Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


ENSAIOS
   

Memórias e canções
Nas ondas da Rádio Universitária

Por Inês Almeida Vieira*

Resumo
Neste artigo, apresento uma descrição do processo através do qual se faz a Programação do ouvinte [1]. Esta descrição está baseada, principalmente, na minha experiência, como pesquisadora, por dois anos, quotidianamente, elaborando a ficha técnica, no estúdio da Rádio Universitária, no horário em que o Programa vai ao ar, ou seja, das 18:00 às 19:00 horas, de segunda a sexta-feira. Nesta condição, recebia dos ouvintes, por telefone, os seus pedidos musicais, cuja veiculação é intercalada pela sessão de informações intitulada "FM notícias", às 18:30 horas.

Assim, entre julho de 1999 e dezembro de 2001, esta minha vivência levou o apresentador, jornalista Nelson Augusto a dirigir-se ao seu público, inúmeras vezes, com a seguinte fala: "(...) é só ligar e fazer o seu pedido musical. No 281.57.74, você fala com nossa colaboradora e pesquisadora, Inês Vieira".

O desenrolar da Programação envolve: a apresentação das "dicas culturais", assim denominados os informes acerca de atividades culturais em cartaz na cidade, a cada dia; mensagens de aniversário; "correio sentimental"; mensagens musicais, com destaque para músicos cearenses; uma espécie de educação musical informal a que o Programa se propõe, isto é, referências feitas, eventualmente, pelo locutor, acerca da história de determinados compositores/cantores, a contextualização de certas produções musicais etc; um curto espaço para notícias, dentre outros aspectos. No seu conjunto, também, a Programação do ouvinte me permite a visualização de espaços de interações locutor-ouvinte, ouvinte-ouvintes e grupos de ouvintes entre si.

O momento da apresentação da Programação do ouvinte:

Quando batem as 6 horas
De joelhos sobre o chão
O sertanejo reza
A sua oração
Ave Maria
Mãe de Deus, Jesus
Nos dê força e coragem
P'ra carregar a nossa cruz

Nesta hora bendita e santa
Devemos suplicar
À Virgem Imaculada
Os enfermos vir curar...

Assim, ao se encerrar o som da Ave Maria Sertaneja (de Júlio Ricardo e O. de Oliveira), na voz de Luiz Gonzaga, todos os dias, entra no ar a Programação do ouvinte, quando o assessor de áudio, Lima, alerta o apresentador Nelson Augusto: "Vambora, Nelson!!!" [2].

Nelson Augusto entra em cena:

"Em Fortaleza, 18 horas e 4 minutos. Uma boa noite a você, amigo ouvinte da Rádio Universitária FM. A partir de agora a sua Programação do ouvinte. É só discar 281-57-74, 281-57-52 e fazer o seu pedido musical. A Programação do ouvinte tem coordenação e apresentação de Nelson Augusto. No áudio, Antônio Carlos Lima. Vamos começar a Programação do ouvinte de hoje, 29.06.99, terça-feira, com a música...".

Ouve-se, então, uma seqüência de três músicas, com a veiculação de nomes de ouvintes e respectivos bairros de onde vêm os pedidos musicais e, conforme a solicitação, para quem a música é endereçada.

[O apresentador]: "Quero agradecer a audiência do Cid, da Varjota; do Ranufo do Parque-Araxá; da turma boa do bar do Rogério, no Presidente Kennedy; da Lia, na Aldeota (...). A Programação do ouvinte atende agora (...)". Depois, anuncia os títulos das canções, com respectivos autores e intérpretes, associadas ao nome do ouvinte e ao bairro de onde procede cada solicitação:

"Agradecendo a audiência do André Roberto, do Álvaro Weyne; da Lena, do Rodolfo Teófilo; Paulo Rogério, da Aerolândia (...). A Programação faz um pequeno intervalo, voltando logo em seguida. Aguarde". [Gravação]: "ZYC 407, Rádio Universitária FM, 107,9 megahertz, a sintonia da terra". Universitária FM Notícias - A Faculdade de Letras da UFC está com as inscrições abertas para o mestrado de Letras até o dia 26.07...".

Seguem-se outros anúncios de eventos culturais, na voz do apresentador ou por meio de alguma gravação. Assim, pode-se ouvir algo como:

"A Abel produções apresenta saraus no teatro do IBEU Aldeota (...); Luz do sol produções apresenta: Paulinho Pedra Azul. Dia 01.07.99, às 21 horas, no teatro José de Alencar, única apresentação. Informações pelo telefone 252-23-24 (...). E já estamos de volta com a sua Programação do ouvinte.

É só discar: 281-57-74 e 281-57-52 e fazer o seu pedido musical (...). Agora temos a música Meu mundo e nada mais, de Guilherme Arantes, com ele, que atende ao Edvaldo Saraiva, o botafoguense da Pe Mororó, no Centro da cidade. Depois, A Distância, música de Roberto Carlos, com Simone, que atende ao Clemilson Holanda, no Pici (...)".

Mais uma canção, atende a um ouvinte, de outro bairro: "Agora, a canção Padre Cícero, de Tim Maia, atendendo ao Cleuton (...)". Outra canção "vai para a Simone". Ambos fazem parte de um grupo de músicos locais que estão na audiência do Programa.

Outros trechos da fala do apresentador:

"Depois, a música Sobre o tempo, com o grupo 'Nenhum de Nós', atendendo ao ouvinte (...) do Montese. Agora a música Nayara, do Paulinho Pedra Azul, com ele, que atende ao Roberto Holofote, do Pantanal, que oferece para a turma do Jóquei Clube (...). Depois tem a música Travessia, de Milton Nascimento, com Elis Regina, que atende ao Cid, na Varjota (...). E a Programação do ouvinte vai ficando por aqui. No finalzinho do programa, quero agradecer a audiência do Bentivi, pobre bichinho, de algum lugar da cidade... A Programação do ouvinte tem coordenação e apresentação de Nelson Augusto. Seleção musical sua. No áudio, Antônio Carlos Lima. Gratos pela atenção. Boa noite a todos. Programação do ouvinte volta amanhã ás 18 horas".

A seguir apresento uma tabela, especificando o repertório da Programação do ouvinte.

Dinâmica da Programação do ouvinte, destacando músicos
pedidos no Programa - Semana de 03-10 de junho de 1999
(02.06) Quarta-feira Roupa Nova
Sá e Guarabira Elizeth Cardoso Zé Ramalho
Tim Maia
Fagner Emilinha Borba Zizi Possi
Caetano
Clara Nunes Renato Russo
(04.06) Sexta-feira Bethânia
Marisa Monte Gonzaguinha Ney Matogrosso
Zeca Baleiro Raul Seixas Amelinha Roberto Carlos
Téti
E. Santiago Zeca Baleiro
(07.06) Segunda-feira Tunai
Milton Nascimento
Raul Seixas Chico Buarque Gilberto Gil
Bethânia Elba Ramalho Elba Ramalho Eliana Printz
Caetano Veloso Paulo Diniz Caetano Veloso Zeca Baleiro
      M. Nascimento
(08.06) Terça-feira Bethânia
Clara Nunes
Tetê Espíndola
Marisa Monte Xangai
Ney Matogrosso
Marisa Monte Ivan Lins Zé Ramalho
Vânia Abreu
  Teresa Valesca Fagner
      B. Azimute
      Martinho da Vila
(09.06) Quarta-feira Zeca Baleiro Elis Regina Fausto Nilo Raul Seixas
Bethânia Djavan Marisa Monte Belchior
Ivan Lins   Tunai Zé Ramalho
(10.06) Quinta-feira Zeca Baleiro Djavan Márcio Greick Roupa Nova
Ednardo Luiz Gonzaga Teresa Valesca Zé Ramalho
Marisa Monte Cartola Osvaldo Montenegro Elis Regina
Tabela 1. Elaborada pela autora, a partir da sua pesquisa.

Observando intérpretes e canções registradas nesta tabela, reporto-me à chamada Era de ouro do Rádio, o que me possibilita uma viagem no tempo.

Mais uma vez, me dou conta da importância que este meio de comunicação exerce na história de produção musical brasileira, reproduzindo memórias que transcendem espaços de tempo e lugar. Tomando a Programação do ouvinte como espaço reconstrutor de uma memória musical, é interessante lembrar, por exemplo, o fato de a canção Rosa, de Pixinguinha, hoje interpretada por Marisa Monte, também ser veiculada, no mesmo Programa, na voz de Orlando Silva, um intérprete de grande sucesso, nas décadas 1930/1940.

Coexistem, assim, nessa Programação canções interpretadas por músicos de várias idades e de diversos locais. São esses intérpretes porta-vozes de canções que, às vezes, não são veiculadas por nenhuma outra emissora, e que também não encontram espaço de difusão em outros meios de comunicação.

E, se o encontram, é limitado. Com a preocupação de assegurar ao seu público consolidado uma "música de qualidade" e de possibilitar-lhe o "convívio" com músicas de diversas gerações às quais as pessoas também se ligam em função de memórias afetivas comuns, a emissora desempenha, assim, o relevante papel de mediadora dessa produção, e de propiciadora de um tipo de sociabilidade, criando um espaço de diálogo com uma memória receptiva, cotidianamente, dentre outras iniciativas, a partir da Programação do ouvinte.

Explicitando melhor o que acabo de escrever: Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia estão associados ao Tropicalismo, expressão musical do final dos anos 1960, cujo apelo central girava em torno da idéia de brasilidade.

Roberto Carlos e Erasmo Carlos, por sua vez, remetem-me ao Iê-iê-iê, movimento musical que se projetou através do programa Jovem Guarda, em meados da década de 1960, veiculado pela TV Record, de São Paulo. Elis Regina lembra-me a Bossa Nova e os "grandes festivais da MPB". Os nomes de Fagner, Belchior e Fausto Nilo, numa primeira fase de suas trajetórias musicais, associam-se ao grupo denominado "Pessoal do Ceará", cuja projeção, no Sudeste do país, se iniciou nos anos 1970.

No plano local, estes e outros nomes associam-se, ainda, no final da mesma década, a uma espécie de festival que se chamou "Massa Feira", mobilizando, de certa maneira, alguns talentos nos campos da poesia e da música.

Enfim, a veiculação desses compositores e intérpretes me desloca no tempo, e por diferentes espaços da sociedade e do território brasileiro, e me leva a diversos cenários ou movimentos musicais que se consagraram na dinâmica de nossa produção cultural e histórica.

O repertório da Rádio Universitária é um relicário e Nelson Augusto é nomeado pelo "cativo" ouvinte Cláudio, da Maraponga, como "lenda viva da MPB no Ceará". Cláudio afirma que assiste à Programação do ouvinte "nos 365 dias do ano". E, no sábado e no domingo, como não há a Programação, ele assiste ao "Freqüência Beatles" e ao "Brasileirinho" [3].

O universo dos ouvintes do programa associa-se a bairros nas regiões fisiográficas da cidade [4].

Fortaleza se divide em nove regiões:

1. litoral zona norte;
2. norte;
3. oeste;
4. centro oeste;
5. centro sul;
6. leste;
7. centro;
8. litoral zona leste;
9. sul.

1. Litoral zona norte - 4 bairros:

Barra do Ceará Moura Brasil
Cristo Redentor Pirambu

2. Norte - 12 bairros:

Alagadiço Jardim Iracema
Álvaro Weyne Monte Castelo
Carlito Pamplona Parque-Araxá
Farias Brito Pe. Andrade
Floresta Presidente Kennedy
Jacarecanga Vila Ellery

3. Oeste - 17 bairros:

Antônio Bezerra Henrique Jorge
Autran Nunes Jardim Guanabara
Bom Sucesso João XXIII
Conjunto Ceará I Jóquey clube
Conjunto Ceará II Pan Americano
Dom Lustosa Pici
Genibau Quintino Cunha
Granja Lisboa Vila Velha
Granja Portugal

4. Centro-oeste - 16 bairros:

Aeroporto Fátima
Amadeu Furtado Itaoca
Bela vista Jardim América
Benfica Montese
Bom Futuro Parquelândia
Couto Fernandes Parreão
Damas Rodolfo Teófilo
Demócrito Rocha Vila União

5. Centro-sul - 16 bairros:

Barroso Mata Galinha
Cajazeiras Parangaba
Castelão Parque 2 Imãos
Dendê Parque S. José
Dias Macedo Passaré
Itaperi Serrinha
Jardim Cearense Vila Manoel Sátiro
Maraponga Vila Pery

6. Leste - 23 bairros:

Aerolândia Guarapés
Alagadiço Jardim das Oliveiras
Aldeota Joaquim Távora
Alto da balança José Bonifácio
Cambeba Lagoa da Sapiranga
Cidade 2000 Papicu
Cidade dos Funcionários Parque Manibura
Cocó Parque Iracema
Dionísio Torres S. João do Tauape
Dunas Salinas
Edson Queiroz Varjota
Engenheiro Luciano Cavalcante

7. Centro - 1 bairro:

Centro

8. Litoral zona leste - 8 bairros:

Cais do porto Praia do Futuro I
Meireles Praia do Futuro II
Mucuripe Sabiaguaba
Praia de Iracema Vicente Pinzon

9. Sul - 16 bairros:

Ancuri Messejana
Bom Jardim Mondubim
Canindezinho Parque Presidente Vargas
Coaçu Parque Sta. Rosa
Conjunto Esperança Paupina
Curió Pedras
Guajeru Prefeito José Valter
Lagoa Redonda Siqueira

O diversificado universo geográfico da Programação do ouvinte sugere-me uma audiência heterogênea e cuja distribuição, na cidade, é ilustrativa de uma articulação de produção que difunde também entre os ditos bairros "periféricos" de Fortaleza, um gosto musical mais "apurado" que parece ser encontrado só na Universitária, como revelam alguns ouvintes. "Tem música que só toca aí na Universitária!".

Moradores desses locais não se inserem em um único segmento social. A veiculação de mensagens através da Programação consegue estabelecer verdadeiros diálogos entre diversos pontos da cidade, socializando-se, assim, uma proposta de divulgação, principalmente musical, embora não seja este seu único propósito; até porque com a participação dos ouvintes, estes redimensionaram o significado da produção, ao longo de sua história.

Segundo Nelson Augusto, "esta proposta contribui para que a emissora cumpra sua função social. As pessoas se sentem incluídas na 'grife' universitária".

A distribuição territorial da audiência guarda, ainda, relação com a distinção de expressões culturais, estas projetadas através da participação cotidiana dos seus ouvintes e pedidos veiculados pela Programação.

FM notícias: sociabilidade na utilidade pública e nas "dicas culturais"

A utilidade pública se insere no noticioso "FM notícias", veiculado, diariamente, após a primeira meia hora do início do Programa, ocupando um pouco do espaço destinado, primordialmente, à veiculação de canções.

Observe-se a fala do produtor às 18:30h: "faremos um breve intervalo para notícias, voltando logo em seguida. Universitária FM notícias". Em geral, envolve assuntos como: saúde, educação, defesa do consumidor, anúncios da UFC, ações políticas referentes a mobilizações de associações de segmentos de classe, mobilizações sindicais, ofertas de trabalho, denúncias, dentre outros. Destaco aqui temas que aparecem com mais relevância no noticioso ou, que não encontram espaço de projeção em outras emissoras de rádio, como eventos culturais e acontecimentos políticos cotidianos:

"Neste carnaval, entre para o bloco de doadores de sangue do HEMOCE e faça muita gente pular de alegria". Esta campanha tem o propósito de contribuir para a educação e a saúde, estando, assim, associada às funções mnemônica [5] e didática do Programa, chamando a atenção de todos para a solidariedade com a saúde coletiva. Portanto, uma mensagem que vai contribuindo para construir ou reconstruir relações sociais. Ademais, a trilha sonora da campanha é: "O teu cabelo não nega mulata porque és mulata na cor...", veiculando, desse modo, uma antiga marcha de carnaval.

O interesse pela saúde pública se reflete, ainda, na divulgação de congressos e seminários, conforme afirma o locutor, ao se referir à abertura de "jornada de psiquiatria", no hotel Othon Palace, cujo tema é: "Violência, desemprego e saúde mental". Por sua vez, o interesse por uma espécie de jornalismo de utilidade pública, revelado pela orientação da emissora, pode contribuir para aglutinar pessoas em torno de seus interesses, exercendo-se, desse modo, um aspecto interativo de sua proposta, conforme se pode perceber através dos "trechos noticiosos" que se seguem:

"A destruição de cascalhos Dunas reliquiárias nas praias de Fleixeiras é denunciada por turistas e moradores dessas localidades. Eles acusam a imobiliária Luciano Cavalcante que, no entanto, responde ter permissão da SEMACE".

"A justiça do Paraná determinou a readmissão de três a quatro funcionários demitidos pela Petrobrás, depois do vazamento de quatro milhões de litros de óleo da refinaria Araucária no mês passado. A decisão é resultado de ação movida pelo sindicato dos petroleiros, que alegou que os funcionários não tiveram direito de defesa das punições".

Novamente aparece aqui o Programa mediando notícias que, de algum modo, podem favorecer interações entre indivíduos e grupos, envolvendo diferentes segmentos sociais:

"Jornalistas constantemente perseguidos no exercício de sua profissão, vítimas de constrangimentos, agressões físicas, torturas e ameaças de morte. Em 2 anos, dezenas de pessoas denunciadas por exercício ilegal da profissão. Basta! Os jornalistas exigem respeito. Respeito ao exercício legal da profissão. Respeito a um salário digno e aos direitos adquiridos. Sindicato dos jornalistas profissionais do Estado do Ceará. Campanha salarial 2001".

Estes aspectos da Programação, evidenciando processos interativos, podem ser melhor compreendidos à luz do pensamento de Simmel sobre as interações sociais. Para este autor,

(...) a sociedade surge quando relações mútuas são produzidas por certos motivos e interesses. Não há interação absoluta, mas, somente diversas modalidades dela cuja emergência determina a existência da sociedade da qual não são causa nem efeito, mas ela própria de maneira imediata.

Somente a extraordinária pluralidade e a variedade destas formas de interação, a cada momento, emprestam uma aparente realidade histórica autônoma ao conceito de sociedade.

A sociedade em geral se refere à interação entre indivíduos. Essa interação sempre surge com base em certos impulsos ou em função de certos propósitos (...) que fazem com que o homem viva com outros homens, aja por eles, com eles, contra eles, organizando deste modo, reciprocamente, as suas condições - em resumo, para influenciar os outros e para ser influenciado por eles . A importância dessas interações está no fato de obrigar os indivíduos, que possuem aqueles, instintos, interesses etc., a formarem uma unidade - precisamente, uma 'sociedade' (Cf. Simmel, 1983:65; 165).

A utilidade pública me parece contribuir para atender necessidades manifestas por indivíduos agrupados por fins comuns. Portanto, a intervenção do comunicador está presente no Programa, facilitando estas interações. Vários espaços interativos podem ser produzidos a partir da ação facilitadora do locutor, envolvendo ações de indivíduos e grupos.

O comunicador age, assim, como mediador das interações resultantes de mobilizações de expectativas humanas de atendimento à saúde, à educação, a ações políticas, dentre outras motivações que se inter-relacionam na vida cotidiana dos seus ouvintes, e que são significativas para a consolidação de laços afetivos entre apresentador e receptores dessas mensagens, ou entre estes últimos, contribuindo, dessa maneira, para a construção de espaços de sociabilidade, associados a um fazer jornalístico específico da Rádio Universitária.

As campanhas de saúde pública se refletem nesse espaço como ilustrativas da preocupação da emissora com aquilo que diz respeito a interesses coletivos, portanto, um jornalismo que favorece a existência de processos interativos, envolvendo organizações ou grupos, indivíduos e instituições:

"Sábado será dia de campanha nacional de vacinação contra a poliomielite. Devem ser vacinadas todas as crianças de zero a cinco anos. A vacina contra a poliomielite não tem contra indicação. A repetição de doses não provoca danos à saúde".

"Alô, alô, futura mamãe! Criança pode contrair AIDS na gravidez, parto e amamentação. Faça o seu pré-natal. Uma campanha 'radialistas contra a AIDS'".

A emissora abraçou, em certa ocasião, outra luta; desta vez, em defesa da justiça e da segurança pública, veiculando campanhas como esta: "A APAVV (Associação de Parentes e Amigos de Vítimas da Violência) realiza vigília dos sem justiça para reivindicar um judiciário forte e reivindicar uma CPI por um judiciário forte. O movimento será em frente ao fórum Clóvis Beviláqua"; ou divulgando debates: "A Residência Universitária promove dia 6 de maio a conferência do dia internacional do trabalho com o presidente da CUT/CE, Eudes Xavier".

Anúncios de cursos e serviços prestados pela UFC e por outras instituições são constantes na divulgação de notícias:

"A Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza oferece curso de Especialização em Psicanálise para profissionais afins. Inscrições para o 2º encontro Nara Non (...). Palestras com especialistas e pais de crianças com problemas de drogas".

"CCV mantém para vestibular no próximo ano os mesmos livros" [no caso, o locutor apresenta a relação dos livros]".

"A UFC recebe até (...) inscrições para cursos de Especialização em Engenharia de Manutenção, que vai ser ministrado no Departamento de Engenharia Mecânica. A promoção é do Centro de Tecnologia da UFC. As aulas começam (...)".

Divulga-se a seleção de professores para a Casa de Cultura Britânica. Observe-se o interesse pelo jornalismo de "utilidade pública" contribuindo, assim, para aglutinar pessoas em torno de uma "causa" comum. Associa-se ao papel supostamente socializador do jornalismo:

"O Departamento de Ciências Sociais da UFC e o Centro Acadêmico Batista Neto promovem simpósio 'Universidade pensando o mundo contemporâneo'. Inscrições (...)".

"O Departamento de Enfermagem da UFC recebe, até quinta-feira, inscrições para seleção de professores substitutos. As áreas de estudo são: administração no processo de trabalho em enfermagem, semiologia, enfermagem em saúde coletiva e enfermagem em saúde mental (...)".

Diferentes gerações de indivíduos, procedentes de variados segmentos da sociedade, encontram no Programa acolhida para expressão de suas necessidades e tentativas de organização, junto a grupos de referência que possibilitam a construção e reconstrução de perspectivas em seus projetos de vida, o que parece se relacionar com a proposta de um jornalismo aberto às interações de várias formas de opiniões, referida pelo atual diretor da Rádio, professor Agustinho Gosson, do curso de Comunicação Social da UFC. Os trechos seguintes são ilustrativos a esse respeito:

"O núcleo de estudos do envelhecimento da UFC realiza quarta-feira, às 17 horas, um debate sobre o envelhecimento bem sucedido. O debate vai acontecer no auditório Castelo Branco com exposição do reitor emérito da UFC, Antônio Martins Filho".

"A Pró-Reitoria de Extensão da UFC inscreve candidatos para curso de extensão em música. Os candidatos devem ter conhecimento básico em música e 2º grau completo".

"A UFC recebe inscrições para o curso de Medicina em Barbalha e Acarau. Inscrições no vestibular da UVA".

"A Faculdade de Farmácia e Odontologia ministra curso de Especialização em prótese dentária. A Secretaria de agricultura e irrigação seleciona bolsistas de nível superior em Engenharia agrícola e áreas técnicas".

"Já está em circulação o 4º número da revista Universidade Pública. Os exemplares podem ser encontrados (...)".

São assuntos que chamam a atenção dos ouvintes para eventuais questões de seu interesse no cotidiano de suas relações com outros indivíduos, grupos ou instituições.

A Rádio vai, assim, exercendo o seu papel de espécie de "guardiã da cidadania", também por meio da dinâmica da Programação do ouvinte, ao mesmo tempo em que desempenha função importante, mediando mobilizações sociais no contexto urbano e do interior do Estado. Desse modo, vê-se a divulgação do Fórum Cearense pela vida do semi-árido:

"Mobilize sua paróquia, família, sua comunidade, seu prédio. Doação para o Banco do Brasil ou para alguma entidade do Fórum Cearense pela vida do semi-árido".

"O terceiro encontro dos filhos e amigos de Morada Nova acontece neste sábado a partir das 21h no Náutico Atlético Cearense (...)".

Vários setores da sociedade vão encontrando, dessa maneira, no espaço noticioso do Programa, possibilidades de expressão:

"As lojas de Fortaleza vão abrir todos os domingos de dezembro, a partir do próximo dia 3. Segundo o sindicato do comércio varejista de Fortaleza, vão abrir aos domingos: shopping centers, supermercados e lojas do centro da cidade, mas cada setor obedece ao horário de sua conveniência".

Um aspecto que chama a atenção, nessa dimensão de utilidade pública, é o fato de estar direcionada a um público mais específico, se comparada ao que ocorre em outras emissoras. Por exemplo: na Universitária, são muito freqüentes os anúncios que se voltam para assuntos relacionados à prestação de serviços públicos como saúde e educação. Parece que esta sociabilidade é exercida diferentemente do que se dá em meios de comunicação em que a linha editorial não prioriza campanhas de cunho social. Prioridades que fazem parte da linha editorial da FM Universitária parecem facilitar e reforçar o desenvolvimento desta sociabilidade específica; uma especificidade associada ao conteúdo de anúncios, conforme destacados anteriormente.

Sociabilidade e mensagens musicais

Chamou-me a atenção durante o Programa, o ouvinte Paulo Henrique, do bairro Papicu, oferecendo uma música para "os amigos do bar do Rogério", no bairro Presidente Kennedy. Esta situação ilustra uma sociabilidade que se processa entre pessoas localizadas em dois pontos geográficos bem distantes, no contexto da cidade. O Programa vai mediando, portanto, o encontro de ouvintes, de forma visível ou invisível; e, assim, vão se processando buscas mútuas entre pessoas localizadas nos mais diversos pontos da cidade de Fortaleza ou da Região Metropolitana.

Uma ouvinte no bairro Papicu, certa vez comentou haver gostado da matéria veiculada pelo jornal O Povo, em 14.10.01, sobre os "20 anos da Rádio Universitária", de autoria da jornalista Ana Mary Cavalcante, mas acrescentou: "Faltou o Nelson!" Assinala a ausência de Nelson no jornal, como aquele outro sente a sua falta no show. Referindo-se à matéria jornalística citada, também Ranulfo, do Parque-Araxá, enquanto formulava o seu pedido musical revela: "vi você no jornal. Gostei! Secretária de Nelson Augusto tem de aparecer".

Este comentário me diz de como o ouvinte está ligado à emissora, acompanhando, assim, matérias sobre sua atuação na sociedade, inclusive, através de outros meios de comunicação. E Nelson por sua vez, sente a falta daqueles participantes assíduos quando estes eventualmente não telefonam. Um ouvinte, ao ligar, me pede para dizer ao Nelson que está com a edição do jornal Diário do Nordeste em que viu sua entrevista sobre a cantora Cássia Eller. Assim, se o apresentador está no jornal, o ouvinte já acessa aquela reportagem alusiva ao mesmo. Estas ocorrências podem elucidar a sociabilidade construída nesses espaços em que terminam por se encontrar locutor-ouvinte.

Ao discutir a sociabilidade construída na relação com o locutor, lembro que "ouvintes cativos" são aqueles de maior constância na audiência, os quais quase sempre querem falar com o próprio Nelson. A construção do "ouvinte cativo" é, conforme disse antes, utilizada pelo locutor e referendada ou reproduzida em depoimentos de ouvintes como este: "Aqui é o Cláudio da Maraponga; não é o do Papicu. Sou cadeira cativa".

A exemplo do que ocorre com tantos outros, este ouvinte se identifica com a mesma linguagem do locutor. Tais ouvintes costumam pedir para "dizer ao Nelson" quem ligou, e, quando é o caso, informam o novo bairro de moradia, uma vez que, no contexto, o bairro é uma referência importante para a identificação; há uma cidade de Fortaleza digamos, preferencial, recortada pelo Programa. Sempre "conferindo a audiência", esses ouvintes são exemplos da existência de uma rede de interações que se cria no contato diário entre o conjunto de receptores e o locutor ou entre os participantes do Programa. O programa se constitui num exercício de alegria cotidiana coletiva, celebrando, reinventando o prazer de uma criança que sorri em cada ouvinte, a cada novo fim de tarde da cidade.

Constituem destaques de assídua audiência: o Ranulfo do Parque-Araxá; o Eduardo da Lagoa Redonda; o Gerson do Condomínio da Aeronáutica, no Antônio Bezerra; a Ana Paula do Bairro de Fátima; o Amareto do Bairro de Fátima; o Cid da Varjota, o Ednardo Honório do Bomsucesso; a Dona Luiza Felipe do Canindezinho; a Doutora Antônia do hospital psiquiátrico São Vicente de Paula, na Parangaba; o Cláudio da Maraponga; a Iracilda do Montese; a Doracy do Henrique Jorge; os "amigos do bar do Rogério", do Presidente Kennedy; o André Roberto do Álvaro Weyne; a Adelânia do Álvaro Weyne; o Roberto Chaves do Montese; a Ivonise Faustino do Parque Rio Branco; a Cláudia da Serrinha; o Nilson Rocha do Henrique Jorge; o Roberto Douglas da Aldeota; a Glaucineide, e seu filho de 7 meses, João Lucas, do Presidente Kennedy; seu irmão Evaristo Filho em Messejana; a Nair do Carlito Pamplona; o Reginaldo do Conjunto Jereissati 2; o João Teles do Maracanaú; 'a turma boa do bar Alto Astral, do Monte Castelo; o Carlos, o Francisco, o Caçarola, Luiz Cronge, Marisa, Laércio, Frigideira... Ari Capelari do Parque Manibura, Nélio do Rodolfo Teófilo e outros.

Alguns destes ouvintes, eventualmente, os encontrei no estúdio da Rádio, ou em eventos divulgados pelo programa.

Um artifício através do qual o comunicador se aproxima do ouvinte é pedir para o receptor ligar novamente se a sua solicitação não foi esclarecida: "Pedimos que o ouvinte que quer ouvir Menestrel das Alagoas, com a Fafá de Belém ligue a seguir novamente". No apelo à participação, ele lembra:

"Gostaria de mandar um grande abraço para o pessoal que acompanha nosso programa pela Internet. Você acessa o site <www nelsons.com.br> ou e-mail: <nelson@nelsons.com.br>. Pelo telefone chama o ouvinte a participar: "todo mundo ligando e participando aqui com a gente. Seu espaço pelo 281.57.74/281.57.52. É só ligar e fazer seu pedido musical".

Enfim, conclama os ouvintes à participação, por todos os meios de comunicação de que dispõe: a Internet, o rádio, o telefone, e, ainda, o correio convencional, a visita ao estúdio. Desta forma, vai levando aos ouvintes sua mensagem, em busca da integração destes à produção.

Ao encerrar a Programação, adverte: "E a nossa Programação do ouvinte vai ficando por aqui. Gratos pela atenção, boa noite a todos. Programação do ouvinte volta amanhã às 18 horas". E, se aquela é a última edição do Programa, na semana, ele diz: "Avisamos aos ouvintes que não tiveram seus pedidos atendidos que tocaremos segunda-feira. Tenham todos um bom fim de semana".

Este ritual de agradecimento de audiência, efetivado no cotidiano, reforça as interações das pessoas com a produção ou em seus grupos, em função da mediação exercida pelo comunicador na dinâmica do Programa. Em outras palavras, ouvintes lembrados, cotidianamente, na audiência mesmo sem ligar de imediato, criam laços afetivos com esse contexto. O locutor pressupõe que determinados ouvintes estão na audiência e manda seu apelo: "Sua participação pelo 281.57.74 e 281.57.52. É só ligar e pedir".

E muitos deles, mesmo sem ligar, ficam na escuta, conforme revelam, por exemplo: a "turma boa da Nevasco Cortinas", uma loja comercial no Bairro de Fátima - "A gente não liga porque tá trabalhando, mas estamos na escuta", e a "Dra. Antônia, no hospital São Vicente de Paula", que, ligando e informada de que Nelson está ocupado, diz: "espero para ele atender porque é difícil conseguir uma linha...".

Aparece, ainda, a "comunidade" localizada no bairro Jardim Petrópolis, que, reunida na calçada, "confere" a audiência. O Programa pode ajudar a reconstruir rodas de conversa de calçadas, uma forma de sociabilidade que tem desaparecido com o crescimento urbano. Assim, o Programa se nos apresenta como mediador dessas interações e tais formas de sociabilidade vão se mantendo, embora se desenvolvam outras como a "comunidade" virtual de internautas.

É desta forma que as interações vão se construindo. A partir desse ritual cotidiano de apresentação e chamada de audiência são lembrados os grupos de referência de ouvintes.

A reciprocidade observada na relação diária do locutor com seus ouvintes contribui para consolidar laços afetivos nesse contexto. Assim, o Gerson, do Condomínio da Aeronáutica, oferece a canção Canteiros, com o Fagner, para "todos os que fazem a Universitária". E o locutor vai, com uma simpatia peculiar, ganhando novos ouvintes, sempre se referindo à "comunidade" da inserção de quem ligou para a produção: "agradecendo a audiência da turma boa do Cambeba". Aqui é enfático acrescentando: "do Cambeba", bairro [6]. A "comunidade" de origem do indivíduo é sempre associada ao envio da mensagem, no agradecimento da audiência.

Os ouvintes são, assim, sempre contextualizados num grupo: "turma boa" do Presidente Kennedy; "Dona Luiza Felipe, do Canindezinho"; "turma boa do Parque Sta. Rosa" e muitos outros. As imagens evocadas na linguagem do apresentador chamam-nos a atenção para a audiência enquanto personalidade coletiva: "Todo mundo participando aqui com a gente, participando da nossa Programação".

Com se pode ver, essa linguagem veicula imagens de modo a inserir sempre o indivíduo em grupos de referência. Evoca representações positivas desses participantes como: bom, grande e outros adjetivos que os singularizam com a referência a alguma habilidade ou preferência pessoal, enfim, formas simpáticas de tratar, que parecem encontrar ressonância na percepção dos ouvintes acerca do lugar ocupado por cada um ou pelo grupo. Ao mesmo tempo, observa-se uma espécie de reciprocidade no tratamento: os ouvintes também se referem ao locutor como "maravilhoso", "simpático", "super-educado" etc.

O bairro Presidente Kennedy é destaque da audiência e, através da Programação do ouvinte, parece funcionar como uma espécie de ponto de interseção no qual se cruzam várias mensagens, viabilizando, assim, no ar, a interação entre diferentes indivíduos e bairros ou "pontos" da cidade: "os amigos do Bar do Rogério" que, sistematicamente ligam, certo dia pedem a música Quem te viu quem te vê, de Chico Buarque, "para o Júnior que vai casar". O Júnior envia a página musical Eu te amo, do Chico Buarque, para a Sandra, sua noiva. Também envia a canção Os amantes, de Chico Buarque, para "os amigos do Bar".

A canção Cecília, de Chico Buarque, "os amigos do bar" enviam para Ana Cecília, do Conjunto Ceará, e a canção Fascinação vai para a Stefânia que, também, em outro momento, é saudada com a canção Não enche, de Caetano. "Os amigos do bar" recebem a mensagem Canção da América, com Milton Nascimento, do Roberto Chaves, do Montese. A canção de Antônio Carlos e Jocafi, Você abusou, eles enviam para Natália, na Av. Aguanambi.

Uma sociabilidade também no âmbito familiar se associa à Programação do ouvinte e esse espaço de interações (família) aparece em vários momentos. Assim é que se observa, por exemplo: a mensagem de Vilson, Diana, D. Selda e Cláudio, do bairro Monte Castelo, oferecendo Andança, com Golden Boys, para o pai que está aniversariando Dona Luiza, do Canindezinho, oferece a canção Só chamei para dizer que te amo, com Gilberto Gil, para sua filha, Taís, que aniversaria.

Na fala do apresentador, essas interações aparecem, também, no agradecimento da audiência, conforme se segue: "da Dona Luiza e seu filho, Zé Roberto, no Canindezinho"; "da Cláudia e da sua mãe, no Papicu; da Sara, do Papicu, que envia a canção Sorri, com Renato Braz, para sua tia no Parque-Araxá. Articulam-se, através da Programação, um bairro da zona Leste da cidade com um outro da zona Norte. Participam, também, da audiência o casal Vanda e Rodrigo e a filha, Luana, de oito anos, que "todo dia escuta o Nelson".

Conforme seu pai, "chega da escola e já liga na Programação do ouvinte"; pedem a música Canção da América, com Milton Nascimento, e solicitam um "abraço do Nelson". Este reforça a participação dos ouvintes dando alô para eles e para "Luana com 8 aninhos já aí, conferindo a Programação do ouvinte". Vai tentando conquistar, assim, também as crianças, envolvendo-as na dinâmica da audiência. Nas suas palavras, "essa turma, vem do bairro Papicu, na zona leste da cidade".

Chamo a atenção para as mediações que a Rádio exerce nos rituais de aniversário. Observe-se como esta discussão articula-se à construção de laços de sociabilidade e reconstituição de memórias, no contexto da Programação do ouvinte. Nesses termos, tomando-se, mais uma vez, a fala do apresentador, encontram-se nela elementos significativos na construção de toda uma rede de interações, que envolve relacionamentos no contexto familiar, relações ouvintes-emissora, ouvintes-ouvintes, inserção de ouvintes no seu espaço de trabalho:

"Sei que ele [refere-se ao Programa] representa também para o ambiente familiar para as pessoas que fazem aniversário [7]. Como era antigamente na radiodifusão. Questões românticas, enviam-se mensagens românticas. Os encontros nascendo a partir de uma música, inclusive, relações às escondidas, para não criarem atritos para outras pessoas, preservando-se, assim, um sigilo no envio de mensagens por códigos anônimos (...). O ouvinte é participante. Por exemplo, o ouvinte da Rádio Universitária é um confidente. A TV lhe dá tudo, mas no rádio, o ouvinte fantasia e pára pra ouvir. Nas outras rádios é diferente. O uso de vitrolões veicula uma música sem sequer reportar-se ao nome dela. A doméstica que escuta seu forrozinho, ela até sai dançando. Neste contexto de vitrolões que aparecem nos fundos de bares, não há essa coisa de linguagem de pé-de-ouvido. Muitas vezes, neste esquema não se dá a linguagem de você parar para ouvir. Pessoas comentam comigo questões polêmicas, dizendo: 'você falou isto...'. Aí eu sei que eles estavam me ouvindo, não só escutando". (Nelson Augusto).

Vê-se o seguinte depoimento, reportando-se ao rádio, mediando a mensagem de aniversário: "Aqui é Verônica, do Jacarecanga, quero oferecer a música Por quem merece amor, com MPB4, para o Luís Carlos, do Pirambu, que está aniversariando hoje".

A seguir, uma ouvinte comenta uma mensagem de aniversário recebida:

"Achei muito linda! Nunca tinha recebido uma mensagem deste tipo, da pessoa ligar para o rádio e oferecer uma música que a pessoa gosta, Você é linda, com Caetano Veloso. Uma música bonita, eu me senti muito feliz pois música não foi só para mim, não só eu ouvi, mas várias pessoas que estavam ouvindo aquela Rádio ouviram passaram a me conhecer, tive a sensação de que foi um presente para mim mas, eu e outras pessoas souberam que era meu aniversário e estavam me oferecendo aquela música".

É interessante se perceber a sociabilidade, também, através dos pedidos de mensagens românticas, veiculados pelo Programa. Algumas situações ilustrativas desse aspecto: A Cláudia envia Andança, com Golden Boys, para seu noivo Eduardo, na Lagoa Redonda. A música Sozinho, com o Caetano, a 'misteriosa' oferece para o Samuel, do bar do Jorge do Montese.

A canção Por quem merece amor, com MPB4, um "certo alguém" oferece para Luís Carlos, no Pirambu. Cristina, no Jacarecanga, oferece Um desejo só não basta "para seu grande amor". A canção Oceano, com Djavan, a Marisol, da Lagoa Redonda, oferece "para seu namorado" que viajou para Florianópolis, e acrescenta que quando ele voltar vai mostrar a gravação da mensagem, dizendo-lhe de sua saudade. A Gessy, do Rodolfo Teófilo, oferece uma canção para seu "grande amor da Arquitetura". O Robson, do Pici, envia a canção Maçã para aquela que ele chama "minha vida". O Hudson, do Pici, oferece Mal de mim, com Djavan, para sua filha Yasmim e sua esposa Nonata, com quem brigou, mas "quer se reconciliar nesta sexta feira", querendo que a música toque ainda no mesmo dia, "para não ter de esperar pela reconciliação até segunda feira".

O locutor vai sendo chamado, assim, a mediar as reconciliações amorosas, tornando-se, ao mesmo tempo, uma espécie de cúmplice-confidente desses ouvintes, e a Programação vai sendo percebida, pelos participantes, como espaço mediador desses conflitos. O ouvinte é também produtor de sentidos para a produção. Num outro momento o apresentador é solicitado a enviar uma canção para o namorado com quem a solicitante quer se reconciliar da briga, pois sabe que este está na audiência. E, dizendo que vai "botar lenha na fogueira", Nelson escolhe, então, a canção Eu sei que vou te amar, com Vinícius de Moraes, reproduzindo o recado.

Assim, estou chamando a atenção para algo que ocorre nesses espaços e pela ação dos seus principais atores sociais, sem que haja um planejamento para tal. Refiro-me a todo um simbolismo que, na dinâmica dessa produção cultural, parece que vai ganhando corpo, no ar, e que não é mensurável e não é perceptível, se não enveredarmos pelos múltiplos caminhos nos quais os significados vão sendo construídos ou adornados, através de palavras, gestos, associações de idéias etc.

Obs.: A presente pesquisa foi previamente apresentada nos cadernos Ciência e Saúde (30.0706), e Vida e Arte (15.10.2001) do jornal O Povo, em anais do IV Encontro de Pós-Graduação da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e no artigo Memórias e sociabilidades na Programação do ouvinte (In: Revista de Ciências Sociais, Vol. 34, no 1, 2003, p. 115-126).

Notas

[1] Programa de mensagens musicais co-produzido pelos ouvintes da Rádio Universitária da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, que no momento da pesquisa era dirigida pelo professor Agostinho Gosson, do curso de Comunicação Social da UFC.

[2] Forma abreviada de "vamos embora".

[3] Estas são outras produções do mesmo jornalista que produz a Programação do ouvinte.

[4] Cf. Falcão (1996).

[5] Como função reprodutora de memórias.

[6] Cambeba é o bairro sede do poder oficial do estado do Ceará. A advertência feita pelo locutor tem o sentido de evitar que se crie, por parte do ouvinte, qualquer tipo de associação entre o Programa e o grupo que comanda, atualmente, o Governo Estadual ou o poder que ele representa.

[7] "(...) eu sou a vovó do Programa no meio dessa juventude. Comecei a participar porque meu filho, Zé Roberto, participava e dizia: 'mãe, vou pedir essa musga [música] e oferecer pra senhora. Tá aqui uma rádio boa pra você assistir'. Aí eu fiquei ouvindo o programa dos Beatles, aos sábados. Foi por intermédio do Roberto" (D. Luiza Felipe, do Canindezinho, assídua ouvinte).

Referências bibliográficas

SEVERIANO, J.; MELO, Z. H. A Canção no Tempo. São Paulo: Editora 34, 1998, Vol. 1, p. 85 e Vol. 2, p. 15- 16.

CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 1998.

______________. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

FALCÃO, M. F. P. Fortaleza em preto e branco. Fortaleza: IPLANCE, 1996.

CARVALHO, H. B.; SANTOS, U. R. "Comunicação comunitária: uma experiência que dá certo". In: Ciência para o progresso da sociedade brasileira, ed. 48. São Paulo: Anais... São Paulo: Indústria Gráfica Ed., Vol. I, p. 151.

FILHO, E. M.; FERNANDES, F. Simmel. São Paulo: Editora Ática, 1983.

*Inês Almeida Vieira é graduada em Psicologia e doutoranda em Sociologia.

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®Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]