O
hipotético-possível antes
do (com)provável
Por
José Amaral Argolo*
Uma
tarde, em prantos, apareceu na Delegacia
de Copacabana (Rua Hilário de Gouveia,
Posto 2) a empregada doméstica Juventina
Rosa de Paula, 45 anos, vestida de noiva
com véu e grinalda. Sua história
era comovente.
Cozinheira
de forno e fogão, tratando bem as
madames para as quais trabalhava, guardava
suas economias e assim foi durante vinte
e três anos, até que alguém
bateu à sua porta.
Era
o leiteiro. Insinuante, boa pinta, Manoel
Vieira da Silva, cearense de 25 anos, arrancou
o primeiro suspiro de Juventina. Ganhou
um alô. A doméstica ficou empolgada
e passou a agradar o leiteiro, dando-lhe
presentes e até mesmo pequenas importâncias
em dinheiro. O cearense, mais do que sabido,
convenceu Juventina a retirar suas economias
da Caixa Econômica.
O
dinheiro, disse, serviria para o casório.
A mulher retirou os Cr$ 15 mil.
Manoel,
vigarista de alto gabarito, marcou o casamento
no civil.
Aproveitando
a boa-fé da doméstica, realizou
o falso matrimônio no Bar Bucarest,
em Copacabana, contando com a conivência
de seus amigos Gilberto Mendes Vinagre,
o suposto Juiz de Paz, e do "escrivão"
Romeu Marques Chianelli. A farsa surtiu
efeito. Com uma Bíblia os vigaristas
sacramentaram o casório. Juventina
pagou ainda uma nota alta em comestíveis
e bebidas. Dias depois seria realizado o
ato religioso. Somente Juventina apareceu
de véu e grinalda na Igreja da Praça
Serzedelo Corrêa.
Transeuntes
riram da sua ingenuidade. Juventina, coitada,
nunca mais casou.
José
Monteiro, Casos de Polícia,
p. 59.
A
verdade jornalística, diferentemente
de um dogma político-partidário
ou de fundamentação religiosa
pode ser resumida como um conceito elástico,
provisório. Com efeito, toda e qualquer
reportagem pode vir a ser total ou parcialmente
modificada na edição seguinte,
sem que - sobre as páginas dos diários
- ou dos blocos do noticiário televisivo/radiofônico
- recaia o engessamento típico dos
compêndios e enciclopédias,
somente atualizáveis [a um custo
elevadíssimo] na reedição.
Esta
verdade jornalística, porém,
será tanto mais confiável
e, digamos, preservada enquanto não
for questionada. Algumas notícias
permanecem, à semelhança das
impressões palmares deixadas na Calçada
da Fama em Hollywood, como marcas indeléveis
de uma personagem fabulosa do cinema ou
do jet set internacional.
Por
exemplo, são verdades assim consideradas
as manchetes e fotos sobre a chegada do
homem à Lua; o nascimento de Louise
Brown [primeiro bebê de proveta];
as seqüências documentando o
instante da prisão de um ditador
ou delinqüente classificado como Inimigo
Público Número 1; as imagens
da ovelha Dolly [o primeiro clone];
as reproduções autenticadas
de documentos comprometedores, principalmente
quando envolvendo personalidades da vida
pública etc.
Durante
décadas as reportagens e/ou entrevistas
publicadas e/ou tele/radio-difundidas foram
rejeitadas no âmbito das Universidades,
sob a alegação de que tais
informações careciam de credibilidade
e de algum rigor metodológico desde
a gênese. Dizia-se que um texto capaz
de ser reduzido do status manchete a uma
nota de pé de página no curto
intervalo de vinte e quatro horas não
poderia ser considerado documento científico.
A
argumentação por parte dos
adeptos desse conceito foi lenta gradualmente
derrubada na medida em que, por sua própria
dinâmica, a Imprensa Brasileira contribuiu
para que, isoladamente ou em conjunto, historiadores,
cientistas políticos, sociólogos
e jornalistas modificassem com seus escritos
e/ou comentários gravados parte do
intrincado quebra-cabeças da História
deste País.
Não
sem razão, nos últimos vinte
e cinco/trinta anos, foram e têm sido
notáveis e indispensáveis
as contribuições dos jornalistas
para esse reconstituir / redescobrir / repensar
de maneira objetiva, correta e bem documentada
a nossa História política,
econômica e social. Cito alguns desses
autores e seus trabalhos:
Domingos
Meirelles (As noites das grandes fogueiras;
Os órfãos da Revolução);
Elio Gaspari (A Ditadura Escancarada;
A Ditadura Envergonhada; A Ditadura Derrotada);
Jacob Gorender (Combate nas Trevas);
Carlos Chagas (A Guerra das Estrelas;
O Brasil sem retoque [2 volumes]; Dênis
de Moraes (A Esquerda e o Golpe de 64;
Prestes, Lutas e Autocríticas);
Carlos Castelo Branco (Introdução
à Revolução de 1964
[2 volumes]) o próprio Autor destas
linhas (A Direita Explosiva no Brasil;
Dos Quartéis à Espionagem:
Caminhos e Desvios do Poder Militar).
A
chamada Seção Policial foi
muito provavelmente a primeira a sofrer
o impacto dessas modificações
gráficas e editoriais. Abriu-se o
último furo possível no cinturão
e os comentários longos e livres,
as teses engendradas pelos remanescentes
da antiga Universidade das Ruas (isto é
aqueles que não passaram pelos bancos
das instituições de ensino
superior), cederam lugar aos textos mais
enxutos e a um pragmatismo reducionista
que, por caminhos paralelos, resultou numa
espécie de denuncismo irresponsável
além de um infindável quantitativo
tanto de ações reparatórias
e interpelações judiciais.
Entre
as tantas marcas identificadoras desse modelo
jornalístico na esfera policial (que
se estendeu até meados dos anos oitenta,
enquanto o conceito de compact newspaper
[1] manteve força na Imprensa Brasileira,
notadamente no eixo Rio de Janeiro-São
Paulo), destaca-se uma criatividade para
muito além da realidade dos fatos
descritos nos diários.
Para
a maioria dos atuais leitores: estressados,
apressados e cada vez menos informados,
a descrição física
de uma personagem do submundo ou cena de
crime constitui detalhe dispensável
(não importando a sua extensão
ou ressonância).
Para
esses leitores o que importa saber é
que a notícia, por menor que seja,
está ali na página.
Uma
reportagem extensa e enfeixando, se possível,
todos os desdobramentos não mais
encontrará tantos receptores com
tempo disponível vontade para refletir
sobre o conteúdo ampliado. Internamente,
por sua vez, os fechadores de páginas
trabalham atualmente com espaço precário.
O que se percebe na maioria dos diários
de grande circulação é,
de fato, uma inversão jornalística.
Pressionados
por dívidas decorrentes da aquisição
e importação de mega-unidades
impressoras, além, muito além
das necessidades industriais, boa parcela
do espaço gráfico vem sendo
ocupado por propaganda institucional, isto
é, da própria corporação,
prática esta não muito freqüente
na primeira metade do século XX
Peço
licença para recordar quatro episódios
que, por sua natureza, são interessantes.
Cada qual apresentando aspectos diferenciados
tanto no quesito apuração
como em relação às
conseqüências.
A
primeira delas resgato da época em
que trabalhava no Globo como repórter
credenciado junto à Secretaria de
Segurança Pública do Estado
do Rio de Janeiro, durante o segundo governo
de Antonio de Pádua Chagas Freitas.
Certa
noite, após uma dura jornada de trabalho,
fui surpreendido com a informação
segundo a qual o Secretário daquela
Pasta, general Edmundo Adolpho Murgel, após
conversa reservada com o governador do Estado,
pretendia promover uma devassa na Polícia,
para reduzir as estatísticas de violência
e de corrupção.
Os
diretores de Departamentos, chefes de gabinete,
coordenadores adjuntos etc já estavam
em suas residências. Daí, as
limitadas informações de que
eu dispunha foram transformados em uma única
nota de dois ou três parágrafos.
Na
redação do Globo o
editor-chefe, Milton Coelho da Graça
(um dos mais completos jornalistas que conheci),
decidiu transformar aquela nota em manchete
do jornal. Cobrou-me, então, a elaboração
de um texto capaz de preencher uma página
(dezesseis laudas aproximadamente [480 linhas]
descontado o título-forte, legendas,
entretítulos, fotos de arquivo etc.
Salvaram-me
do pior (isto é, da bronca)
o caderno de telefones com os números
dos restaurantes freqüentados pelos
integrantes da cúpula da SSP, das
residências e outros números
confidenciais) e a amizade com algumas pessoas
ligadas ao Gabinete do Governador, que acrescentaram
subsídios àquela decisão
estratégica.
O
segundo episódio aconteceu passados
alguns anos quando eu trabalhava em O Dia
(na época o jornal mais vendido nas
bancas do no Rio de Janeiro).
José
Côrtes, Zé Grande, experiente
repórter de Polícia (hoje
aposentado) fora designado para cobrir jornalisticamente
um homicídio na Zona Norte (nesta
época O Dia dispunha da maior frota
de carros de reportagem entre todos os diários
do Rio de Janeiro, além de uma equipe
especializada). A recomendação
do Secretário de Redação
(Antomary Ruy de Santacruz Lima) era no
sentido de - em se tratando de assassinato
e sem que se tivesse maiores informações
a respeito - correr no escuro.
Zé Grande foi de carro até
o local do crime, sabendo previamente que,
devido ao adiantado da hora, não
teria como retornar à base, redigir
ou mesmo ditar os dados para o primeiro
redator disponível. [2] Assim que
ele conseguiu apurar algumas informações
repassou os dados por intermédio
do rádio transmissor-receptor do
carro de reportagem ao redator (salvo lapso
de memória essas informações
foram colhidas por Moysés Meohas,
excelente jornalista e companheiro de lutas,
hoje aposentado).
No
entanto aconteceu um imprevisto. Devido
ao reduzido impacto do noticiário
daquele dia e sem dispor de melhores alternativas
nas demais editorias, Ruy Santa Cruz decidiu
transformar aquele episódio corriqueiro
na manchete do jornal. E determinou que
o redator ampliasse o texto resultante daquela
primeira apuração para seis
laudas (180 linhas).
Zé
Grande já estava regressando
à Redação, na Rua Riachuelo
(Centro), quando o carro da reportagem ficou
preso num engarrafamento. Então,
de volta à pequena sala onde ficava
o rádio, o Chefe de Reportagem do
turno da tarde. Manuel Abrantes (já
falecido) enviou novo apelo, mais ou menos
nos seguintes termos: "Zé,
você precisa acrescentar informações
porque, com os dados que você já
passou, o Moysés somente conseguiu
escrever uma lauda e meia e o Ruy quer 180
linhas no mínimo para fechar a página".
A
solução: o repórter
pediu um pouco mais de tempo para agir e,
logo depois, aproveitando-se da experiência
na cobertura de fatos parecidos, transmitiu
o restante.
O
terceiro episódio... Bem, essa é
uma história cujos personagens e
jornal preservo face às implicações
processuais. Dizia-se que durante uma madrugada
de temporal, daqueles em que não
se enxerga um palmo diante do nariz, certo
repórter de plantão recebeu
ligação telefônica informando
sobre um "encontro de cadáver"
junto ao leito da via férrea próximo
a uma estação na Baixada Fluminense.
Aquele
mesmo repórter foi mobilizado para
o local e ao chegar, debaixo do aguaceiro,
constatou que o corpo não tinha ferimentos.
A equipe ficou quase uma hora aguardando
a chegada da guarnição de
uma radiopatrulha e a Perícia...
e nada!!!
A
solução foi seguir de carro
até a Delegacia da área e
indagar o motivo de tanta demora.
Surpreso
com a inesperada visita da equipe de reportagem,
o inspetor de plantão perguntou:
-
O quê vocês vieram fazer aqui,
debaixo desse aguaceiro?
-
Aguardávamos a chegada da Perícia
no local assim-assim, mas até agora
ninguém apareceu...
-
Mas... vocês ficaram doidos? Até
o momento não recebemos qualquer
notificação sobre esse fato.
Pode ter sido vítima de mal súbito
e a Perícia sequer foi acionada...
-
De todo modo nós temos que retornar
ao local e esperar.
A
partir desse ponto conta-se que, uma hora
depois, a mesma equipe voltou à Delegacia
e informou ao inspetor que, observando melhor,
o cadáver apresentava uma perfuração
na altura do peito.
Contam
alguns que a equipe voltou realmente àquele
trecho ermo da via férrea e, aproveitando-se
da escuridão e do temporal, o repórter
teria cravado a ponta do guarda-chuva no
cadáver para dar a impressão
de que acontecera um homicídio e,
com isto, assegurar a mobilização
dos peritos.
Outros
acrescentam que, no transcorrer das investigações,
houve um desentendimento entre os peritos
do Instituto de Criminalística e
os médicos legistas. Os primeiros
argumentando que o corpo encontrado fora
vítima de ação inesperada
e violenta e os demais afirmando que aquela
morte decorrera de um infarto agudo do miocárdio.
Houve
prática de crime? À luz do
Direito, sim. Crime de vilipêndio
a cadáver [praticado pelo repórter],
tipificado no artigo 212 do Código
Penal. Foi claramente ferido o sentimento
de respeito pelos mortos, cujo sujeito
passivo é a coletividade, conforme
acentua Celso Delmanto (In: Código
Penal Anotado. São Paulo: Saraiva,
1983, p. 267-268).
Celso
Delmanto cita, ainda, dois outros eminentes
criminalistas: Heleno Fragoso e Magalhães
Noronha, para quem:
(...)
essa conduta deve ser praticada perante,
sobre ou junto do cadáver ou suas
cinzas. Há dolo específico
bem como o elemento subjetivo consistente
no propósito de aviltar, ultrajar.
Não existe modalidade culposa para
esse delito e a pena prevista na lei é
de detenção de um a três
anos, além de multa pecuniária.
Jornalisticamente,
porém, e na ausência de pessoas
que pudessem testemunhar e denunciar, esse
fato passou impune e foi registrado como
qualquer outro naquele diário.
O
quarto e último exemplo (este não
associado às páginas da Seção
Policial) foi elaborado a partir da memória
acumulada somada ao imaginário fértil
de Luiz Carlos Sarmento, um dos mais representativos
e ecléticos jornalistas da sua geração.
Ele redigiu uma criativa reportagem sobre
A Morte do Brasil Danças,
na Cinelândia (Centro do Rio de Janeiro).
Todo o texto, publicado na edição
do Globo de 26 de agosto de 1979, [3] foi
redigido sem que ele tivesse estado no local
durante todo o tempo descrito.
Bem...
pelo menos naquela noite.
Milton
Coelho da Graça, durante seminário
do qual participei como expositor, na Associação
Brasileira de Imprensa, ficou surpreso ao
saber que, em um livro de minha autoria
[ainda inédito] e de Gabriel Collares
Barbosa (Doutor em Comunicação
e Cultura pela ECO-UFRJ e professor do quadro
permanente mesma instituição
de ensino) eu incluí, nos Anexos,
a íntegra daquela reportagem intitulada
A morte do Brasil Danças: Na noite
do adeus, Valsa de despedida e a última
briga.
Milton
Coelho era editor-chefe do Globo
e, de hábito, pré-pautava
- ele próprio e independentemente
dos projetos dos demais editores -, alguns
repórteres mais audaciosos e com
jogo-de-cintura, para cobrir este
ou aquele assunto que julgava essencial
ou pitoresco. Eu mesmo, por quatro ou cinco
vezes, tive o privilégio de ser escolhido.
Sarmento,
no entanto, rompeu todos os parâmetros,
ao entregar os originais ao editor na Redação
antes mesmo que o baile tivesse terminado.
Na
dúvida (e conhecendo algumas das
travessuras de Sarmento) Milton Coelho
da Graça decidiu publicar o texto.
O
que, com sua licença, leitor, também
transcrevo agora, na íntegra:
A
Morte do Brasil Danças: na Noite
do Adeus, Valsa de Despedida e a Última
Briga
Luiz
Carlos Sarmento
Ainda
faltam 20 minutos para a Valsa da Despedida
e, ao microfone, a lady crooner Kátia
dá o melhor de si na interpretação
de Vingança (Lupicínio Rodrigues).
É a última noite. De repente,
uma cadeira é arremessada e cai
na pista de dança. A cadeira é
seguida por uma garrafa de cerveja, que
se espatifa na pista. É a última
briga, na última noite do Brasil
Danças. Para os freqüentadores
habituais não é novidade:
são Pretinha e Silvinha
que outra vez se desentendem, quando falta
muito pouco para o dancing
encerrar suas atividades.
Para
quem se acostumou a dançar com
as táxi-girls, começa
"um imenso vazio"; para mais
de cem bailarinas, o desemprego. Elas
dizem que vão recorrer à
Justiça e já contrataram
até advogado, mas está difícil
provar há quanto tempo têm
a sua remuneração controlada
por cartões perfurados. Lilá,
a mais antiga, 27 anos de pista, diz que
não sabe como conseguirá
dormir à noite.
"...Com
um sorriso na boca".
O
último freguês já
tinha saído. Lilá dança
sozinha, no meio da pista. Nas mãos,
o cartão cor-de-rosa perfurado.
Ela canta trechos da música que
viu Chocolate compor para Ângela
Maria, numa das mesas do dancing:
"...E uma lágrima no olhar".
-
Pois é. Uma lágrima no olhar,
pés inchados, corpo quente de abraços,
mãos vazias.
Lilá
rodopia, rodopia. Tal como às 22
horas de sexta-feira, quando entrou pela
última vez como bailarina do dancing.
Um freguês se ofereceu para furar
os 300 minutos do seu cartão para
que ela saia logo de lá, mas ela
não quer. Espera até o fim.
Vê Maria Margarida, a colega, ser
barrada na porta porque dera entrevista
contra a demissão em massa das
bailarinas.
Vê
Tininha chorar nos ombros do "picoteiro"
Antônio, entregando pela última
vez seu cartão picotado. Vê
as 63 mesas repletas de gente e garrafas.
Vê a lágrima no olhar de
Nora, que não sabe agora como irá
sustentar os dois filhos.
-
Depois da valsa a bebida é de graça.
É hoje só. Amanhã
não tem mais.
Aos
berros, o garçom interrompe o rodopio
de Lilá, que continua cantando:
"...É uma sereia vadia,
vivendo da noite de orgia o seu drama
passional..."
Denise,
ex-bailarina, ameaça um strip-tease.
-
Bem que eu disse que ela não podia
entrar. Quem deixou ela entrar? Vai estragar
a festa. Já pensou o vexame, na
hora da valsa? Por que não colocam
ela para fora? Essa mulher já "aprontou"
muito aqui dentro, será que vai
estragar a última noite?
Como Denise, cerca de 200 pessoas querem
viver os últimos momentos do Brasil
Danças. Algumas comportadas,
fáceis de serem identificadas pelas
calças compridas (as bailarinas
profissionais só usam longos, para
serem distinguidas pelo "picotador"
e fiscais) e pelos passos desajeitados
que dão na pista. Ou pelos olhares
maldosos que dão nas bailarinas
demitidas. Como o olhar de Denise,
ex-bailarina do Brasil Danças,
expulsa há dois meses por infringir
com falta grave o regulamento que "exige
respeito". Com um sorriso na boca,
ela insiste em seu strip-tease.
"...Sem
escolher seu par".
A
primeira música cantada na última
noite do Brasil Danças pelo
crooner Ed Santos, o Edinho
("não sei não, mas
acho que também dancei junto com
as bailarinas e não sei para onde
vou"), é Gosto de Maçã.
Logo que ele começa a cantar, Tânia,
18 anos de dancing, é chamada
para dançar pelo comerciante português
José Abrantes, 67 anos, vinte de
Brasil. Ele faz questão de formar
"o primeiro par da noite". Alicia,
18 anos de casa, vê com satisfação
o moço louro que acaba de tirar
sua filha, Alexandra, também bailarina
("parece ser um moço de respeito").
Ela disfarça a "concorrência"
dizendo que amanhã (hoje) tem que
pegar cedo em outro trabalho: é
trocadora de ônibus da linha 233
(Rodoviária-Barra).
Enquanto
a filha dança, Alicia lembra com
saudades Nélson Gonçalves
e Jamelão.
-Tinha
uma menina aqui, a Muda, que era
fora de série. Era muda e surda
mesmo, mas muito procurada. Não
ouvia nada, não falava nada, mas
dançava como ninguém. Onde
andará? Será que ela vem
para o nosso "bota-fora?"
- Alicia, pára de falar na Muda.
A Maria Margarida está lá
fora. Não deixaram ela entrar na
última noite. E agora, como é
que ela vai pagar o empréstimo
que fez na casa? (Maria Margarida, ou
Nina, fez um empréstimo
na semana passada para pagar o sepultamento
da mãe). Ontem, não picotou
cartão. Nem entrou.(Na calçada
da Avenida Rio Branco, Nina chora).
Kátia
pega o microfone de Ed e "ataca"
de Ângela Maria. Antes grita para
a pista - Essa é para vocês...
Obrigada pelo ofício...".
"...A
bailar em pleno vício, como lírio
em lamaçal...".
-Tinha
a Ciganinha, tinha a Diana, tinha
a Rosana. Hoje já não se
fabrica táxi-girls como
antes - lamenta Broxado, um dos garçons.
E, para reforçar o que diz, conta
que antigamente elas vestiam peles e usavam
jóias: "hoje elas vêm
aqui até de bermudas para trocar
de roupa. Uma vergonha".
Ivone
preocupa-se com o relógio. Está
chegando a hora. O patrão diz que
vai até às cinco mas ela
não acredita. Pergunta a toda hora
pelo Oficial de Justiça que não
chega.
É
sim. Nós fomos falar com o Juiz
da Justiça do Trabalho (ela não
sabe o nome) e ele garantiu que mandaria
aqui um Oficial de Justiça para
ver a nossa situação.
-
Vem nada. Ninguém quer nada com
a gente.
-
Vem sim. A Kátia falou lá
de "ofício" e eu me lembrei
do Oficial... Só isso.
"Quem
descerrar a cortina da vida da bailarina...
Há de ver cheio de horror...".
Jesus,
ex-dono, espanhol de Madri, não
apareceu na última noite. Ele vendeu
a casa a um grupo de onze pessoas que
pretende transformar o dancing
em gafieira grã-fina: Jesus nunca
foi tão xingado no Brasil como
na madrugada de ontem.
-
A culpa é do Jesus, a culpa é
do Jesus. Ele tinha que nos avisar antes
de vender. Nem quero vê-lo na minha
frente. Esses onze donos aí não
resolverão nada.
Lúcia,
professora de dança, culpa Jesus:
"Comprou hotéis e outros bichos
com o dinheiro que ganhou na venda do
dancing".
"E
nós aqui, não é?"
Ele nem merecia se chamar Jesus, disse
Miriam, inconformada.
Miriam,
Mara, Marilene, Yolanda, Íris,
Penha, Márcia, Sueli, Risoleta,
Glorinha, Tânia, Dulcinéia,
Leila (ela rodopia como nunca), Telma,
Alicia e sua filha Alexandra estão
na pista. Fazem círculo para ver
Dalva com seu par de 70 anos. Aplaudem.
Kátia engasga ao microfone e também
bate palmas.
-
Essas paredes, esse foco de luz, esse
chão, essas mesas, essa pista,
essa música...Não dá
vontade de chorar? - Glorinha não
tira os olhos do relógio. Três
e quinze. Acaba às quatro ou às
cinco?
-
Sei lá. A verdade é que
vai acabar. A culpa é do Jesus.
O Jesus é o único culpado
por isso tudo.
A
medida em que os minutos passam, elas
começam a ficar tensas. Já
se ouve, longe, uma discussão entre
elas. Kátia continua inabalável:
"... fingindo sempre que gosta
de ficar na noite exposta..."
Lúcia pergunta pelo Oficial de
Justiça que não chega ("não
chega nunca, nunquinha!"), Ed toma
o microfone de Kátia: "Ah,
minha amada me perdoa... pois embora ainda
lhe doa a tristeza que eu causei..."
Quinze para as quatro da manhã.
Mariazinha tem um estalo,
uma idéia genial:
-
Sabe de uma coisa? Dancei a noite inteira
com o meu amigo. Não vou picotar
coisa nenhuma. O novo dono não
disse que nós somos freguesas?
Ele que se dane!
"A
vingança é a herança
maior que meu pai me deixou..."
(É Kátia outra vez). É
aí que acontece: por causa de um
tal de Zé, Silvinha resolve dar
uma cadeirada na Pretinha. A cadeira
voa e vai parar na pista de dança.
A garrafa de cerveja vai logo depois.
Puxa daqui, puxa dali, cada uma vai para
um lado e o Zé some.
- Picota essa droga logo, Antônio.
É o último. O freguês
quer ir embora.
-
Não vai ficar para a valsa?
-
Que valsa?
-
Da despedida.
-
Vai ter isso, é?
A
valsa começa a tocar. A pista fica
repleta. Bailarina sem par dança
com bailarina. As luzes se acendem. Há
lágrimas em alguns rostos. Lilá
rodopia, rodopia. E chora.
-
De agora até às cinco a
bebida é de graça -anuncia
o novo dono.
Denise
insiste. Todos gritam: Tira, tira! Num
canto Silvinha e Pretinha
se reconciliam. Parecem chorar.
Às
cinco horas em ponto, sobem pela última
vez as escadas que dão para a Avenida
Rio Branco.
Em
40 anos as regras não mudaram
Nas
duas primeiras décadas do século
brilhavam no Rio os cabarés, copiados
de modelos parisienses. Destacava-se o
Assirius, onde se apresentavam
Pixinguinha e os Oito Batutas.
No
começo da década de 30 apareceram
no Rio outras modalidades de danças
noturnas, como as escolas de danças
onde, efetivamente, se aprendia a bailar
em salão (famosíssima era
a do Breno Machado, no alto do
atual Cinema Palácio). A outra
modalidade foi o dancing,
presumivelmente introduzido no Brasil
por um espanhol ou argentino (ele se recusava
a falar sobre as suas origens) de nome
Antônio, que na época fundou
na Praça Tiradentes o Samba
Dança, primeira casa de taxi-girls
que a cidade conheceu.
"Seu"
Antonio vinha de Buenos Aires, de onde
deve ter trazido o sistema que estabeleceu
a primeira e definitiva distinção
entre cabaré e dancing:
o cartão a ser perfurado pelo cliente
a cada rodada de dança. A cada
furo correspondia uma quantia em dinheiro.
Parte para a casa, parte para a táxi-girl.
Outra diferença é que nos
cabarés as damas eram livres para
aceitar ou recusar cavalheiros. Se aceitavam
participar de uma mesa como "convidadas",
tinham como obrigação e
função principal - pelo
menos dentro do cabaré - aumentar
o consumo de bebida. Em particular do
champanha, que rolava farta naquelas épocas
românticas. Convidada, a dama era
exclusividade do cavalheiro ou da mesa
pela noite toda.
No
dancing, as girls eram damas
que tinham que dançar com qualquer
um, e era-lhes vedado sentar-se às
mesas sozinhas ou com fregueses. Essa
característica foi mantida até
o fim.
As
girls também não
podiam recusar qualquer cavalheiro. O
ambiente era, porém, discreto:
luz branda, lusco-fusco. Não se
permitiam libertinagens entre os freqüentadores
nem entre cliente e taxi-girls.
E havia mulheres tão requisitadas
para dançar que trabalhavam com
mais de um cartão (no fim da sua
existência os dancings, às
vezes, não tinham clientes para
perfurar sequer meio cartão). Usar
traje esporte era mais do que sacrilégio:
classificava-se como desrespeito. Traje
obrigatório para homens: passeio
completo. As mulheres, sempre a rigor.
Como até o fim, gastando cetins,
brilhos, enfeites de cabelos.
Outro
dado novo introduzido pelo dancing
na vida carioca: não convocavam
cantores conhecidos para se apresentar.
Os cantores chegavam às salas como
componentes de orquestras - crooners
- e daí partiam para o profissionalismo,
para o disco, quando o talento ou sorte
ajudava. Assim começou a carreira
de Jamelão, no Brasil Danças.
Havia
quem fosse ao Brasil Danças
para ouvir os cantores; outros, para ouvir
músicos como Pixinguinha, João
da Baiana, Benedito Lacerda, Vidraça,
que lá trabalhavam com regularidade.
Boemia que começava no Café
Nice, passava pela Galeria Cruzeiro (atual
Edifício Avenida Central) e aí
expandia-se. De terno e gravata, no Brasil
Danças.
Esta
é uma reportagem inteligente e criativa
(embora boa parte seja invencionice, nada
se percebe que fira ou agrida o bom senso
e os leitores). Luiz Carlos Sarmento era
cuidadoso neste sentido. Tanto assim que,
pouco antes de morrer, pobre, de infarto
agudo do miocárdio em um leito de
enfermaria do Hospital Municipal Souza Aguiar
[ele, um descendente da antiga nobreza,
com direito a diploma e tudo o mais], "elaborou
algumas notas sobre o Jornalismo
que, acreditava, seriam úteis aos
futuros profissionais de Imprensa".
O
texto [inédito] vale por sua atualidade.
Luiz Carlos Sarmento (exatamente como no
original que me foi entregue pela viúva
deste grande jornalista, Aleina Sarmento):
O
Jornalismo está muito diferente.
Hoje, o Chefe de Reportagem é mais
um burocrata: cobra matérias, assina
ordens de serviço e não
tem o entrosamento de antigamente. O diálogo
é muito importante entre o editor
e o repórter. Antes, o Chefe de
Reportagem era muitas vezes pauteiro -
já que pauteiro mesmo nem existia.
A
pauta é a alma da reportagem. Hoje
em dia confundem pauta com agenda: o Ministro
da Saúde inaugura um hospital no
Rio de Janeiro. Isso é agenda.
Pauta é a criação
de um fato que não existe na agenda.
O Jornalismo está sentindo falta
de bons pauteiros. Quando fui pauteiro
de alguns jornais, da TV Educativa,
também, minha pauta tinha mais
de três laudas, tudo bem mastigado.
Antigamente
existiam grandes Chefes de Reportagem
nos jornais e revistas: Luiz Paulistano,
do Diário Carioca; Alves
Pinheiro, do Globo; Arnaldo Niskier,
da Manchete e Fatos e Fotos;
Calazans Fernandes, do Jornal do Brasil.
Não mandavam os repórteres
logo para a rua. Tinham diálogos
com eles.
Para
mim o repórter de revista tem que
passar pelo jornal. Jornal é a
base de tudo na profissão. Não
acredito em repórter que não
tenha passado por ele e entra direto numa
revista. Assim como não creio no
repórter que ingressa no jornal
sem ter tido um ano, não apenas
na "cozinha" da Redação,
mas na Seção de Polícia.
A
Seção de Polícia
dá o background para todas
as editorias. Por exemplo, quando você
vai cobrir um crime tem que "roubar"
a agenda de endereços da vítima
ou então o álbum de fotografias...
antes da Polícia".
O
repórter de Polícia tira
de letra uma conversa com o Ministro da
Fazenda e faz qualquer entrevista. Mas
o repórter de Economia é
quase sempre incapaz de fazer uma boa
reportagem de Polícia.
Repórter
de televisão tem, igualmente, que
passar pelo jornal. O repórter
de televisão que vai para o jornal
muitas vezes fracassa. O fato de o jornalista
ter medo não lhe faz nenhum mal.
Afinal, é muito difícil
enfrentar esse monstro que é
a notícia. Para o verdadeiro repórter,
a notícia tem cheiro. O repórter
cheira o fato. Ele checa a veracidade.
Começa a fazer o levantamento.
Em revista, por exemplo, é estruturada
uma "auto-pauta" sobre o assunto.
Posteriormente ele desenvolve o texto.
Noto,
atualmente, dois vícios:
1)
o gravador, o inimigo público número
1 do repórter, e,
2)
pesquisa. Tenho lido em jornais e revistas
reportagens especiais contendo parágrafos
inteiros meus.
Lugar
de repórter é no asfalto.
O repórter já nasce feito.
Quanto às escolas, são importantes
no sentido de darem respaldo e cultura
ao futuro repórter. Parece absurdo,
mas às vezes penso que quanto mais
o repórter desconhece o assunto
que vai cobrir, melhor sai a reportagem.
Não acredito nos especialistas.
Um repórter sem muita expressão
pode elaborar fazer uma grande reportagem.
Ao
contrário do expert no assunto
que mostra sempre o trivial. Quando um
repórter não entende nada
de energia nuclear, pode fazer as piores
e mais bobas perguntas a um físico
famoso, mas, na verdade, perguntará
exatamente o que os leitores querem saber.
O especialista no assunto começa
a discutir com o entrevistado, querendo
saber mais do que ele, e não informa
nada praticamente.
O
repórter - mesmo sendo de revista
e dispondo de prazo mais dilatado - tem
que escrever a matéria ainda com
a cabeça quente. Se passar muito
tempo esfria a cabeça, esfriam
as anotações, esfria a alma.
Fazer notícia é como um
ato de amor: é preciso transmitir
o fato com muito calor e alma.
Quanto
menos o repórter anotar numa entrevista,
melhor será a sua relação
com o entrevistado, pois este se sentirá
à vontade. Anotações,
sim, de cifras, nomes, datas... Em geral,
o entrevistado tem horror a gravador.
Ele não diz tudo aquilo que gostaríamos
de ouvir.
As
características principais do bom
repórter, no meu entendimento,
são:
1.
talento;
2.
humildade (a convicção de
que cada vez que volta à Redação
é como se fosse a primeira) e,
3.
artesanato, ou seja, a forma de modelar
a matéria.
As
fontes devem ser preservadas. O repórter
é um vendedor do jornal. Mesmo
contrariando as suas idéias políticas.
Quando ele vai trabalhar numa empresa,
passa a ser esta empresa.
Com
o desenvolvimento da tecnologia, o copydesk
tende a desaparecer. O repórter
precisará ter, obrigatoriamente,
texto final.
A
TV não mata o jornal, nem a revista.
Por exemplo: todo mundo viu o homem ir
à Lua. Pergunte o dia e a hora.
Você sabe? Logo, recorre-se ao jornal
ou revista. São verdadeiros
documentos da História. A TV
e o rádio são os aperitivos.
A pessoa vê a matéria na
televisão mas, na manhã
seguinte, compra o jornal ou a revista.
Não
admito terem dependurado a velha máquina
de escrever. A minha máquina tem
o formato dos meus dedos. Tem alma.
Conto
nos dedos, e não chega a cinco,
aqueles que eu considero os grandes repórteres
de hoje. Não adianta. O bom repórter
já nasce feito.
Notas
[1]
As notícias deviam ser elaboradas
- ainda hoje é esta a diretriz em
alguns diários de menor expressão
- respeitando-se o máximo de cinqüenta,
sessenta linhas, não importando a
natureza do assunto ou sua relevância.
Esta concepção objetivava
assegurar espaço para novas inserções
publicitárias e, de outra parte,
mostrar aos leitores que o jornal não
tinha sido furado pelas demais corporações
noticiosas. A partir daí, no geral,
as reportagens deveriam ser desdobradas
em coordenadas.
[2]
Durante o período em que trabalhei
em O Dia (1983-1988) poucos repórteres
tinham autonomia para escrever seus textos
(ver também, do Autor destas linhas,
"Ricardo Galeno, um poeta no cotidiano
de chumbo", Juiz de Fora, Revista Lumina,
1999, Vol. 2, nº 2, p. 41-57). A quase
totalidade ditava para os redatores o que
tinha conseguido apurar. Como aquele jornal
fechava mais cedo que os concorrentes, o
tempo que seria normalmente gasto pelo repórter,
somado à passagem obrigatória
pelos redatores, era minimizado por intermédio
desse artifício.
[3]
Refiro-me a Luiz Carlos Sarmento: Crônicas
de uma Cidade Maravilhosa (Cf. COLLARES,
Gabriel. Rio de Janeiro, 1995. 295 p. [inédito]).
Trata-se de um volume contendo razoável
quantitativo da produção daquele
extraordinário repórter com
quem tive o privilégio de trabalhar
anos a fio e, também, de ser amigo.
*José
Amaral Argolo é professor adjunto
da Escola de Comunicação da
UFRJ, pós-graduado em Jornalismo
e em Ciência Política, mestre
em Filosofia, moutor em Comunicação
e Cultura e pós-doutor em Jornalismo
pelo Departamento de Jornalismo e Editoração
da Escola de Comunicação e
Artes da Universidade de São Paulo.
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