Nº 9 - Dez. 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 


ENSAIOS
 

Tempos depois,
uma nova Guerra-Fria


Por
José Amaral Argolo*


Lavrenti Beria [1] estava morto quando Nikita Khruschev, Primeiro Secretário do Partido Comunista da União Soviética, pronunciou o longo, célebre e hoje não mais secreto discurso durante o XX Congresso do PCUS (fevereiro de 1956), denunciando o culto à personalidade e os crimes praticados por ordem de Joseph Stálin.
Reprodução

Stálin e Lavrenti Beria (1899-1953)
O homem que, com coração e pulso de ferro, liderou o povo e o exército da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas durante a Grande Guerra Patriótica (1941-1945) contra as forças da Wehrmacht, também prestava conta dos seus atos junto ao Cosmo.

No entanto, as engrenagens da espionagem, contrapropaganda e desinformação, azeitadas desde a vitória dos bolcheviques (1917), mantinham-se – como ainda hoje – em perfeitas condições operacionais.

Dezenas de milhares de agentes cuidadosamente instalados na Europa ainda devastada; nas metrópoles e cidades do interior dos Estados Unidos da América; nos escaldantes sertões do Continente Africano e nos rincões do Oriente Próximo, asseguravam um gigantesco fluxo de mensagens às equipes de supervisores, analistas e decodificadores do recém-criado (13 de março de 1954) Comitê de Segurança do Estado (KGB), sucessor dos primeiros órgãos de inteligência e contra-inteligência da URSS; quais sejam: Cheka (instituída em dezembro de 1917 por determinação de Vladimir Illich Ulianov), GPU (Administração Política do Estado), NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos), NKGB (Comissariado do Povo para Segurança do Estado, órgão originário do NKVD e posteriormente reintegrado a este no início da Grande Guerra).

Muito embora os imensos complexos de edifícios e propriedades rurais destinados a prover conforto, isolamento necessário e treinamento rigoroso aos agentes que, posteriormente, seriam enviados ao exterior (protegidos pelas mais diferentes histórias de cobertura) ficassem afastados da Capital, o imaginário ocidental considera até hoje o prédio da Lubyanka, no coração de Moscou, o mais importante de todos.

Talvez no início fosse assim.

Com o passar dos anos e, muito especialmente após a morte de Joseph Stálin e os desdobramentos da política externa soviética, aquela construção de sólidas paredes passou a abrigar tão-somente seções administrativas do KGB e uma central de interrogatórios (localizada nos porões) onde, em câmaras à prova de som, prisioneiros “confessavam os seus crimes” sob tortura e, em seguida – a semelhança do que ocorreu com o coronel Oleg Penkovski -, eram executados.

Vejamos algumas peculiaridades do jogo fascinante da espionagem.

A História confirma que as atividades no campo da inteligência devem estar revestidas de total sigilo para preservar os agentes de campo e seus controladores onde quer que estejam. O ofício exige o anteparo da semi-invisibilidade e recursos que somente os Estados Nacionais (e talvez algumas mega-corporações) podem oferecer.

Ao longo do Século XX nenhum outro país superou a URSS no quesito espionagem [2]. Seja pelo refinamento e/ou planejamento das operações, recursos econômicos disponibilizados, pessoal qualificado e disseminado tanto no extenso território da União Soviética como no exterior (incluindo os países ocupados e anexados durante o Segundo Conflito cujos órgãos de Inteligência foram  redimensionados e transformados em tentáculos do Poder soviético).

No auge da sua força (e quando ainda dispunha de uma extensão territorial quase duas vezes o tamanho do Brasil [17 milhões de quilômetros quadrados] e população estimada [no período supra-assinalado] em mais de 300 milhões de pessoas pertencentes às mais diferentes etnias), a identificação de um simples agente por parte dos órgãos de Inteligência ocidentais constituía uma tarefa quase impossível, principalmente devido às dificuldades de acesso às regiões onde foram construídas cidades secretas e campos de treinamento.

Localidades onde, por exemplo, as pessoas (por hipótese) somente falavam inglês sem sotaque, mantinham-se atualizadas com as novidades tecnológicas e culturais para, somente então, após cinco anos ou mais de imersão total e algumas viagens aparentemente inofensivas ao exterior [principalmente nos países do Bloco Socialista], eram lançadas em missões complexas cuja duração se estendia, muitas vezes, por duas, três décadas de paciente trabalho.

Histórias de cobertura não faltavam. Os documentos de famílias inteiras dizimadas pelas tropas especiais alemãs durante o avanço na direção de Moscou em 1941 foram reaproveitados e seus antigos titulares (principalmente crianças e jovens) ganharam novos (as) fisionomias.

Assim, por ocasião da reviravolta no Conflito, quando o que sobrou das divisões panzer e demais unidades motomecanizadas e da infantaria de assalto da Wehrmacht e das Waffen SS buscou o caminho das linhas de defesa do Dniepr, do Vístula, do Danúbio e do Reno; em meio à massa de refugiados que deambulava na direção do que restou de suas vilas e aldeias, seguia uma teia de agentes experimentados, motivados e apoiados financeiramente, levando-se em conta os estragos proporcionados por cinco anos de conflito armado com a Alemanha e seus aliados.

Naquele gigantesco cenário de devastação que se estendia da Polônia à Finlândia, passando pela Hungria, Romênia, Iugoslávia, Grécia, Letônia, Estônia, Lituânia, parte da Áustria e a própria Alemanha (sem esquecer a França, Bélgica, Holanda e Dinamarca); entre tantas centenas de milhares de pessoas que escaparam às batalhas campais e bombardeios aéreos estratégicos, um número incalculável de “comerciantes”, “profissionais liberais”, “educadores” etc. misturou-se à geléia geral e desapareceu no anonimato.

A bem dizer o Primeiro Tempo do jogo começara muito antes, nos anos vinte, em seguida à criação da Cheka, mas os movimentos do Bispo, do Cavalo, da Torre e da Rainha ganhariam força exatamente três décadas depois, quando todos os simpatizantes e controladores estavam a postos para os embates silenciosos da Guerra Fria. Como aconteceu com Kim Philby, MacLean, Burgess, Vassall e outros tantos.

Peão 2 da Rainha

A Inteligência (diferentemente da Inteligência Humana) aplicada na produção do conhecimento e/ou captação de dados, assim como na arte dinâmica e sutil de desinformação, será sempre tão bem articulada na sua gênese quanto melhores e mais precisos os indicadores históricos e culturais que fundamentam a percepção dos seus planejadores.

Não sem razão o Museu Britânico esteve fechado à visitação publica até o final do Século XIX. A clientela privilegiada era composta pelos diplomatas, cientistas, historiadores e agentes dos serviços de Inteligência da Coroa.

Destacam-se igualmente nesse patamar tanto os centro-europeus (dentre os quais os judeus da Diáspora, que herdaram singular talento dos seus antepassados e organizaram um eficiente sistema de espionagem e contra-espionagem) e os orientais (chineses, coreanos e japoneses). Mais recentemente o mundo islâmico passou a ocupar-se desse mister com resultados práticos bastante consideráveis.
De volta ao Leste Europeu.

Se, desprovidos das paixões ideológicas, examinarmos a densidade do amálgama russo (estendendo-se de Pedro o Grande a Nicolau II e, deste, a Lênin e seus sucessores) veremos uma grande quantidade de pessoas dotadas de sólido arcabouço intelectual: poetas, cientistas e romancistas; artistas, militares, jornalistas, professores etc, que contribuíram para sedimentar os valores daquele povo.

Percebe-se, de imediato, o refinamento e a delicadeza na arte do ballet, a riqueza da poesia, o estoicismo dos soldados e oficiais nos campos de batalha, os sentimentos despertados pela música; a grandiosidade e vastidão dos cenários descritos pelos escritores são elementos indissociáveis à compreensão da alma russa.

Some-se nesse esforço tentativo o longo e rigoroso inverno que modifica substancialmente o comportamento das pessoas, aumentando a introspecção e redimensionando o foco das atenções para outras atividades, inclusive lúdicas, como o jogo-de-xadrez (paixão nacional, assim como as obras de Alexander Pushkin, Fiodr Dostoievski e Leon Tolstoi).

Ora, o xadrez (cuja prática sempre foi e continua sendo estimulada pelo Estado nas unidades de ensino – todos os níveis – durante a existência da URSS) é um jogo que exige astúcia e qualidade em cada lance. Um simples movimento com um dos peões pode vir a ser transformado em armadilha mortal para o Rei.

Foram, por conseguinte, muito bem acolhidas pelos líderes revolucionários de 1905 e 1917 as participações tanto daqueles jovens intelectuais do estrangeiro (caso de Feliks Dzerjinski, polonês) como dos nacionais, não importando a etnia, nas organizações bolcheviques (a exemplo de Leon Davidovitch Bronstein: Leon Trotsky, de ascendência judaica, criador do Exército Vermelho e, não fora a ação subterrânea e ininterrupta de Stálin, o provável sucessor de Vladimir Illich Ulianov).

No Estado Soviético, e em que pesem os gastos gigantescos com o desenvolvimento e produção de armamentos, os recursos destinados à manutenção e/ou implementação das operações de Inteligência eram praticamente inesgotáveis. Privilegiou-se o aperfeiçoamento dos homens/mulheres nelas engajados (as), independentemente dos avanços tecnológicos.

Apoiada por uma serie de êxitos nos quesitos Agitação e Propaganda (Agit-Prop, segundo a terminologia leninista) a URSS conquistou e ou ampliou posições em todos os Continentes. Mesmo hoje, passados cinqüenta anos do discurso de Nikita Khruschev no Politburo, são inegáveis os resultados práticos obtidos pelas esquerdas, principalmente na Europa Ocidental, África e Américas.

Assim também aconteceu no Brasil. A História de algumas operações secretas no País ainda está para ser escrita. Mas alguns indicadores e/ou personagens são conhecidos.

Por exemplo, as atividades de Olga Benário (companheira de Luís Carlos Prestes, Secretário-Geral do PCB); as ações destinadas a assegurar êxito na infiltração e exfiltração dos agentes que serviam como correios, transportavam recursos financeiros e/ou prestavam apoio logístico para algumas lideranças revolucionárias e seus grupos-de-fogo; os pesados investimentos realizados principalmente junto ao setor gráfico para a confecção de material de propaganda; a aquisição de lotes de armas curtas e equipamentos de comunicação destinados às frações da guerrilha urbana e rural; as estratégias utilizadas para prover a compra/aluguel de pequenas propriedades no campo ou nas cidades; o treinamento e formação de quadros capazes de dirigir o País na hipótese da vitória nas urnas ou por intermédio da Revolução Armada etc.

Um exemplo singular

O comandante guerrilheiro Ernesto Che Guevara chegou ao Brasil em 1966 (procedente de Praga) antes de viajar incógnito (supostamente como comerciante [identificado como Ramón Benitez]) para a Bolívia, onde instalou um foco insurrecional [que, imaginava, serviria como coluna-mãe para as demais que seriam projetadas em seguida por toda a América Latina]. Poucos meses depois (outubro de 1967) seu grupo era dizimado e ele próprio capturado pelos Rangers bolivianos treinados pelos Estados Unidos, conduzido sob forte escolta para o povoado de La Higuera e executado a tiros no interior de uma pequena escola de ensino fundamental.

Para que viesse no Brasil sem ser incomodado, foi organizado um forte esquema de proteção. Até hoje pouco se sabe a respeito do curto período em que Che Guevara permaneceu em solo brasileiro. Apenas que agentes russos e tchecoslovacos participaram das ações de cobertura. A documentação sobre Che Guevara continua arquivada e classificada como ultra-secreta.

Mesmo assim, apesar de todos os cuidados, Ernesto Guevara foi fotografado pelo Centro de Inteligência do Exército Brasileiro quando embarcava na aeronave [3] que o transportou ao Aeroporto de São Paulo; dali para a frente ele viajou de trem até a fronteira com a Bolívia, de onde seguiu por terra (via Corumbá/Quijarro) até La Paz.

Os cabelos arrancados pela raiz, a barba raspada, os óculos de grau, as próteses dentárias, roupas sóbrias e chapéu, além do passaporte uruguaio utilizado não foram suficientes para evitar que fosse identificado.

Armas, munições e muito dinheiro foram alocados para as organizações da Esquerda Armada não somente durante os Anos de Chumbo como também muito antes (anos vinte e trinta), para fomentar revoltas e acelerar as transformações políticas rumo ao comunismo.

Tchecos, russos, alemães orientais, búlgaros e até mesmo poloneses seguramente atuaram na instalação das redes destinadas a prover o suporte das operações de Inteligência contra os governos que se seguiram ao Movimento Militar de Março de 1964, principalmente no âmbito das Operações Psicológicas.

Essas Operações, na sua quase totalidade, foram muito bem difundidas por intermédio da Imprensa – e não somente por parte das corporações noticiosas engajadas. Gráficas regulares e clandestinas imprimiam milhões de exemplares de jornais alternativos, cartazes, panfletos e manifestos contra o regime, de tal sorte que os objetivos de médio e longo prazos foram alcançados.

Como reforço a História das operações secretas na contemporaneidade vale registrar que, no âmago do KGB, funcionava a pleno vapor um Departamento de Desinformação. Como observaram Victor Marchetti e John D. Marks (A CIA e o Culto da Inteligência, p.141): “A propaganda negra de um lado, e a desinformação de outro, são virtualmente indistinguíveis. Ambas referem-se à difusão de falsas informações a fim de influenciar a Opinião Pública e dificultar as ações das agências inimigas.

Os autores supra-assinalados acrescentam, a propósito, que a Desinformação pode ser interpretada como um tipo de Propaganda Negra (segredo absoluto quanto às fontes) apoiada por falsos documentos. É a divulgação desses dados que faz com que o inimigo tire conclusões equivocadas.

Alemanha Nacional Socialista e a URSS (esta última copiando e até mesmo aprimorando alguns métodos da primeira) aproveitaram o avanço tecnológico observado nos primeiros anos do Século XX para disseminar propaganda. Os resultados práticos desses trabalhos não somente estimularam a Opinião Pública a aceitar as ações de Estado como aumentaram o número de simpatizantes na órbita externa.

Quanto aos Estados Unidos da América, somente quando a Segunda Guerra Mundial estava próxima do ponto de mutação [isto é, quando as forças alemãs apresentaram os primeiros sintomas de exaustão, antes mesmo do colapso do Sexto Exército em Stalingrado] o Governo daquele país (por intermédio do Office of Strategic Services e do Office of War Informations) deu início aos  programas de Guerra Psicológica.

No âmbito da CIA, organização criada em 1947 durante a administração Harry Truman, foi implementado o Grupo de Ação Dissimulada: Covert Action, onde até hoje trabalham pesquisadores e profissionais de alto nível nos campos da História, Psicologia, Sociologia, Antropologia, Jornalismo, Publicidade e Propaganda.

Vale recortar que o presidente do Chile, Salvador Allende, foi assassinado (1973) por intermédio de uma dessas ações dissimuladas [existe farta documentação disponibilizada a respeito]. Como conseqüência o país mergulhou em um longo período de exceção sob a tutela do general Augusto Pinochet.

O Pôquer da Águia Careca

Allen Dulles, primeiro civil a dirigir a Agência Central de Inteligência (CIA), foi exonerado pelo presidente John Fitzgerald Kennedy após o colapso da intrincada operação paramilitar em Playa Girón (Baía dos Porcos, Cuba, 1961) onde anticastristas exilados e treinados pela CIA na Flórida foram rechaçados após uma serie de combates e capturados pelas colunas do recém-criado Exército Revolucionário.

Diz-se que a História pessoal de Allen Dulles confunde-se com a da própria Agência.

Originário do Serviço Diplomático dos EUA ele integrou o Office of Strategic Services durante a Segunda Guerra Mundial e, em seguida, convidado por William Donovan, ingressou nos quadros da CIA onde ali vivenciou alguns dos momentos mais dramáticos do Pós-Guerra (o clímax da Guerra Fria aconteceu no período compreendido entre 1952-1964).

Resumidamente:

● Guerra da Coréia;

● Deposição do Primeiro-Ministro Iraniano Mohammed Mossadegh e entronização do Xá Reza Pahlevi;

● Derrubada, em 1954, do presidente eleito da Guatemala Jacobo Árbenz, por intermédio de um golpe paramilitar co-patrocinado pela United Fruit;

● Revolta na Hungria (1956);

● Revolução Cubana (em janeiro de 1959 as colunas de guerrilheiros sob o comando de Fidel Castro entraram em Havana);

● Instalação (1956 estendendo-se a 1969) de uma base norte-americana na região de Peshawar (Paquistão) de onde partiam aeronaves equipadas com câmeras especiais destinadas às ações de espionagem;

● Defecção de alguns dos mais preeminentes agentes da espionagem britânica;

● Construção do Túnel de Berlim, quase que imediatamente descoberto pelos soviéticos e transformado em ação reversa por parte da Inteligência da Republica Democrática Alemã (leia-se aqui Markus Wolf).

Os EUA também compreenderam a necessidade da concepção de uma mentalidade de Inteligência e injetaram bilhões de dólares na formação e treinamento dos agentes, na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias e na ampliação e/ou disseminação das redes de espionagem principalmente no Leste da Europa e Extremo Oriente.  África e Américas Central e do Sul vieram em seguida.

Quanto ao psicologismo dos norte-americanos, difere bastante daquele que se percebe nos Europeus. Como nunca foram atacados militarmente, a sua maior preocupação esta voltada para as ameaças de contaminação ideológica e insucessos na política industrial e comercial no exterior, reduzindo assim a sua esfera de influência.

Todavia, mesmo contando com dois fortíssimos aliados: a liberdade de Imprensa e a opção pela democracia; ainda assim os EUA vêm perdendo a não cruenta batalha das mídias. Isso porque, sob o prisma da Comunicação, os porta-vozes oficiais dos EUA verbalizam tão-somente contradições. Por exemplo, como criticar outros governos se, internamente, não conseguem equacionar problemas graves como racismo, desemprego/subemprego e a imensa dívida interna? A tragédia provocada pela passagem do furacão Katrina, em Nova Orleans, demonstrou a fragilidade da administração do presidente George W. Bush em relação às políticas públicas.

Em contrapartida, os EUA e seus aliados ocidentais conquistaram amplas vitórias quando incentivaram as ações do Movimento Solidariedade (Polônia), defenderam a reunificação alemã (o desmantelamento do Muro de Berlim [1989] e o fim da opressão soviética sobre a Ucrânia e os Estados Bálticos (Letônia, Estônia e Lituânia), acelerando com isso o colapso dos regimes comunistas no Leste Europeu e o final melancólico da URSS.

O Projeto Guerra nas Estrelas, anunciado no Governo do presidente Ronald Reagan com grande estardalhaço nas mídias, foi notável para estimular o colapso do regime comunista na URSS. Com efeito, não havia como resistir àqueles tantos bilhões de dólares que seriam aplicados no desenvolvimento e lançamento de satélites (geoestacionários ou não) transportando canhões de raios laser capazes de interceptar e destruir mísseis balísticos intercontinentais, além de outros equipamentos ultra-sensíveis de rastreamento/monitoração.

Tudo isso sem esquecer os investimentos direcionados às pesquisas e produtos no âmbito das tecnologias digitais, bem como aqueles relativos à ampliação das corporações de defesa dos EUA e os órgãos de Inteligência que subsidiam com dados confiáveis o Chefe de Estado e seus assessores.

Nada disso, porém, impediu a ampliação da paranóia coletiva, principalmente a partir da segunda metade da década de setenta. Embora durante toda a Guerra-Fria os dois maiores rivais jamais tivessem se enfrentado no campo de batalha, neste novo cenário que se avizinha é bem possível que a acidulação da retórica dos chefes de Estado dos EUA e da Federação Russa possa resultar em iniciativas ainda mais traumáticas do que aquelas praticadas nos tempos do bloqueio de Berlim.

Se, em relação à antiga URSS, a guerrilha Chechena exibe talentos e recursos capazes de resistir, como ainda o fazem, às corporações armadas da segunda maior potencia militar do Planeta (após o fracasso das operações militares que se estenderam por dez anos de duros combates no Afeganistão contra os talibãs armados e treinados), o presidente russo Vladimir Putin vem implementando ações práticas de alto impacto nos órgãos de difusão, tais como testes com mísseis balísticos indetectáveis pelos mais modernos sistemas de radar; instalação de baterias de mísseis terra-ar apontados na direção dos países do Ocidente; retomada das operações navais em nível estratégico no Mediterrâneo e uma bem sucedida ação na região do Ártico (fixação de uma bandeira da Federação Russa no fundo do mar, destacando – com essa iniciativa – as pretensões russas sobre as riquezas minerais inexploradas, principalmente o petróleo, e se antecipando as demais nações).

Tudo isso sem esquecer o apoio declarado ao Irã em sua intenção de dar prosseguimento ao programa de enriquecimento de urânio para fins pacíficos, contrariando a versão norte-americana (e israelense), segundo a qual a este país, além de subsidiar grupos terroristas, pretende construir armas de destruição em massa.

Enquanto a nova Guerra Fria ganha corpo e transparece tanto nas reuniões de cúpula como nos desencontros registrados pelas diferentes mídias, o movimento pendular da História não deixa duvidas sobre o que virá. As ameaças aos EUA se avolumaram, notadamente no Mundo Islâmico, a partir da derrocada do Xá (1979) e ascensão ao Poder (no Irã), do Aiatollah Ruhollah Komeini e seus milhões de seguidores.

Excetuada a Arábia Saudita, o Kuwait e os Emirados Árabes, principais clientes -compradores dos EUA no quesito defesa, os demais países que integram o Mundo Islâmico (mais de um bilhão de pessoas) apóiam declaradamente a Síria e o Irã (não mais sozinhos diante de qualquer provável confrontação).

O fato e que, seja no plano midiático ou nas ações militares externas, os EUA vêm amargando derrotas sucessivas. Senão vejamos:

No longínquo Afeganistão – imediatamente após o impacto decorrente dos múltiplos atentados de 11 de Setembro de 2001 – fora Cabul e algumas aldeias próximas à Capital – o restante do país continua nas mãos dos talibãs. Emboscadas bem sucedidas contra os comboios norte-americanos são freqüentes no Vale do Kandahar, causando grande numero de baixas.

No Iraque, independentemente da destituição, fuga, captura, condenação e morte do presidente Saddam Hussein, as forças norte-americanas amargam perdas irreparáveis (entre mortos e feridos), por conta dos franco-atiradores, minas e ataques com armas antitanque e mísseis terra-ar.

Os órgãos que integram a Comunidade de Inteligência norte-americana, seu formidável aparato humano, econômico e tecnológico; todos os recursos destinados à vigilância por intermédio de satélites e/ou sistemas ultra-sofisticados até o momento não conseguiram localizar, prender ou eliminar o Inimigo Número 1 dos EUA: Osama Bin Laden.

A formidável organização descentralizada e horizontal da Al Qaeda; os recursos financeiros provenientes de milhares de doadores espontâneos em todo o mundo; a capilaridade e a experimentação dos seus agentes em combates reais (no sul do Líbano, no Iraque, no Afeganistão e na fronteira deste país com o Paquistão) constituem obstáculos notáveis ao poderio militar norte-americano.

Some-se às ações não letais os videotapes difundidos pelo idealizador daquele que é considerado o maior atentado já praticado na História e reverberam como  bombas no Ocidente. Suas palavras ditas em tom solene e pausado, retroalimentam a campanha contra os cruzados que se contrapõem a verdadeira fé dos muçulmanos
Independentemente disso vale citar um pouco mais o mais novo teatro de operações desse conflito: as Américas Central e do Sul. Comecemos por Cuba, cenário de um dos episódios mais representativos dos anos sessenta: a Crise provocada pela instalação e descoberta dos mísseis soviéticos de médio alcance equipados com ogivas nucleares.

A memória da Guerra Fria registra, ainda, os complôs da CIA para assassinar o dirigente cubano Fidel Castro, iniciativas que ultrapassaram a casa das dezenas (15 confirmadas pela própria Agência norte-americana).

Fidel Castro, 80 anos, gravemente doente e internado há quase um ano, foi substituído na Chefia do Governo por seu irmão Raul. Mesmo assim continua assessorando, com sua experiência e combatividade, as ações de governo.  Nas Américas do Central e do Sul, muito especialmente, o Castrismo vem conquistando novas cores por intermédio de lideranças políticas legitimamente eleitas.

Essas lideranças, tanto da Nicarágua, Argentina, Venezuela, Brasil, Equador etc, registram maior liberdade de ação que seus antecessores. Por conseguinte, a subserviência aos interesses de Washington é coisa do passado.

NOTAS

[1] Nascido na Geórgia, em 1899, Lavrenti Beria foi o chefe da NKVD  no período que se estendeu de novembro de 1938 a janeiro de 1946. Comandou a ampla rede de campos de trabalhos forçados e, durante a Segunda Guerra Mundial (denominada Grande Guerra Patriótica), supervisionou a remoção das indústrias de defesa para o Leste, enquanto as tropas alemãs avançavam na direção de Moscou. Foi, ainda, encarregado de conduzir o projeto ultra-secreto que resultou na construção da bomba atômica soviética. O primeiro artefato (de plutônio) explodiu no dia 28 de agosto de 1949. Todavia, em 26 de junho de 1953, três meses após a morte de Stálin, Beria foi acusado de se associar um grupo de conspiradores para “tomar o poder e liquidar o sistema soviético com o propósito de restaurar o capitalismo e o domínio da burguesia” (Cf. KNIGHT, Ami. Beria – O lugar-tenente de Stálin, p. 275). Beria e os conspiradores adiante citados foram condenados e executados: Vsevold Merkulov, ex-vice-chefe do MGB; Vladimir Dekamozov, ex-funcionário da Seção Econômica da Cheka e ex-secretário de Beria; Bogdan Kobulov, ex-primeiro vice-comissário do Povo para Segurança do Estado; Sergei Goglize, ex-vice-ministro de Segurança do Estado e chefe da Terceira Diretoria do MGB; P.A. Meshik, ex-chefe do MVD da Ucrânia e Lev Vlodzimiski, ex-chefe do Departamento de Investigações do NKVD na URSS.

[2] Há quem defenda a primazia do Mossad (israelense) por sua eficácia nas ações externas.

[3] Existem inúmeras versões para a viagem de Ernesto de Chegava até ingressar no sertão boliviano. Originariamente, ao que se sabe, ele deixou Cuba seguindo diretamente para Moscou. De lá, por intermédio de avião, foi até Praga e, em seguida, de trem, cruzou a Áustria, Alemanha chegando a Paris. Da Capital francesa ao Brasil o esquema de proteção foi muitas vezes ampliado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Obs.: O texto, com ligeiros acréscimos, corresponde ao conteúdo de uma das aulas ministradas pelo autor no MBA oferecido em 2007 pela Escola Superior de Guerra.

*José Amaral Argolo é advogado, jornalista, doutor em Comunicação e Cultura, pós-doutor pelo Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e professor da Escola de Comunicação da UFRJ.


Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]