Ensaios
A
comunicação como sistema:
matrizes de um campo em formação
Por
Marcelo Januário*
"Entretanto,
com o humanismo dá-se a recuperação da
dignidade das culturas narrativas, pela disposição
geral da modernidade de definir as condições de
um discurso num discurso destas condições e por
uma nova atitude científica em que o herói é
o povo, aquele donde partia o saber narrativo, e que deve agora
deliberar sobre o que lhe interessa."
Mayra
Rodrigues Gomes
A
tradição européia
No
Brasil, o processo de sistematização de um método
científico aplicado à comunicação,
e especificamente ao jornalismo, atualmente em fase adiantada
de consolidação, remonta aos estudos internacionais
iniciados na virada do século XIX para o XX, quando se
define como nova área de pesquisa e de ensino. Síntese
entre a tradição européia e norte-americana,
tal campo de estudo busca compreender, interpretar e prever
com precisão conceitual e exatidão analítica
as tendências dos sistemas de comunicação
de massa nas sociedades contemporâneas.
Seus
antecedentes, tanto históricos quanto literários
e, por que não, científicos, podem ser detectados
no início do século XIX, e ainda mais remotamente,
no final do XVII.
Na
Alemanha, onde surgiu o Leipziger Zeitung, primeiro diário
da história da imprensa em seu formato moderno, surgiria
também o primeiro ramo das Ciências da Comunicação
e da Informação, a Periodistika, desenvolvido
por Tobias Peucer e seu grupo. Foi em 1690 que Peucer apresentou
sua pioneira tese de doutorado sobre jornalismo /'De Relationibus
Novellis" à Universidade de Leipizig, onde já
investiga de forma científica a maioria dos temas hoje
sistematizados pelos centros de estudos avançados na
área.
A
tese "Os Relatos Jornalísticos", com efeito,
abrange considerações sobre temas muito atuais
no jornalismo, como ética, utilidade, amenidade, registro,
linguagem, censura, sigilo, sensacionalismo, temática,
fontes e lucratividade. Dentre tal amplitude de enfoque, destaca-se
no tópico §VIII uma definição etiológica
do "Zeitung", marcadamente em suas bases materiais,
ao considerar que "as causas da aparição
dos periódicos impressos com tempestiva freqüência
hoje em dia, são em parte a curiosidade humana e em parte
a busca de lucro, tanto da parte dos que confeccionam os periódicos,
como da parte daqueles que os comerciam, vendem".
Tal
proposição, embora não dominante na argumentação,
evidencia as raízes mercantis e comerciais de uma atividade
que transformaria para sempre a humanidade, ao promover a ruptura
de um mundo predominantemente oral e plantar a semente da onipotente
sociedade da informação, embasada na leitura passiva
e repleta de ambigüidades residuais e artifícios
políticos, mas também aberta ao exame lógico
da linguagem, à abstração, à reflexão
e, hipótese mestiça, à mudança.
As
constatações que Roger Chartier e Guglielmo Cavallo
realizaram sobre o desenvolvimento de um público leitor
e sobre a disseminação do livro na Europa renascentista
lançam perspectivas históricas complementares
sobre este quadro.
Também
Marques de Melo destaca que "a própria imprensa,
que viabilizou tecnologicamente o jornalismo, (...) surgiu como
resultado de crescentes exigências sócio-culturais
que se manifestaram na nascente engrenagem burocrática,
nas operações mercantis e financeiras que movimentavam
as cidades, na circulação mais rápida das
idéias e dos inventos que tornaram a reprodução
do conhecimento um fator político significativo".
Em
um momento em que os Estados e as línguas nacionais eram
fixados pela palavra impressa, o monopólio do saber e
o autoritarismo medieval são questionados pelo surgimento
de uma incipiente consciência crítica e reflexiva.
Já
esse jornalismo embrionário, por sua natureza e implicações
políticas, se transformou em ameaça ao poder instituído,
uma perigosa "máquina de ensinar" como bem
comparou McLuhan , sendo rapidamente mimetizado em instrumento
governamental, subtraído da proteção da
Igreja Católica que o utilizava para propagar a Bíblia
e mergulhado em uma nova era de regulação, controle
e censura, onde a mera publicação de informações
sobre a atualidade e o cotidiano se configurava passível
de pena nas fogueiras da Inquisição.
Talvez
este contexto de exceção, que se prolongou pela
Idade Moderna afora, explique a hibernação que
os estudos comunicacionais sofreram por séculos, após
as bem-sucedidas experiências analíticas do grupo
de Leipizig. Em termos práticos, o moderno jornalismo
só emergiria com o apogeu da burguesia e com a abolição
da censura prévia no século XVIII, mas apenas
no início do século XIX, na mesma Alemanha, é
que seus estudos avançados seriam retomados, notadamente
pelo primeiro curso sobre "Ciência da Imprensa"
realizado na Universidade de Breslau em 1806.
No
entanto, a estruturação do campo de pesquisa só
iria ter continuidade, como citado, ainda mais à frente,
na passagem daquele século. Momento histórico
de desenvolvimento e industrialização acelerada,
o período propiciou a gestação da "Ciência
da Comunicação" como fator de integração
das sociedades, ramo baseado nos sistemas biológicos
e em conceitos como "organismo-rede". Cursos, programas,
escolas, universidades e institutos são fundados entre
1869 e 1916 em países como França, Suíça,
EUA e Alemanha. Em 1907, Karl D'Esther apresentou na Universidade
de Münster a primeira tese universitária dos tempos
modernos sobre jornalismo, consolidando a Alemanha como centro
de excelência pioneiro na área.
Deste
país também viria um dos maiores estudiosos do
jornalismo no século XX, Otto Groth (1883-1965). Ele
foi jornalista profissional entre 1906, quando iniciou como
correspondente do Frankfurter Zeitung, e 1934, quando interrompeu
sua carreira devido à ascensão do nazismo. Aluno
de Max Weber e doutor em economia política e direito,
Groth publicou entre 1928 e 1930 o trabalho Die Zeitung, desde
então obra clássica dos estudos sobre jornalismo,
onde definiu as bases para o desenvolvimento teórico
da área.
A
partir de 1948, assume a cátedra de ciência jornalística
do Instituto de Jornalismo da Universidade de Munique e desenvolve
importante pesquisa sobre os fenômenos jornalísticos,
essencialmente centrada na imprensa.
Seus
livros posteriores apresentam a sistematização
das diretrizes filosóficas da "ciência do
jornalismo", compreendida por ele como investigação
autônoma de obras culturais, com objeto e método
próprio. Ao método, como decorrência natural
do objeto, define como imperativo espontâneo, que surge
na medida em que se desenvolve o processo de investigação.
Ao
objeto, dividiu como Periodik, Periodika e Periodikum, instrumentos
culturais diferenciados apenas em grau e com limitações
conceituais, que correspondem, respectivamente, aos jornais
(que visa comunicar constantemente a um público não
limitado o conhecimento atualizado de todos os campos da vida),
revistas (destinadas a comunicar constantemente, a setores específicos
ou não, o saber dos objetos que se superam progressivamente
seja em todos os campos, com uma atualidade limitada, seja em
campos específicos, com atualidade ilimitada) e folhas
(destinadas a comunicar constantemente, em um período
limitado ou não, o saber dos objetos específicos
de intrínseca atualidade).
Afastando
as críticas que apenas creditam ao jornalismo o status
de "técnica sofisticada", Groth acrescenta
que o estabelecimento de um princípio fundamental ("ser
e essência") é necessário para estruturar
a "nova ciência". Este princípio estaria
na investigação das características de
cada um dos meios, e não em seus conteúdos.
Outra
preocupação, talvez devido às experiências
de expressão ideológica com a poderosa máquina
de propaganda que o autor vivenciou na Alemanha nacional-socialista,
é com a diferenciação do novo campo em
relação à publicística (pesquisa
sobre opinião pública com objetivos de manipulação).
Em
busca do "importante fundamental", Groth analisa as
características da "nova ciência", estabelecidas
como periodicidade (efeitos mentais da repetição
como "ritmo de vida", que formam uma comunidade no
espaço e no tempo através da duração),
atualidade (característica e meta do jornalismo como
mediador, "momento do tempo" traduzido em fatos atuais),
universalidade ("mundo presente" tornado compreensível
pelo campo de conhecimento humano) e difusão (potencialidade
de acesso geral, dividida em extensiva, de base geográfica,
e intensiva, de base socioeconômica e cultural, inversamente
proporcionais).
Tais
características são funcionalmente articuladas
e acionadas pelos mecanismos que determinam a necessidade social
da informação, traduzida pelo anseio coletivo.
O pensador alemão, a partir da análise destas
características, define matematicamente as relações
funcionais entre elas e elabora as cinco leis que as regem.
De
forma esquemática, teremos:
As
Leis de Groth:
1a
Lei: D = f (U) - quanto mais (ou menos) ampla a universalidade,
maior (ou menor) a difusão;
2a Lei: P = f (A) - quanto mais (ou menos) atualidade, maior
(ou menor) a periodicidade, seja, maior (ou menor) freqüência
de publicação
3a Lei: U = f (D) - quanto maior (ou menor) o público-alvo,
maior (ou menor) a universalidade;
4a Lei: A = f (P) - quanto menor (ou maior) a periodicidade,
menor (ou maior) a atualidade;
5a Lei: P = f (U A) - quanto maior (ou menor) universalidade
e atualidade, maior (ou menor) a periodicidade, seja, maior
(ou menor) freqüência de publicação;
D = f (U A) ? quanto maior (ou menor) universalidade e atualidade,
maior (ou menor) a difusão.
Neste
modelo interativo, o jornalismo é concebido como um processo
social contínuo, articulado pela relação
(periódica) entre organizações formais
(emissoras) e coletividades (público), através
de canais de difusão (veículos) que determinam
a transmissão de informações (atuais) em
função das expectativas da coletividade (culturais
ou ideológicas). Unindo emissor e receptor, estão
os fatos.
Ainda
como características da Periodika, correlatamente Groth
estabelece os quatro "conceitos de perfeição",
que definem a regência da periodicidade pela lei da repetição
mais freqüente possível, da universalidade pela
lei do conteúdo mais amplo possível, da atualidade
pela lei da publicação mais rápida possível
e da difusão pela lei da propagação mais
ampla possível.
Novamente,
para rebater as inevitáveis críticas de "idealismo"
deste modelo, o pai da "ciência do jornalismo"
reitera que as leis acima enumeradas teriam vigência em
ações puramente jornalísticas, não
se considerando a influência que fatores psicológicos,
sociais, econômicos e técnicos exercem sobre a
atividade na prática cotidiana. Admite também
a importância da realização técnica
no jornalismo (na estruturação, composição,
apresentação e conteúdo), porém
submetida ao embasamento conjunto da teoria científica-jornalística
e da herança técnica e cultural.
A
pesquisa e o ensino nos EUA
Como
potência militar consolidada e centro da explosão
tecnológica e midiática, no século XX os
Estados Unidos passaram à frente na produção
de conhecimento sobre jornalismo. Sua influente teoria, com
nomes como Robert E. Park, Walter Lippmann, Raymond Nixon, Elihu
Katz e correntes de pensamento como a Escola de Chicago e a
Mass Communication Research, além da inovadora prática
de figuras representativas como Tom Wolfe, Gay Talese, John
Hersey e Truman Capote, atestam a hegemonia conquistada pela
sociedade norte-americana no campo dos estudos e atividades
comunicacionais na primeira metade do século passado.
Tal
desenvolvimento teórico e prático foi provavelmente
consubstanciado pelo ensino de pós-graduação
naquele país, iniciado ainda em meados do século
XIX como conseqüência das transformações
econômicas ocorridas no período. Marques de Melo
aponta o sistema educacional predominante na época como
seguidor dos padrões britânicos, de formação
humanística globalizante (liberal education).
Mas
novamente foi a Alemanha, onde até então eram
formados seus técnicos, que inspirou o modelo adotado
para a implantação do sistema educacional. No
final, como o abandono da separação das unidades
de graduação e pós-graduação
devido ao seu caráter deficitário, o resultado
prático foi uma justaposição do modelo
britânico (professional school) com o alemão (graduate
school).
Os
objetivos das instituições se dividiram em duas
vertentes: formação humanística (docentes
e pesquisadores) e profissionalizante (técnicos), ambas
destinadas à obtenção do doutorado. Com
a posterior introdução do sistema de seminários
e o surgimento do grau de mestre (na época equivalente
à nossa licenciatura), visando a formação
de pessoal qualificado para o ensino secundário, houve
a interligação entre college e graduate school,
já inseridos no contexto da university, com todos os
níveis de ensino superior centralizados administrativamente.
Conforme
os críticos norte-americanos, nessa altura se iniciou
a crise de qualidade da indústria educacional, com a
massificação do ensino e a conseqüente perda
de profundidade da reflexão. O caráter de competitividade
e a pedagogia opressiva são características deste
inchaço, além da saturação do mercado,
o que não impediu que atingisse padrões científicos
incomparáveis. Observamos que, mesmo em crise em sua
matriz, o modelo foi de modo geral praticamente transplantado
para o ensino superior no Brasil, com todos os seus desequilíbrios
e disfuncionalidades em relação ao nosso contexto.
Ecoando
a tese de Peucer, a expansão comercial dos veículos
sensacionalistas deu o tom desde o início na indústria
cultural, eclipsando o caráter idealista e liberal de
serviço público da comunicação em
seus primeiros tempos. A implantação do ensino
superior de jornalismo vinculou-se à busca de responsabilidade
social (ou talvez controle social da imprensa) por parcela da
intelectualidade norte-americana, mas as iniciativas que vingaram,
entretanto, moldaram-se na práxis e não nesse
idealismo elitista. Após tentativas pioneiras frustradas
por falta de apoio material, como da Washington College (1869)
e da Kansas State College (1873), no século XX finalmente
surgiriam cursos em Illinois (1904), Wisconsin (1905) e outras
universidades.
A
primeira escola de jornalismo (Missouri, 1908) surge com uma
tendência vocacionista, voltada aos padrões técnicos
e éticos, e integrando uma filosofia globalizante (que
incluía trabalho editorial, reportagem, propaganda, impressão,
circulação) com outra específica (captura,
apresentação, interpretação da notícia).
Posteriormente, com uma doação do editor Joseph
Pulitzer, que hoje dá nome ao principal prêmio
em jornalismo nos EUA, Columbia (1912) igualmente implantaria
sua escola de jornalismo, seguida por muitas outras.
Com
um caráter técnico-profissional, na década
de 30 as escolas instituem os cursos de pós-graduação
e reformulam seus currículos, porém sem a ênfase
na investigação sistemática dos fenômenos
jornalísticos que caracterizou a tradição
européia. A busca por uma metodologia científica
que abrangesse o relacionamento entre imprensa e sociedade justapôs
os estudos de jornalismo com as ciências sociais, que
desde o início do século já produzia teses
sobre a atividade jornalística.
As
transformações estruturais nos meios de comunicação
também provocaram a ampliação e diversificação
do universo das disciplinas do campo, gerando novas áreas
relacionadas com os veículos eletrônicos, como
opinião pública, telejornalismo, cinema, radiojornalismo,
relações públicas e propaganda, que se
separariam em unidades independentes durante as décadas
de 50 e 60.
Após
retrocesso na Segunda Guerra Mundial, os estudos específicos
deram lugar às escolas de comunicação e
os cursos de jornalismo ganharam estruturas curriculares que
abrangiam conhecimento técnico, social, econômico
e histórico mais abrangente, além de programas
interdisciplinares. Comparativamente, olhando de maneira superficial
a estrutura brasileira, com suas exigências para obtenção
dos títulos de mestre e doutor, como disciplinas genéricas
e referentes (teóricas, metodológicas, fenomenológicas
e técnico-profissionais), aulas expositivas, seminários,
orientação, créditos obrigatórios,
exame de qualificação, revisão de literatura
e tese, com pequenas exceções verificamos a sua
quase que equivalência ao modelo norte-americano.
O
procedimento de avaliação das qualidades da preparação
acadêmica, feita com base na correlação
de conceitos, capacidade de síntese e habilidade para
reflexão, também parece se encaixar ao padrão
universitário ainda hoje presente nas universidades brasileiras.
Em
1975, Marques de Melo destacava as lições daquele
modelo que seriam aplicáveis ao Brasil, como a organização
curricular, orientação interdisciplinar, formação
humanística, dimensão ética, flexibilidade
experimental, leitura como instrumento de aprendizado, intercâmbio
com profissionais e espírito de equipe nos quadros docentes.
Quase
que simultaneamente a este desenvolvimento das instituições,
a Escola de Chicago criou uma corrente de pensamento com um
enfoque microssociológico da comunicação
na organização da comunidade, relacionando-o a
uma reflexão sobre o papel da ferramenta científica
na resolução dos desequilíbrios sociais
e expandindo as fronteiras do conhecimento comunicacional.
O
pesquisador Robert Ezra Park (1864-1944) foi um dos destacados
membros desta escola. Repórter e militante da causa negra,
em 1903 Park desenvolveu uma tese de doutorado sobre "a
massa e o público", mas só se tornaria docente
em 1913, quando transformaria sua prática de jornalista
em pesquisas sociológicas nos bairros de periferia. Seguidor
dos ensinamentos do filósofo alemão Georg Simmel
(1858-1918), que descreve a personalidade urbana como estado
de espírito fundamentado psicologicamente na intensificação
do estímulo nervoso, na mobilidade e na locomoção,
Park concebe a cidade como laboratório social.
A
"ecologia humana", problemática central da
Escola de Chicago, reside justamente em conceitos como marginalidade,
desorganização, aculturação e assimilação.
A partir da função assimiladora dos jornais e
da natureza da informação, este enfoque gerou
contribuições práticas à questão
da imigração e integração das comunidades
étnicas na sociedade norte-americana. Tratava-se de uma
tentativa de implicação sistemática do
esquema teórico da ecologia vegetal e animal ao estudo
das comunidades humanas. Neste processo pragmático, Park
contrapõe o nível "biótico",
relações simbióticas constituídas
por formas não-planificadas de cooperação
competitiva, ao nível "sócio-cultural",
assumido pela comunicação como consenso e que
se impõe como regulador da competição,
permitindo o vínculo social.
Por
esta perspectiva biológica, avaliamos a distinção
que Park, a partir das observações de William
James e outros, faz dos tipos de conhecimento ("conhecimento
de" e "conhecimento acerca de") e suas diferentes
funções. O conhecimento "sintético",
entendido como acomodamento orgânico do indivíduo
ao habitat, a exemplo das plantas, se manifesta como tato, hábito,
senso comum ou mesmo personalidade (acumulação
de experiências). É adquirido subconscientemente
pelos sentidos e não pode ser transmitido formalmente.
A habilidade técnica e a intuição da natureza
humana são exemplos deste tipo de conhecimento, ancorados
que são em um processo de aprendizagem fisiológica,
não comunicável nem articulada.
O
segundo tipo, o conhecimento "analítico", possui
caráter formal, racional e sistemático. Comunicável
e experimental, é baseado na observação
e no fato ordenado sobre uma perspectiva científica.
Substitui a realidade concreta por idéias, e coisas por
palavras, em uma estrutura conceitual lógica. Como "herança
social", a descrição das fontes e do método
são fundamentais neste tipo de conhecimento, que investiga
sistematicamente a natureza sem, no entanto, prescindir do benefício
da percepção.
Com
as leis, que são formulações hipotéticas
experimentais sobre Filosofia e Lógica (idéias),
História (acontecimentos) ou Ciências Naturais
(coisas), pode-se predizer o curso futuro da realidade empírica,
desde que a relação de causa e efeito refira-se
à relação entre as coisas, e não
à relação puramente lógica e intelectual
entre idéias. Aqui encontramos o pragmatismo crítico
da Escola de Chicago, que rejeita a interpretação
dialética dos fatos baseada na política institucional
consolidada e imobilizadora. Sua causa é a necessidade
de transformação efetiva da sociedade.
Para
Park, os dois tipos de conhecimento formam um contínuo,
onde se localiza a notícia. Como notícia, fixos
no tempo e no espaço, os acontecimentos não são
coisas, mas tampouco formam a História, pois são
isolados (incidentes independentes). Também não
são relacionados entre si, com seqüências
causais ou teleológicas, mas dependem da oscilação
do "espírito do público".
Mas
há uma continuidade que inter-relaciona informação
e ação política, passando pela opinião
pública. Em princípio, a notícia não
leva à ação, mas ao debate. Apenas o "presente
especioso", os "fatos como eles se apresentam no momento
do registro, não (como) um estudo definitivo de uma situação",
esta mercadoria perecível, transitória e efêmera,
é que interessa ao jornalismo, fenômeno puramente
secular que desempenha importante papel na ação
política não ao interpretar o fato, mas ao torná-lo
compreensível e interessante. A interpretação,
que forma a opinião pública, se dá no debate
social suscitado pela notícia e manifesta a oscilação
da esfera política entre a vontade e a idéia.
A passagem da informação à ação
política depende da existência de uma comunidade
(o público) que divida a mesma interpretação
dos acontecimentos e desenvolva consciência na apropriação
das mensagens.
Por
outra perspectiva, Luiz Beltrão adverte que "os
fatos correntes expostos pelo jornalismo têm de ser devidamente
interpretados, porquanto informação, orientação
e direção são atributos essenciais do periodismo...".
Polêmica à parte, através do tempo a concepção
teórica (como o mundo) se problematizou e novas categorias
como jornalismo ameno, literário, diversional, interpretativo,
de entretenimento e de incitação se juntaram às
clássicas razões fundamentais de informar e opinar,
todas pretendendo a universalidade, com implicações
políticas, éticas, lúdicas, psíquicas,
econômicas.
Retomando a Park, para não se confundir com boatos ou
lendas ou se transformar em fato histórico, a notícia
deve ser legitimada como documento pela exposição
ao exame crítico de um universo de discurso público,
através de sua publicação. Relacionada
com o insólito e o inesperado, com o súbito e
o decisivo, a notícia, no entanto, trabalha paradoxalmente
com o caracteristicamente simples e comum, "os acidentes
e casos que surgem no jogo da vida". Símbolo do
interesse humano universal e perene, que ultrapassa os próprios
acontecimentos, sua importância imediata é relativa
e depende do fluxo de acontecimentos e das expectativas, de
um caráter mais pragmático do que apreciativo.
À
luz das inovações científicas de sua época,
Park reitera que a importância de um conhecimento está
em sua função na sociedade, em seu uso, e não
na sua validade como ideal. Descreve a notícia como forma
de conhecimento, dos mais elementares do gênero humano,
possuidora de dignidade científica, de um papel emancipatório
e fonte de coesão social, mas também como ferramenta
de tensão circuncêntrica, dispersão e de
manipulação política.
A
adaptação das sociedades e as mudanças
tecnológicas se manifestam na notícia, que tem
como função primordial orientar a sociedade no
mundo real, como a percepção cognitiva o faz com
o indivíduo, para preservar sua sanidade e permanência
e viabilizar as transformações sociais. Na época
de Park, jornalismo, literatura e ficção já
se hibridizavam e a importância da notícia aumentava
com a expansão dos meios. Em nossos dias, mais do que
nunca, com a explosão digital da era pós-industrial,
somos convocados a compreender o que está acontecendo
ao nosso redor e como podemos aperfeiçoar a realidade.
Em
1922, enquanto Park desenvolvia suas idéias na Universidade
de Chicago, a reflexão acadêmica americana sobre
comunicação e jornalismo deu mais um passo à
frente, quando Walter Lippmann publicou o livro Public Opinion,
com reflexões sobre o papel do público nos regimes
políticos democráticos. Jornalista brilhante com
formação em Harvard, Walter Lippmann (1889-1974)
foi conselheiro da presidência de Woodrow Wilson (1913-1921),
além de principal colunista do The Herald Tribune, do
Washington Post e do New York World, de Joseph Pulitzer.
Sua abordagem demonstrava que a compreensão dos complicados
detalhes das questões tecnológicas, políticas
e econômicas exigia um nível tão elevado
de sofisticação e de especialização
que, para o cidadão comum, era inviável manter-se
atualizado.
No
capítulo A Natureza da Notícia, de seu clássico
livro, Lippmann discorre sobre a limitação espacial
da reportagem e sobre as condições em que os acontecimentos
se transformam em notícias. Escreve o autor, que "o
essencial é que, antes de se converterem em notícia,
os acontecimentos se tornem noticiáveis por um ato mais
ou menos notório". Mais ainda, para fugir dos boatos
e da especulação, "o curso dos acontecimentos
precisa assumir certa forma definível e, enquanto não
atingir a fase em que algum de seus aspectos é fato consumado,
não se estrema a notícia do oceano de verdades
possíveis".
Para
evitar controvérsias de interpretação do
ato objetivado que se impõe (já que não
são meramente espontâneos), regras e mecanismos
de registro, em vários graus de exatidão, são
condições necessárias para a existência
da notícia. Sem o emprego de um critério de escolha,
normalmente os acontecimentos que envolvam estado de espírito
ou registros sem medição objetiva não se
tornam notícia, sendo vistos como opinião pessoal
ou simplesmente ignorados.
Uma
vez que não espelha as condições sociais,
a irrupção do curso da notícia se localiza
comumente na intersecção dos negócios do
povo com as autoridades. A importância crescente da mediação
de massa na vida diária evidencia a existência
cada vez mais complexa e organizada da sociedade, que já
não satisfaz a necessidade de participação
social de seus membros com a comunicação direta
(Martín Serrano, 1982).
É
neste ponto da intermediação que Lippmann insere
o assessor de imprensa, que se interpõe entre o grupo
social e os jornais, elo do processo de interação.
Como os fatos não são simples ou óbvios,
os assessores têm a missão de "escolher"
os fatos tornados públicos, atuando como "censores
e propagandistas" simultaneamente. Seu compromisso com
a verdade (ou com as condições sociais reais)
encontra um limite na concepção e formulação
dos interesses de seu empregador. Sem compromisso direto com
o interesse público, o assessor inicia movimentos através
de recursos publicitários que envolvem seus clientes
em acontecimentos que já são notícia. Neste
processo, se evidencia que o problema para a indústria
não é o mesmo que para o público.
Como
estilização da matéria-prima social, o
jornalismo não espelha a realidade não só
por uma limitação instrumental, mas também
política. Sem a intervenção e o envolvimento
direto dos agentes sociais e dos estereótipos reconhecíveis
pelo público, os "fatos não se transformam
em notícia". A realidade abstrata nas relações
industriais se manifesta em diversos pontos de vista, com cada
ator revestindo-a com seus próprios sentimentos, o que
explica que uma notícia nascida do ressentimento ou da
esperança venha a público como um ataque à
produção.
Para
Lippmann, portanto, o ato notório assinala a complexidade
das circunstâncias, o comunicado estereotipado o publica
e o leitor decodifica seu significado, de acordo com a interferência
da ação nos seus interesses e sempre além
(ou aquém) dos reais motivos que a originaram ("significado
excêntrico"). A notícia, como narrativa das
fases notórias interessantes, buscar traduzir a situação
como experiência familiar aos leitores e a reveste, aos
olhos dos envolvidos nos acontecimentos, de falseamento. Trata-se
de um jogo cíclico, pois as pressões sobre o jornal,
que são intensas e surgem desde as dificuldades técnicas
e profissionais até as políticas e econômicas,
geram incertezas que só se dissipam em parte apenas com
a veiculação do indiscutível e do interessante.
Se
"onde inexiste o processo constitucional na indústria
e a investigação atenta e especializada da prova
e das pretensões, é o fato sensacional para o
leitor que quase todo jornalista buscará", então
a notícia age contra os grupos não organizados,
ao registrar os desdobramentos e não as causas. Isto
porque as razões concretas que originam os fatos são
inatingíveis, pois a sutileza e profundidade de uma verdade
sucumbem sem o registro exato e a análise quantitativa.
Porém,
o desprezo total das sutilezas, o estereótipo, a padronização,
a sistematização são necessários
perante a urgência de interesse para o público
e como garantia de economia de esforços e de tempo. Assim,
não é a cultura ética, mas as convenções
que fazem com que o público participe e se integre na
notícia, dando-lhe pistas e estereótipos com que
forme sua opinião e se predisponha a não aceitar
pontos de vistas diferentes. É então que o jornal
já não pode mudar de opinião sem perder
seu leitor, tendo como alternativa o esvaziamento do tema ou
a manutenção da abordagem. Quanto a este último
ponto, Lippmann foi enfático, ao cunhar sua notória
sentença de que "quando todos pensam o mesmo, ninguém
está pensando".
"A
lógica do sistema da produção da informação
no mundo ocidental nos leva a estabelecer, como resultado do
mesmo, um discurso homogêneo, se bem que é possível
que cada meio, de acordo com sua política editorial,
dê uma visão diferenciada aos assuntos ainda que
os assuntos tratados nos distintos meios sejam praticamente
os mesmos. Assim, cria-se esta imagem de realidade única
que transmitem os mass media".
Miquel Rodrigo Alsina
Mais
do que nunca, com a crise ética que se abateu sobre o
jornalismo oficial norte-americano, que além de aderir
em bloco à política militar da Casa Branca, ainda
"embutiu" (embedded) seus repórteres em unidades
do exército (onde acabariam por vezes atuando como "localizadores
do inimigo") na recente invasão do Iraque (2003),
demonstra que é chegada a hora de uma nova reflexão
sobre a profissão e sua teoria, que como qualquer campo
do conhecimento humano transmuta-se no tempo exigindo a permanente
análise sobre seu papel na emancipação
do homem e na independência de pensamento.
Talvez
já esteja acontecendo.
A
síntese latino-americana
Com
o desenvolvimento da indústria da comunicação
entre os anos 30 e 50, surgiu na América Latina um pensamento
inovador que se cristalizou na Escola Latino-Americana de Comunicação
(ELACOM). Mesmo sem um marco epistemológico definido,
a comunicação passou por rápida ascensão
como disciplina no período, tornando-se progressivamente
independente e autônoma das ciências sociais graças
à originalidade de seus autores. Se os seus primeiros
cientistas provinham de diversas áreas, o que por vezes
acarretou falta de foco devido ao caráter heterogêneo
das abordagens, a especificidade da organização
política e cultural auxiliou no processo de conquista
de autonomia nas sociedades latino-americanas, marcadas pelo
que Martín-Barbero chamou de subdesenvolvimento acelerado
e pela modernidade compulsiva.
O
clima cultural comum e as influências recíprocas
que propiciaram a singularidade do pensamento pioneiro desta
escola a partir dos anos 50, conforme mostra estudo de Paulo
da Rocha Dias, podem ser identificados em iniciativas precursoras
quase esquecidas de três de seus pólos de produção:
Brasil, Bolívia e Cuba.
Unidos
pela erudição, pela metodologia (que emprega técnicas
do jornalismo) e pelo intercâmbio disciplinar, estes pólos
possuem papel central no desenvolvimento do campo no continente.
Paralelas aos primeiros cursos de jornalismo na região,
as obras destes pesquisadores precursores, todos de áreas
conexas e com formação em política e jurisprudência,
convergem em seu interesse, em sua identidade híbrida
e mestiça (como síntese dos paradigmas das escolas
européia e norte-americana) e na intensa originalidade
de sua produção científica, adaptada às
condições do continente e comprometida com problemas
sociais e soluções políticas.
Exemplares,
ao tratarem conjuntamente e à sua maneira a história
do jornalismo, as obras O Livro, o Jornal e a Tipografia no
Brasil (1946), de Carlos Rizzini, La Cultura y el Periodismo
em América (1925), de Gustavo Adolfo Otero e Socioperiodismo
(1953), de Octavio De la Suarée Tirapo, são marcos
fundadores do pensamento científico autóctone
do continente em suas décadas iniciais de produção.
O
jornalista, político e empresário do jornalismo
Carlos Rizzini (1898-1972) foi o primeiro catedrático
brasileiro de jornalismo, na antiga Universidade do Brasil,
além de ter sido por muitos anos principal editor do
carro-chefe do império de comunicações
de Assis Chateaubriant, os Diários Associados. Seu clássico
livro investiga a pré-história do jornalismo e
a circulação de notícias no período
colonial, dando início à moderna bibliografia
brasileira em comunicação.
O
jornalista, professor e escritor cubano Octavio De la Suarée
Tirapo (1903-1994) instituiu uma nova disciplina, o sociojornalismo,
que investiga sob perspectiva própria as manifestações
e impactos da imprensa na sociedade moderna. Já o diplomata,
historiador, sociólogo, escritor e jornalista boliviano
Gustavo Adolfo Otero (1896-1958) foi diretor do Instituto de
Belas Artes da Universidad de La Paz e viajou por praticamente
toda a América Latina.
Otero
escreveu peças históricas, biografias, relatos
de viagem, textos literários e ensaios sobre cultura
e jornalismo. Seu livro monumental é baseado essencialmente
em fontes primárias e constituído por estudos
panorâmicos e monográficos sobre a imprensa em
toda a América Latina por mais de três séculos.
Talvez
a maior contribuição desta geração,
além da ruptura da ilusão de unicidade da realidade,
seja o método de descrição, comparação
e explicação dos fenômenos comunicacionais,
ainda hoje utilizado nas escolas brasileiras. Mas o legado é
muito maior. Se Rizzini foi o pioneiro dos estudos midiáticos
no Brasil, De la Suarée criou uma definição
inovadora para a ciência da imprensa, também ainda
funcional, incluindo psicologia, ética e informação.
No
caso de Otero, que aborda a evolução do jornalismo
na América Latina como logaritmo de evolução
das cidades, pode-se até fazer uma correlação
com os estudos de Park, ele próprio profundamente influenciado
por Simmel, mas não completamente, já que em nosso
continente o conceito-chave para a reflexão analítica
parece ter sido sempre o da alteridade. Octavio Paz, também
autor latino-americano com projeção mundial, indicou
tal direção em 1983 ao escrever que "a idéia
de sociedade como um sistema de comunicação deveria
modificar-se, introduzindo as noções de diversidade
e contradição: cada sociedade é um conjunto
de sistema que conversam e polemizam entre si (...) Os meios
não são a língua: são a sociedade".
Diluída
no dilema, a expressão simbólica do continente
obedece a padrões próprios, com seus fluxos de
desenvolvimento urbano, sua profunda cisão social e sua
apropriação diferenciada da informação.
Nos nossos dias, entretanto, inicialmente constatamos que tal
complexidade recebeu inovador tratamento científico por
uma vigorosa produção local, para depois lamentarmos
o risco de dispersão e esquecimento que sobre ela paira
em seu próprio território de concepção.
A
consolidação do campo está adiantada, mas
não concluída. Frente ao desafio do novo, o jornalismo
brasileiro talvez tenha abandonado suas raízes transformadoras
sem o perceber.
A
tensa complexidade da América Latina exige que fiquemos
atentos a todos os indícios, libertos do complexo de
colonizados e imunes à obsolescência científica
e ideológica.
BIBLIOGRAFIA
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Teorias da Comunicação. SP: Edições
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José Marques de. História do Pensamento Comunicacional.
SP: Paulus, 2003.
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José Marques de. e VIANNA, Ruth. (Org.). Raízes
Forâneas do Pensamento Jornalístico Brasileiro.
São Paulo, 2003. 80 p. (Compilação em Fotocópia).
*Marcelo
Januário é jornalista e mestrando na ECA/USP.
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