Nº 9 - Dez. 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 


ENSAIOS
 

Apontamentos sobre
o processo de criação
da reportagem


Por
Maria Cecília Guirado*


O jornalismo, de modo geral, busca construir uma leitura em mosaico da realidade cotidiana.

A reportagem, em tese, procura aprofundar um determinado tema traduzindo, em linguagem agradável, as causas - ou supostas causas - do assunto em questão, assim como indicando o estado atual dos fatos e suas prováveis conseqüências.

Reprodução

Aristóteles representado
em um códice medieval.

O processo de elaboração da reportagem é um processo diferente dos demais gêneros jornalísticos, por isso requer habilidades especiais do repórter como: sensibilidade para captar fenômenos, capacidade investigativa e competência no manuseio da língua para a “transcriação” dos fatos.

Palavras-chave: Teoria / Fenomenologia / Linguagem

1. Perceber o fenômeno

A realidade mutável e efervescente gera os fatos cotidianos. Mas, como reconhecer os que merecem ser divulgados pela imprensa? Numa tentativa de formulação filosófica, dir-se-ia: onde e como nasce o fato jornalístico? Ao equiparar fato e fenômeno, uma vez que o tema sugere embarcar pelas vias da percepção, é preciso entender o que Charles Sanders Peirce, copiando os gregos, chama de faneron e que Marilena Chauí, por meio de estudos etimológicos, explica:

(...) ‘phainómenos’ (visivelmente, manifestamente, claramente), donde virão fenômeno (e seu conhecimento: fenomenologia), fantasia, fantasma, fantástico, assinalando o parentesco que enlaça visão, imaginação e palavra como resultado do ato da luz (1989: p.34).

Detectada a existência do fenômeno, constata-se que ele surge da realidade social e evolui sob o estigma da variação, do desarranjo, da modificação que vem afetar essa mesma realidade. Concorda-se com Edgar Morin quando afirma que “um fato portador de informação é um fato que, ou põe um termo em dúvida, ou traz algo de novo, isto é, uma surpresa” (1986: p.41). Portanto, quando o fato causa desequilíbrio ou se mostra diferente na evolução natural da área de conhecimento em que ele ocorre merece ser traduzido para a narrativa jornalística. Apesar disso, mesmo contendo caráter de distúrbio, é preciso ponderar se o assunto é pertinente aos interesses da sociedade. Por vezes é apenas pertinente aos interesses da empresa de comunicação ou aos que se apossam de poderes municipais, estatais ou federais.

Ideologias à parte, o repórter é, pois, o profissional de comunicação que exercita a consciência, ininterruptamente, para captar fenômenos que, traduzidos possam brilhar em palavras. Cabe ao repórter clarificar os acontecimentos, desenredando-os para que possam aparecer, ou simplesmente parecer, inteligíveis aos leitores, que terão outras possibilidades de interpretações.

2. Imitar os gregos

(...) não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) - diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso, a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular (Cf. ARISTÓTELES, 1973: p.451).

Acreditando que a área de ação do jornalismo se encontra, sorrateiramente, na intersemiose da História, da Literatura e da Filosofia, compreende-se com Aristóteles a importância da caracterização do conteúdo na execução de cada ofício. E, se por um lado o jornalista está registrando a História (o particular), está também, ao selecionar palavras, expressando seu senso poético ou literário (o universal), além de desvelar a Filosofia da época, que se deixa entrever pelos meandros da reportagem. Representando ainda o que poderia acontecer ou apontando prováveis hipóteses ou soluções em sua narrativa, o repórter estará filosofando, refletindo e levando seus leitores à reflexão.

O polêmico jornalista Paulo Francis, dizia que a linguagem jornalística certa havia de ser uma síntese e uma imitação, no sentido aristotélico do termo, uma reprodução formal, ou recriação da linguagem falada (1988). Para os antigos gregos, especialmente nos séculos VI a IV a.C., as coisas naturais refletiam os modelos eternos a que estavam submetidas. Modelos que pregavam a verdade (alethéia) dependente da técnica (techné); logo, a arte conseguia apenas imitar aquilo que já era uma representação, ou seja, a arte conseguia apenas produzir cópias de cópias (mímesis). O trabalho intelectual de organizar os dados e procurar as palavras é um trabalho poético (poiésis), que vem atrelado à idéia de imitação do real. É neste sentido que o ofício do repórter se aproxima, numa certa medida, do ofício do poeta, do historiador e do filósofo.

A busca da imagem perfeita do mundo, tão estimulada na Renascença, a imagem “objetiva”, desprovida de interpretação, foi tentada com o uso de diversos aparelhos destinados a obter a forma prática das imagens em perspectiva. Porém, estavam limitadas à cópia da imagem (já com recortes), que mais tarde substituiria pincéis pelo daguerreótipo e, posteriormente, pela câmara fotográfica. Mesmo assim, todo fotógrafo faz uma leitura particular do fenômeno que está retratando (Cf. MACHADO, 1984). Essa digressão só tem um objetivo: o de confirmar que não há possibilidade de qualquer tipo de imitação desprovida de intencionalidade do seu autor. A intencionalidade, por sua vez, é regida pela capacidade de mimesis e poiésis do repórter, que depende diretamente de seu quadro de referências e de sua formação intelectual.

Não se pode copiar o real. Todo homem, pela imitação particular de vários pedaços da realidade, monta sua visão particular dessa mesma realidade. Então, a linguagem jornalística cai como uma rede sobre a realidade amorfa, tentando aprisioná-la e dar-lhe forma. O repórter - já determinado sobre o assunto de que vai tratar, seja pela pauta de sua editoria, seja por levantamento próprio sobre o tema - tenta enredar a realidade, coordenando alguns de seus fragmentos para realizar a “transcriação” dos fatos. Transcriação é termo cunhado por Haroldo de Campos para designar tradução, baseado nas teorias de Jakobson e Lotman, de acordo com os quais o signo “palavra” deixa de ser apenas lingüístico e a tradução passa a ter um sentido mais amplo, semiótico. “Tradução como transcrição e transculturação, já que não só o texto, mas a série cultural (...) se transtextualizam no imbricar-se subitâneo de tempos e espaços literários diversos” (Cf. CAMPOS, 1976: p.10). No exercício criativo da reportagem, o jornalista não só traduz o fato, mas transcria pormenores, de acordo com seu particular ponto de vista.

3. Elementar, meu caro repórter

Mas, precisamos conquistar a verdade pela conjectura ou por nenhuma outra via. (Cf. PEIRCE, Ms. 692).

Desde que Gutenberg desenvolveu o prelo, as informações, difundidas, em princípio, pela expansão marítima portuguesa, passaram a circular, cada vez mais rapidamente pelo globo terrestre (Cf. GUIRADO, 2001). Hoje em dia, apenas algumas horas ou, dependendo do fenômeno, apenas alguns minutos separam o acontecimento da versão jornalística, mesmo tratando-se de grandes reportagens impressas. Se o fato é surpreendente, precisa sair em destaque na imprensa no dia seguinte, não há tempo para muita investigação. Mas, os jornalistas responsáveis pela área, muitas vezes, acumulam informações necessárias para realizar um texto de última hora, pois alguns fatos podem ser previstos e trabalhados com antecedência. Além disso, recorre-se aos arquivos e às fontes.

Urgências à parte, todo assunto merece ser investigado in loco. É muito difícil produzir uma boa reportagem sem sair do conforto da redação. Porém, não há como descrever ou adotar um único modelo para o processo jornalístico, embora existam critérios éticos e pistas gerais, que foram ampliadas no livro Reportagem: a arte da Investigação. Atente-se, todavia, para a perspicácia - o chamado faro jornalístico na observação e tradução de pormenores – que é condição fundamental para o profissional da reportagem. “Elementar, meu caro repórter”, diria Sherlock Holmes.

Na obra Um estudo em Vermelho, Conan Doyle, comenta:

(...) toda vida é uma grande cadeia cuja natureza se revela ao examinarmos qualquer dos elos que a compõem. Como todas as outras artes, a Ciência da Dedução e Análise só pode ser adquirida por meio de um demorado e paciente estudo, e a vida não é tão longa que permita a um mortal o aperfeiçoar-se ao máximo nesse campo (1966: p.26).

A explicação de pormenor como pequeno elo, ligado a todos os outros elementos, está imantado à cadeia de fatos que pode representar uma dada realidade, sobre a qual se pretende reportar. Sherlock adverte que a aplicação de seu método faz parte de um paciente e longo aprendizado. O único jeito é investigar muito e só depois - quando tiver reunido os dados suficientes - tentar contar uma empolgante história capaz de prender a atenção do leitor.

Numa situação provável na redação do jornal, assim como Sherlock recebe os dados básicos que o levam a desvendar o responsável pelo crime, o editor ou o pauteiro fornece as pistas, as pautas. Sob pressão dos detetives da Scotland Yard, Sherlock explica os métodos elucidativos que utiliza em sua profissão:

Tenho uma certa intuição nesse sentido. De quando em quando surge um caso mais complexo que os outros. Só então é preciso andar um pouco por aí a fim de ver as coisas de perto. Como vê, disponho de conhecimentos especiais que aplico aos problemas surgidos, conhecimentos que facilitam maravilhosamente a minha tarefa (Cf. DOYLE, 1966: p.28).

A semelhança entre o detetive Holmes e o repórter diz respeito aos seguintes pontos: capacidade de fazer suposições (raciocínio hipotético ou abdutivo); a observação acompanhada de investigação (ver as coisas de perto - conferir pela indução) e os conhecimentos especiais que aplica aos outros surgidos (dedução). Quanto à questão de observar de perto apenas quando o caso é mais complexo, entende-se que uma reportagem é um caso mais complexo no dia-a-dia do repórter, mas não se pode assumir a postura que só se deva sair às ruas para apurar fatos quando se está colhendo dados para um texto-reportagem.

Às vezes um dia de investigações acaba rendendo apenas uma boa notícia, que poderá ser desdobrada em uma ou mais reportagens nos dias seguintes. Ocorre também o contrário: geralmente, para assuntos corriqueiros jornalistas experientes raciocinam sobre os dados e deduzem, muitas vezes, de maneira correta. Também não se pode radicalizar. Há fatos que não precisam ser examinados a fundo, pois pertencem a uma dada realidade que nasce e acaba no tempo e no espaço pequeno onde se publica em forma de nota ou de notícia.

Adverte-se, entretanto, que não é possível ser especialista, ao mesmo tempo, nas editorias de política, de cultura, de educação e de saúde. Seria necessário o aprimoramento em uma editoria para, a partir dela, realizar algumas intersemioses (interconexões, imbricamentos) com outros campos de interesses afins. O enfoque da matéria deve estar verticalizado com a especialidade do repórter, a fim de que o texto publicado leve informações importantes para os leitores daquele universo.

Acredita-se que as reportagens que tratam da educação são de interesse, em primeiro lugar, dos educadores, seguidos, provavelmente por outros leitores, que de uma forma ou outra estão ligados ao enfoque abordado.

4. Ir além dos princípios da pauta

(...) a essência do trabalho do repórter é a mesma, tanto para cobrir um acidente de trânsito na esquina do jornal, quanto a morte de um Papa ou uma grande tragédia, seja lá onde for: contar o que aconteceu, não parando de garimpar a informação enquanto ele próprio não estiver absolutamente seguro sobre os fatos que colocará no papel (Cf. KOTSCHO, 1988: p.25).

Com a intenção de atingir os leitores e ainda satisfazer a empresa de comunicação, o repórter é levado a seguir certas regras que acabam por limitar, de algum modo, seu processo de elaboração da reportagem. Em nome dos conceitos de clareza, objetividade, veracidade e atualidade (Cf. MEDINA, 1978: p.20) fundaram-se os alicerces da prática jornalística, mesmo sabendo que o “dever fundamental do jornalista não é para com seu empregador, mas para com a sociedade. É para ela e não para o patrão que o jornalista escreve” (Cf. ROSSI, 1980: p.79).

As pautas – freqüentemente são receituários para verificação (indução) - são traçadas mediante raciocínio dedutivo e muitas vezes não deixam espaço para a formulação de novas hipóteses. Então, ao contrário do esperado, em vez de funcionar como um mapeamento sobre o caso em questão ou um planejamento investigativo, a pauta, por vezes, se torna "extensa, minuciosa, quase uma receita completa de como cada repórter deve fazer a sua reportagem", como alerta Clóvis Rossi (1980: p.22).

Por outro lado, a maneira de ver e a de descrever o mundo é diversa para cada jornalista, como também é diverso o método estabelecido para o processo de reportar. Porém, a pauta estabelece metas a alcançar. Ela tende a direcionar o propósito da reportagem, dando um fio condutor para ser desenvolvido pela investigação. Não obstante, apesar das regras investigativas delineadas pela pauta, se aposta na possibilidade de ir além... O repórter Ricardo Kotscho garante: "A obrigação de todo repórter é escrever sobre tudo o que viu e apurou.

Se será publicado ou não o texto, é uma decisão que cabe à empresa" (1988: p.54). O que Kotscho está ensinando, noutros termos, é que é preciso abrir bem os olhos para ver tudo o que for possível, registrar a realidade que puder ser captada, depois apurar, investigar exaustivamente tudo o que foi farejado para reunir os fragmentos da percepção e da investigação na elaboração do texto.

Dessa forma, a pauta pode servir como guia investigativo, mas não como tapa-olhos do repórter, que de consultar olhares diferentes sobre o mesmo evento, pesquisar e relacionar eventos antecedentes e raciocinar sobre conseqüências prováveis. Olhares diferentes podem e devem ser conferidos com as fontes. O repórter não pode se contentar com a fonte clássica (aquela que sempre é consultada para o caso em questão), nem tão pouco deve satisfazer-se com a primeira fonte.

Segundo Otávio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo, "a personalidade da imprensa (sua mitologia, no caso) foi construída sobre a idéia de pressa. (...) O jornalista que não tem pressa deveria dedicar-se aos anuários; o leitor que não tem pressa deveria esperar pela revista no fim-de-semana” (1984: p.270). A situação se agrava ainda mais quando o repórter escalado para ‘cobrir’ determinado evento não tem qualquer intimidade com o tema. A consulta ao jornalismo on-line ou ao banco de dados da internet, nem sempre garante clareza e seriedade sobre o fato, mas pode servir como ponto de partida para elencar dúvidas no planejamento investigativo. Entretanto, o ideal é a familiaridade com o assunto, que também pode ser traduzido por especialização em uma área, pois facilita e abre espaço para novas conjecturas. O repórter detetive atinge o método de busca com mais perspicácia.

Acontece que a ilusão primordial pela busca da verdade, que assombra tanto alguns cientistas quanto alguns jornalistas não estabelece parâmetros particulares para cada povo, raça, credo ou classe social, tornando esse fundamento algo impraticável e, em certos casos, equivocado. A miséria humana, que ambas as profissões ‘pretendem’, ao menos em tese, exterminar pode servir como usina propulsora de outras riquezas, pois está nas mãos de quem detém o poder.

Alguns jornalistas acreditam que têm o poder – ou um quarto do poder? – para salvar a sociedade e colaborar com a instauração da honestidade, da justiça e do trabalho digno para todos, como se esses valores pudessem ter o mesmo significado para a maioria dos cidadãos. Assim também acreditam alguns cientistas em verdades únicas que possam modificar o mundo. Esse não é o caso do cientista dadaísta Paul Feyerabend, que se mostra contra tal método:

A tarefa do cientista não é mais a de ‘buscar a verdade’ ou a de ‘louvar a Deus’ ou a de ‘sistematizar observações’ ou a de ‘aperfeiçoar as previsões’. Esses são apenas efeitos colaterais de uma atividade para a qual sua atenção se dirige diretamente e que é ‘tornar forte o argumento fraco’, tal como disse o sofista, para, desse modo, garantir o movimento do todo (1977: p.41).

Desse modo, a busca da verdade está no trajeto, não no objeto. O resultado da investigação - anotações, qualidades de sentimentos em relação ao fenômeno e raciocínio sobre o mesmo - é o efeito colateral que determinado fenômeno causou no repórter. O repórter tende, assim como Feyerabend prevê, a tornar forte o argumento fraco. Mas a verdade não se deixa enredar facilmente, pois pertence ao mesmo universo mutante do real.

Por vezes a soma e a conexão entre inúmeros pormenores compõem material suficiente para um grande furo de reportagem. Como no caso Watergate, por exemplo, quando os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein investigaram as falcatruas do governo de Richard Nixon por meio de fagulhas que escapavam do sistema político. A série de reportagens iniciada em 1972, no Washington Post, culminou com a derrocada, em 1974, do então presidente dos Estados Unidos. A aventura investigativa tomou forma de livro. Todos os homens do Presidente pode ser lido em bom português, na publicação de 1976, da Editora Francisco Alves.

No Brasil, tem-se a mimesis tupiniquim com o caso Fernando Collor-PC Farias. Uma conjuntura de eventos proporcionou a efetivação do impeachment; porém, a imprensa escrita, apoiada pela mídia eletrônica, desempenhou sua parte quando tornou forte um argumento fraco. Pesquisou denúncias, que em princípio pareciam boatos, e acabou fortalecendo a decisão de se formar, em Brasília, uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que desvendou publicamente, e com provas, o esquema de corrupção instaurado pelo presidente Fernando Collor de Melo. O título da obra mais vendida sobre o escândalo também parodia o caso Watergate. Todos os Sócios do Presidente, publicado, em 1992, pela editora Página Aberta, foi também redigido por jornalistas (Gustavo Krieger, Luis Novaes e Tales Faria), que acompanharam o processo de ascensão e queda do mito “caçador de marajás”.

Para exemplificar a importância da investigação no jornalismo, assim como na investigação criminal, busca-se o “motivo” gerador dos fatos. É comum acreditar que apenas o jornalismo investigativo faz uso da estrutura material e de raciocínios necessários para desvendar irregularidades ou denunciar as desigualdades sociais. Entretanto, a investigação criteriosa é ferramenta essencial para cobrir qualquer fenômeno que mereça ser traduzido em texto reportagem. Daí que é preciso ter claro que não se pode pensar que apenas reportagens policiais ou políticas pressupõe rigor investigativo. É comum utilizar-se o termo jornalismo investigativo para esses casos. Mas, se a investigação é ferramenta imprescindível para a elaboração de qualquer texto jornalístico sério, por que a maioria dos profissionais da mídia só consegue enquadrá-la nas celas que aprisionam escândalos e segredos?

5. Da transcriação do fato

Após processar as informações colhidas, o jornalista perfaz o trajeto de criação do texto. Esse trajeto é banhado de traduções e de transcriações de uma ou mais linguagens (sonoras e visuais, além da verbal) para a linguagem jornalística. Estabelecido o propósito da narrativa, estabelece-se um ritmo de urgência na investigação das palavras que se encaixam com mais facilidade naquele caminho. Porém, as limitações impostas pela própria linguagem verbal sobrevivem na consciência criadora.

A confecção do texto depende, essencialmente, da habilidade de elaborar frases e parágrafos e saber a melhor seqüência para eles. O repórter age como um cineasta que edita seus fotogramas e cenas; como um músico que compõe o melhor arranjo para harmonia, melodia e ritmo e, sobretudo, como o poeta que faz com que aquela profusão de palavras “furtem cores como camaleão”, como canta a Língua, de Caetano Veloso. As palavras carregam a possibilidade de criar na mente do leitor: qualidades de sentimentos, questionamentos ou consciência crítica sobre o tema da reportagem. Os diferentes estágios de leitura dependerão do nível intelectual de cada leitor. Assim como também se dá em estágios diversos a leitura do fenômeno pelo repórter.

Nessa etapa da reportagem, a da árdua tarefa de construir o texto, exige-se do repórter a capacidade de manejar os suportes materiais - computadores, terminais de edição de textos, arquivos e toda a parafernália informática, que Peirce chamaria de maquinário eficiente, fundamental para a concretização do processo produtivo.

Outra exigência diz respeito ao discurso da reportagem, que deve ser elaborado com a intenção de despertar interesse no maior número de leitores. Originalidade e elegância estética são atributos necessários para ampliar o universo de leitores, pois oferecem aspectos inusitados sobre o assunto, ou representam o mesmo tema segundo novas variações estilísticas.

Nesse sentido, o processo de investigação funciona na construção do texto como um apanhado de materiais que são levados a um laboratório. Após a decantação, as substâncias envolvidas mostram quais as novas possibilidades de cambiâncias entre a realidade e sua reconstrução. Ricardo Kotscho adverte: "Mais que tudo, trata-se de um trabalho de paciência, esse de costurar numa ampla reportagem os pedaços de uma situação que está à vista de todo mundo para quem quiser contar" (1988: p.55). É, pois, com a paciência de quem monta um jogo de quebra-cabeça, buscando arrumar um fio lógico para contar a história, que o jornalista faz seu trabalho de marchetaria.

Por vezes trabalha a idéia como um todo e depois vai compondo o desenho da página-reportagem, encaixando palavras, boxes, retranca, olho, legendas subtítulos e, intertítulos, enfim todos os índices que possam direcionar a atenção do leitor e chamar a atenção para o corpo do texto. Idéias novas e coerentes, em geral, são aceitas pela redação.

Como cada processo é singular, o repórter nem sempre estabelece uma mesma ordem de preocupações. Dependendo do assunto, o boxe é o primeiro texto a ser redigido. Em certas ocasiões, quando o repórter chega da rua, já decide com o editor sobre o título e o caminho da abordagem central do texto, ou seja, do enfoque, do ângulo a ser evidenciado.

Note-se, porém, que o ato investigativo está implícito nas três fases que, genericamente, caracterizam a reportagem: apreensão, investigação dos fatos e construção do texto narrativo. O momento de escolher as palavras é o momento de segurar o rastro da palavra que se casa melhor com o assunto, que se liga de maneira mais adequada com a palavra seguinte da frase. A frase, por sua vez, se ajeita de modo agradável à frase seguinte. E assim, palavras e mais palavras vão se juntando em frases, parágrafos e por fim formam textos, que amparados por registros fotográficos, publicam-se como reportagens.

Mas, todo texto jornalístico é resultado de um processo seletivo de sensações, imagens e reflexões sobre a realidade nele reportada. É preciso fazer cortes. Cortes no enfoque e na intencionalidade. Além da seleção das palavras, é preciso calcular, o espaço, determinado pela editoria, que o texto deve preencher. Antes raciocinado em laudas, o texto atualmente é encomendado ao repórter em caracteres, com o intuito de simplificar a diagramação. E nem sempre se pode contar tudo que se viu em mil Kbytes. Mas sempre se pode buscar o novo.

É a novidade que impulsiona a elaboração do texto. Tentar descobrir um novo caminho para reportar velhos e desbotados temas exige certa capacidade criadora (ligada ao background). É bem verdade que maneiras diferentes de observação provocarão variações sobre o mesmo tema; por isso, o mesmo fato assume caráter diferente em diferentes jornais. A novidade deve ser vista ainda sob o prisma de novas formas de dizer, ou condensações e retemperamentos sobre assuntos cristalizados, ou melhor, caçar a novidade possível até mesmo em assuntos que se tornaram clássicos e, portanto, permanentes.

É ingenuidade continuar acreditando que a visão do mesmo fato só é diferente nos veículos de comunicação impressa por questões de políticas editoriais voltadas para interesses particulares de cada empresa jornalística. É óbvio que este dado não pode ser desprezado. Todavia, antes de qualquer ideologia, sistema político-econômico ou cultural, uma matéria jornalística recebe versão diferente em cada veículo, porque foi observada, analisada e elaborada por profissionais diferentes. E tanto mais versões hão de existir quantos forem os jornalistas equipados para experienciar e transcrever acontecimentos:

O que realmente diferencia um jornal do outro e, em conseqüência, um repórter do outro - é a sua capacidade de transformar os pequenos fatos que fazem o dia-a-dia da cidade, do país e do mundo em matérias boas de ler. Afinal, o jornal tem que sair todos os dias e são raros os assuntos realmente excepcionais (Cf. KOTSCHO, 1988: p.10).

É fundamental que o jornalista tenha em mente que ele está contando algo para alguém que não estava no local do acontecimento, ou não teve acesso às informações e às situações vividas pelo repórter. E é pensando nisso que ele pode encontrar a melhor maneira de contar o caso: utilizando-se de uma mescla de vocábulos populares, metáforas, termos elevados e galantes, como quem desvela segredos e enovela horrores.

Qualidade essencial da elocução é a clareza sem baixeza. (...) Necessária será, portanto, como que uma mistura de toda a espécie de vocábulos. Palavras estrangeiras, metáforas, ornatos e todos os outros nomes de que falamos elevam a linguagem acima do vulgar e do uso comum, enquanto os termos correntes lhe conferem a clareza (Cf. ARISTÓTELES, 1973: p.464).

De certa forma, coloca-se nas mãos do repórter a tradição homérica de realizar, por meio da elaboração do texto, a síntese entre sofisticação e simplicidade da linguagem num só propósito: transmitir informações que esclareçam, de modo agradável, as questões que afetam, incomodam ou dignificam a sociedade. E, se o Jornalismo, de modo genérico, não pode ser considerado Literatura, insiste-se em refletir que o processo de criação da reportagem é muito próximo do processo da criação literária. Ambos lidam essencialmente com a palavra. Enquanto a literatura vai criar um mundo fictício, com esse elemento básico da linguagem verbal, a reportagem ideal tenta recriar o mundo numa suposta relação de proximidade com a realidade.

Sem obrigações conclusivas

A reportagem é o gênero jornalístico que, ao explorar os meandros de determinada realidade, tenta descobrir, se não a verdade, uma aproximação equiprovável de veracidade entre o fato e o sistema que o gerou, com o papel de discutir e questionar a incidência e as conseqüências do distúrbio que se reproduz em forma de texto. Um texto que é, em essência, mais rico e mais trabalhado.

Em alguns casos abrindo brechas para uma avalanche de dúvidas, que poderão se configurar numa outra reportagem, ou numa série delas. Os acontecimentos que poluem os rios humanos, apesar de há tanto tempo fluindo, não brotam ainda das fontes do fantástico, despertando as mesmas emoções previstas pelos antigos gregos? Caso assim não fosse, qual a razão para tanta necessidade de espetáculos, não importando se a origem é a dor da guerra, que horroriza a todos, ou o prazer do belo, que nem todos estão aparelhados para captar?

Para mudar, transformar ou melhorar em algum sentido a realidade do mundo globalizado, o repórter deve recorrer ao embasamento humanístico, a uma cultura geral razoável - que ultrapassa o rótulo de especialista em generalidades - e, acima de tudo, ao acúmulo de experiências pinçadas no cotidiano, no convívio caleidoscópico com diferentes formações de comunidades humanas [como o flaneur que Walter Benjamin recupera de Charles Baudelaire] para sorver a variedade de comportamentos que permeiam a vida neste planeta.

Assim, o repórter astuto, deveria assumir a performance do flaneur: “aquele que adota a rua como sua moradia e a multidão não apenas como sua clientela, mas também como condição essencial de sua liberdade e de sua inexpugnável solidão individual” (Cf. BENJAMIN, 1975). Este sabe que, além da pauta - e muito além da tecnologia que liga a redação à cidade e aos outros pontos do mundo - existe o universo imenso, povoado de signos.

Então, sai às ruas para flanar, sentir de perto as novidades, sentir os cheiros da glória dos políticos ou das celebridades, mas também o da miséria dos que reviram latas de lixo em busca de comida ou de dejetos recicláveis.

Nenhuma reportagem, por mais elaborada que possa parecer, será dada como satisfatória ou definitiva a respeito do assunto nela representado. E, se nada no universo tem caráter de último absoluto, as questões levantadas neste particular estudo sobre o fazer jornalístico não se esgotam... Todavia, fica entendido que "não existem fórmulas científicas no jornalismo, especialmente na reportagem: cada história é uma história, e merece um tratamento único" (Cf. KOTSCHO, 1989: p.14).

E, para contar uma história de maneira interessante, o repórter deve saber apreender e transcriar o ponto fantástico do acontecimento, pois todo repórter há de ser, antes de tudo, um curioso e um contador de histórias; mesmo que inacabadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MORIN, E. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

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*Maria Cecília Guirado é doutora em Estudos Portugueses/História da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa e professora da Universidade de Marília/SP.

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Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]