoando a tese de Peucer, a expansão comercial dos veículos sensacionalistas deu o tom desde o início na indústria cultural, eclipsando o caráter idealista e liberal de serviço público da comunicação em seus primeiros tempos. A implantação do ensino superior de jornalismo vinculou-se à busca de responsabilidade social (ou talvez controle social da imprensa) por parcela da intelectualidade norte-americana, mas as iniciativas que vingaram, entretanto, moldaram-se na práxis e não nesse idealismo elitista. Após tentativas pioneiras frustradas por falta de apoio material, como da Washington College (1869) e da Kansas State College (1873), no século XX finalmente surgiriam cursos em Illinois (1904), Wisconsin (1905) e outras universidades.

A primeira escola de jornalismo (Missouri, 1908) surge com uma tendência vocacionista, voltada aos padrões técnicos e éticos, e integrando uma filosofia globalizante (que incluía trabalho editorial, reportagem, propaganda, impressão, circulação) com outra específica (captura, apresentação, interpretação da notícia). Posteriormente, com uma doação do editor Joseph Pulitzer, que hoje dá nome ao principal prêmio em jornalismo nos EUA, Columbia (1912) igualmente implantaria sua escola de jornalismo, seguida por muitas outras.

Com um caráter técnico-profissional, na década de 30 as escolas instituem os cursos de pós-graduação e reformulam seus currículos, porém sem a ênfase na investigação sistemática dos fenômenos jornalísticos que caracterizou a tradição européia. A busca por uma metodologia científica que abrangesse o relacionamento entre imprensa e sociedade justapôs os estudos de jornalismo com as ciências sociais, que desde o início do século já produzia teses sobre a atividade jornalística.

As transformações estruturais nos meios de comunicação também provocaram a ampliação e diversificação do universo das disciplinas do campo, gerando novas áreas relacionadas com os veículos eletrônicos, como opinião pública, telejornalismo, cinema, radiojornalismo, relações públicas e propaganda, que se separariam em unidades independentes durante as décadas de 50 e 60.

Após retrocesso na Segunda Guerra Mundial, os estudos específicos deram lugar às escolas de comunicação e os cursos de jornalismo ganharam estruturas curriculares que abrangiam conhecimento técnico, social, econômico e histórico mais abrangente, além de programas interdisciplinares. Comparativamente, olhando de maneira superficial a estrutura brasileira, com suas exigências para obtenção dos títulos de mestre e doutor, como disciplinas genéricas e referentes (teóricas, metodológicas, fenomenológicas e técnico-profissionais), aulas expositivas, seminários, orientação, créditos obrigatórios, exame de qualificação, revisão de literatura e tese, com pequenas exceções verificamos a sua quase que equivalência ao modelo norte-americano.

O procedimento de avaliação das qualidades da preparação acadêmica, feita com base na correlação de conceitos, capacidade de síntese e habilidade para reflexão, também parece se encaixar ao padrão universitário ainda hoje presente nas universidades brasileiras.

Em 1975, Marques de Melo destacava as lições daquele modelo que seriam aplicáveis ao Brasil, como a organização curricular, orientação interdisciplinar, formação humanística, dimensão ética, flexibilidade experimental, leitura como instrumento de aprendizado, intercâmbio com profissionais e espírito de equipe nos quadros docentes.

Quase que simultaneamente a este desenvolvimento das instituições, a Escola de Chicago criou uma corrente de pensamento com um enfoque microssociológico da comunicação na organização da comunidade, relacionando-o a uma reflexão sobre o papel da ferramenta científica na resolução dos desequilíbrios sociais e expandindo as fronteiras do conhecimento comunicacional.

O pesquisador Robert Ezra Park (1864-1944) foi um dos destacados membros desta escola. Repórter e militante da causa negra, em 1903 Park desenvolveu uma tese de doutorado sobre "a massa e o público", mas só se tornaria docente em 1913, quando transformaria sua prática de jornalista em pesquisas sociológicas nos bairros de periferia. Seguidor dos ensinamentos do filósofo alemão Georg Simmel (1858-1918), que descreve a personalidade urbana como estado de espírito fundamentado psicologicamente na intensificação do estímulo nervoso, na mobilidade e na locomoção, Park concebe a cidade como laboratório social.

A "ecologia humana", problemática central da Escola de Chicago, reside justamente em conceitos como marginalidade, desorganização, aculturação e assimilação. A partir da função assimiladora dos jornais e da natureza da informação, este enfoque gerou contribuições práticas à questão da imigração e integração das comunidades étnicas na sociedade norte-americana. Tratava-se de uma tentativa de implicação sistemática do esquema teórico da ecologia vegetal e animal ao estudo das comunidades humanas. Neste processo pragmático, Park contrapõe o nível "biótico", relações simbióticas constituídas por formas não-planificadas de cooperação competitiva, ao nível "sócio-cultural", assumido pela comunicação como consenso e que se impõe como regulador da competição, permitindo o vínculo social.

Por esta perspectiva biológica, avaliamos a distinção que Park, a partir das observações de William James e outros, faz dos tipos de conhecimento ("conhecimento de" e "conhecimento acerca de") e suas diferentes funções. O conhecimento "sintético", entendido como acomodamento orgânico do indivíduo ao habitat, a exemplo das plantas, se manifesta como tato, hábito, senso comum ou mesmo personalidade (acumulação de experiências). É adquirido subconscientemente pelos sentidos e não pode ser transmitido formalmente. A habilidade técnica e a intuição da natureza humana são exemplos deste tipo de conhecimento, ancorados que são em um processo de aprendizagem fisiológica, não comunicável nem articulada.

O segundo tipo, o conhecimento "analítico", possui caráter formal, racional e sistemático. Comunicável e experimental, é baseado na observação e no fato ordenado sobre uma perspectiva científica. Substitui a realidade concreta por idéias, e coisas por palavras, em uma estrutura conceitual lógica. Como "herança social", a descrição das fontes e do método são fundamentais neste tipo de conhecimento, que investiga sistematicamente a natureza sem, no entanto, prescindir do benefício da percepção.

Com as leis, que são formulações hipotéticas experimentais sobre Filosofia e Lógica (idéias), História (acontecimentos) ou Ciências Naturais (coisas), pode-se predizer o curso futuro da realidade empírica, desde que a relação de causa e efeito refira-se à relação entre as coisas, e não à relação puramente lógica e intelectual entre idéias. Aqui encontramos o pragmatismo crítico da Escola de Chicago, que rejeita a interpretação dialética dos fatos baseada na política institucional consolidada e imobilizadora. Sua causa é a necessidade de transformação efetiva da sociedade.

Para Park, os dois tipos de conhecimento formam um contínuo, onde se localiza a notícia. Como notícia, fixos no tempo e no espaço, os acontecimentos não são coisas, mas tampouco formam a História, pois são isolados (incidentes independentes). Também não são relacionados entre si, com seqüências causais ou teleológicas, mas dependem da oscilação do "espírito do público".

Mas há uma continuidade que inter-relaciona informação e ação política, passando pela opinião pública. Em princípio, a notícia não leva à ação, mas ao debate. Apenas o "presente especioso", os "fatos como eles se apresentam no momento do registro, não (como) um estudo definitivo de uma situação", esta mercadoria perecível, transitória e efêmera, é que interessa ao jornalismo, fenômeno puramente secular que desempenha importante papel na ação política não ao interpretar o fato, mas ao torná-lo compreensível e interessante. A interpretação, que forma a opinião pública, se dá no debate social suscitado pela notícia e manifesta a oscilação da esfera política entre a vontade e a idéia. A passagem da informação à ação política depende da existência de uma comunidade (o público) que divida a mesma interpretação dos acontecimentos e desenvolva consciência na apropriação das mensagens.

Por outra perspectiva, Luiz Beltrão adverte que "os fatos correntes expostos pelo jornalismo têm de ser devidamente interpretados, porquanto informação, orientação e direção são atributos essenciais do periodismo...". Polêmica à parte, através do tempo a concepção teórica (como o mundo) se problematizou e novas categorias como jornalismo ameno, literário, diversional, interpretativo, de entretenimento e de incitação se juntaram às clássicas razões fundamentais de informar e opinar, todas pretendendo a universalidade, com implicações políticas, éticas, lúdicas, psíquicas, econômicas.

Retomando a Park, para não se confundir com boatos ou lendas ou se transformar em fato histórico, a notícia deve ser legitimada como documento pela exposição ao exame crítico de um universo de discurso público, através de sua publicação. Relacionada com o insólito e o inesperado, com o súbito e o decisivo, a notícia, no entanto, trabalha paradoxalmente com o caracteristicamente simples e comum, "os acidentes e casos que surgem no jogo da vida". Símbolo do interesse humano universal e perene, que ultrapassa os próprios acontecimentos, sua importância imediata é relativa e depende do fluxo de acontecimentos e das expectativas, de um caráter mais pragmático do que apreciativo.

À luz das inovações científicas de sua época, Park reitera que a importância de um conhecimento está em sua função na sociedade, em seu uso, e não na sua validade como ideal. Descreve a notícia como forma de conhecimento, dos mais elementares do gênero humano, possuidora de dignidade científica, de um papel emancipatório e fonte de coesão social, mas também como ferramenta de tensão circuncêntrica, dispersão e de manipulação política.

A adaptação das sociedades e as mudanças tecnológicas se manifestam na notícia, que tem como função primordial orientar a sociedade no mundo real, como a percepção cognitiva o faz com o indivíduo, para preservar sua sanidade e permanência e viabilizar as transformações sociais. Na época de Park, jornalismo, literatura e ficção já se hibridizavam e a importância da notícia aumentava com a expansão dos meios. Em nossos dias, mais do que nunca, com a explosão digital da era pós-industrial, somos convocados a compreender o que está acontecendo ao nosso redor e como podemos aperfeiçoar a realidade.

Em 1922, enquanto Park desenvolvia suas idéias na Universidade de Chicago, a reflexão acadêmica americana sobre comunicação e jornalismo deu mais um passo à frente, quando Walter Lippmann publicou o livro Public Opinion, com reflexões sobre o papel do público nos regimes políticos democráticos. Jornalista brilhante com formação em Harvard, Walter Lippmann (1889-1974) foi conselheiro da presidência de Woodrow Wilson (1913-1921), além de principal colunista do The Herald Tribune, do Washington Post e do New York World, de Joseph Pulitzer.

Sua abordagem demonstrava que a compreensão dos complicados detalhes das questões tecnológicas, políticas e econômicas exigia um nível tão elevado de sofisticação e de especialização que, para o cidadão comum, era inviável manter-se atualizado.

No capítulo A Natureza da Notícia, de seu clássico livro, Lippmann discorre sobre a limitação espacial da reportagem e sobre as condições em que os acontecimentos se transformam em notícias. Escreve o autor, que "o essencial é que, antes de se converterem em notícia, os acontecimentos se tornem noticiáveis por um ato mais ou menos notório". Mais ainda, para fugir dos boatos e da especulação, "o curso dos acontecimentos precisa assumir certa forma definível e, enquanto não atingir a fase em que algum de seus aspectos é fato consumado, não se estrema a notícia do oceano de verdades possíveis".

Para evitar controvérsias de interpretação do ato objetivado que se impõe (já que não são meramente espontâneos), regras e mecanismos de registro, em vários graus de exatidão, são condições necessárias para a existência da notícia. Sem o emprego de um critério de escolha, normalmente os acontecimentos que envolvam estado de espírito ou registros sem medição objetiva não se tornam notícia, sendo vistos como opinião pessoal ou simplesmente ignorados.

Uma vez que não espelha as condições sociais, a irrupção do curso da notícia se localiza comumente na intersecção dos negócios do povo com as autoridades. A importância crescente da mediação de massa na vida diária evidencia a existência cada vez mais complexa e organizada da sociedade, que já não satisfaz a necessidade de participação social de seus membros com a comunicação direta (Martín Serrano, 1982).

É neste ponto da intermediação que Lippmann insere o assessor de imprensa, que se interpõe entre o grupo social e os jornais, elo do processo de interação. Como os fatos não são simples ou óbvios, os assessores têm a missão de "escolher" os fatos tornados públicos, atuando como "censores e propagandistas" simultaneamente. Seu compromisso com a verdade (ou com as condições sociais reais) encontra um limite na concepção e formulação dos interesses de seu empregador. Sem compromisso direto com o interesse público, o assessor inicia movimentos através de recursos publicitários que envolvem seus clientes em acontecimentos que já são notícia. Neste processo, se evidencia que o problema para a indústria não é o mesmo que para o público.

Como estilização da matéria-prima social, o jornalismo não espelha a realidade não só por uma limitação instrumental, mas também política. Sem a intervenção e o envolvimento direto dos agentes sociais e dos estereótipos reconhecíveis pelo público, os "fatos não se transformam em notícia". A realidade abstrata nas relações industriais se manifesta em diversos pontos de vista, com cada ator revestindo-a com seus próprios sentimentos, o que explica que uma notícia nascida do ressentimento ou da esperança venha a público como um ataque à produção.

Para Lippmann, portanto, o ato notório assinala a complexidade das circunstâncias, o comunicado estereotipado o publica e o leitor decodifica seu significado, de acordo com a interferência da ação nos seus interesses e sempre além (ou aquém) dos reais motivos que a originaram ("significado excêntrico"). A notícia, como narrativa das fases notórias interessantes, buscar traduzir a situação como experiência familiar aos leitores e a reveste, aos olhos dos envolvidos nos acontecimentos, de falseamento. Trata-se de um jogo cíclico, pois as pressões sobre o jornal, que são intensas e surgem desde as dificuldades técnicas e profissionais até as políticas e econômicas, geram incertezas que só se dissipam em parte apenas com a veiculação do indiscutível e do interessante.

Se "onde inexiste o processo constitucional na indústria e a investigação atenta e especializada da prova e das pretensões, é o fato sensacional para o leitor que quase todo jornalista buscará", então a notícia age contra os grupos não organizados, ao registrar os desdobramentos e não as causas. Isto porque as razões concretas que originam os fatos são inatingíveis, pois a sutileza e profundidade de uma verdade sucumbem sem o registro exato e a análise quantitativa.

Porém, o desprezo total das sutilezas, o estereótipo, a padronização, a sistematização são necessários perante a urgência de interesse para o público e como garantia de economia de esforços e de tempo. Assim, não é a cultura ética, mas as convenções que fazem com que o público participe e se integre na notícia, dando-lhe pistas e estereótipos com que forme sua opinião e se predisponha a não aceitar pontos de vistas diferentes. É então que o jornal já não pode mudar de opinião sem perder seu leitor, tendo como alternativa o esvaziamento do tema ou a manutenção da abordagem. Quanto a este último ponto, Lippmann foi enfático, ao cunhar sua notória sentença de que "quando todos pensam o mesmo, ninguém está pensando".

"A lógica do sistema da produção da informação no mundo ocidental nos leva a estabelecer, como resultado do mesmo, um discurso homogêneo, se bem que é possível que cada meio, de acordo com sua política editorial, dê uma visão diferenciada aos assuntos ainda que os assuntos tratados nos distintos meios sejam praticamente os mesmos. Assim, cria-se esta imagem de realidade única que transmitem os mass media".
Miquel Rodrigo Alsina

Mais do que nunca, com a crise ética que se abateu sobre o jornalismo oficial norte-americano, que além de aderir em bloco à política militar da Casa Branca, ainda "embutiu" (embedded) seus repórteres em unidades do exército (onde acabariam por vezes atuando como "localizadores do inimigo") na recente invasão do Iraque (2003), demonstra que é chegada a hora de uma nova reflexão sobre a profissão e sua teoria, que como qualquer campo do conhecimento humano transmuta-se no tempo exigindo a permanente análise sobre seu papel na emancipação do homem e na independência de pensamento.

Talvez já esteja acontecendo.

A síntese latino-americana

Com o desenvolvimento da indústria da comunicação entre os anos 30 e 50, surgiu na América Latina um pensamento inovador que se cristalizou na Escola Latino-Americana de Comunicação (ELACOM). Mesmo sem um marco epistemológico definido, a comunicação passou por rápida ascensão como disciplina no período, tornando-se progressivamente independente e autônoma das ciências sociais graças à originalidade de seus autores. Se os seus primeiros cientistas provinham de diversas áreas, o que por vezes acarretou falta de foco devido ao caráter heterogêneo das abordagens, a especificidade da organização política e cultural auxiliou no processo de conquista de autonomia nas sociedades latino-americanas, marcadas pelo que Martín-Barbero chamou de subdesenvolvimento acelerado e pela modernidade compulsiva.

O clima cultural comum e as influências recíprocas que propiciaram a singularidade do pensamento pioneiro desta escola a partir dos anos 50, conforme mostra estudo de Paulo da Rocha Dias, podem ser identificados em iniciativas precursoras quase esquecidas de três de seus pólos de produção: Brasil, Bolívia e Cuba.

Unidos pela erudição, pela metodologia (que emprega técnicas do jornalismo) e pelo intercâmbio disciplinar, estes pólos possuem papel central no desenvolvimento do campo no continente. Paralelas aos primeiros cursos de jornalismo na região, as obras destes pesquisadores precursores, todos de áreas conexas e com formação em política e jurisprudência, convergem em seu interesse, em sua identidade híbrida e mestiça (como síntese dos paradigmas das escolas européia e norte-americana) e na intensa originalidade de sua produção científica, adaptada às condições do continente e comprometida com problemas sociais e soluções políticas.

Exemplares, ao tratarem conjuntamente e à sua maneira a história do jornalismo, as obras O Livro, o Jornal e a Tipografia no Brasil (1946), de Carlos Rizzini, La Cultura y el Periodismo em América (1925), de Gustavo Adolfo Otero e Socioperiodismo (1953), de Octavio De la Suarée Tirapo, são marcos fundadores do pensamento científico autóctone do continente em suas décadas iniciais de produção.

O jornalista, político e empresário do jornalismo Carlos Rizzini (1898-1972) foi o primeiro catedrático brasileiro de jornalismo, na antiga Universidade do Brasil, além de ter sido por muitos anos principal editor do carro-chefe do império de comunicações de Assis Chateaubriant, os Diários Associados. Seu clássico livro investiga a pré-história do jornalismo e a circulação de notícias no período colonial, dando início à moderna bibliografia brasileira em comunicação.

O jornalista, professor e escritor cubano Octavio De la Suarée Tirapo (1903-1994) instituiu uma nova disciplina, o sociojornalismo, que investiga sob perspectiva própria as manifestações e impactos da imprensa na sociedade moderna. Já o diplomata, historiador, sociólogo, escritor e jornalista boliviano Gustavo Adolfo Otero (1896-1958) foi diretor do Instituto de Belas Artes da Universidad de La Paz e viajou por praticamente toda a América Latina.

Otero escreveu peças históricas, biografias, relatos de viagem, textos literários e ensaios sobre cultura e jornalismo. Seu livro monumental é baseado essencialmente em fontes primárias e constituído por estudos panorâmicos e monográficos sobre a imprensa em toda a América Latina por mais de três séculos.

Talvez a maior contribuição desta geração, além da ruptura da ilusão de unicidade da realidade, seja o método de descrição, comparação e explicação dos fenômenos comunicacionais, ainda hoje utilizado nas escolas brasileiras. Mas o legado é muito maior. Se Rizzini foi o pioneiro dos estudos midiáticos no Brasil, De la Suarée criou uma definição inovadora para a ciência da imprensa, também ainda funcional, incluindo psicologia, ética e informação.

No caso de Otero, que aborda a evolução do jornalismo na América Latina como logaritmo de evolução das cidades, pode-se até fazer uma correlação com os estudos de Park, ele próprio profundamente influenciado por Simmel, mas não completamente, já que em nosso continente o conceito-chave para a reflexão analítica parece ter sido sempre o da alteridade. Octavio Paz, também autor latino-americano com projeção mundial, indicou tal direção em 1983 ao escrever que "a idéia de sociedade como um sistema de comunicação deveria modificar-se, introduzindo as noções de diversidade e contradição: cada sociedade é um conjunto de sistema que conversam e polemizam entre si (...) Os meios não são a língua: são a sociedade".

Diluída no dilema, a expressão simbólica do continente obedece a padrões próprios, com seus fluxos de desenvolvimento urbano, sua profunda cisão social e sua apropriação diferenciada da informação. Nos nossos dias, entretanto, inicialmente constatamos que tal complexidade recebeu inovador tratamento científico por uma vigorosa produção local, para depois lamentarmos o risco de dispersão e esquecimento que sobre ela paira em seu próprio território de concepção.

A consolidação do campo está adiantada, mas não concluída. Frente ao desafio do novo, o jornalismo brasileiro talvez tenha abandonado suas raízes transformadoras sem o perceber.

A tensa complexidade da América Latina exige que fiquemos atentos a todos os indícios, libertos do complexo de colonizados e imunes à obsolescência científica e ideológica.

BIBLIOGRAFIA

ALSINA, Miquel Rodrigo. La Construcción de la Noticia. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1989.

BUENO, Wilson da Costa. O Jornalismo como Disciplina Científica: A Contribuição de Otto Groth. SP: Ed. Comunicações e Artes ECA/USP, 1972. (Série F – Jornalismo, 31).

GOMES, Mayra Rodrigues. Jornalismo e Ciências da Linguagem. SP: Hacker Editores / EDUSP, 2000.

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*Marcelo Januário é jornalista e mestrando na ECA/USP.

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