Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


ENSAIOS
   

O hipotético-possível antes do (com)provável

Por José Amaral Argolo*

Uma tarde, em prantos, apareceu na Delegacia de Copacabana (Rua Hilário de Gouveia, Posto 2) a empregada doméstica Juventina Rosa de Paula, 45 anos, vestida de noiva com véu e grinalda. Sua história era comovente.

Cozinheira de forno e fogão, tratando bem as madames para as quais trabalhava, guardava suas economias e assim foi durante vinte e três anos, até que alguém bateu à sua porta.

Era o leiteiro. Insinuante, boa pinta, Manoel Vieira da Silva, cearense de 25 anos, arrancou o primeiro suspiro de Juventina. Ganhou um alô. A doméstica ficou empolgada e passou a agradar o leiteiro, dando-lhe presentes e até mesmo pequenas importâncias em dinheiro. O cearense, mais do que sabido, convenceu Juventina a retirar suas economias da Caixa Econômica.

O dinheiro, disse, serviria para o casório. A mulher retirou os Cr$ 15 mil.

Manoel, vigarista de alto gabarito, marcou o casamento no civil.

Aproveitando a boa-fé da doméstica, realizou o falso matrimônio no Bar Bucarest, em Copacabana, contando com a conivência de seus amigos Gilberto Mendes Vinagre, o suposto Juiz de Paz, e do "escrivão" Romeu Marques Chianelli. A farsa surtiu efeito. Com uma Bíblia os vigaristas sacramentaram o casório. Juventina pagou ainda uma nota alta em comestíveis e bebidas. Dias depois seria realizado o ato religioso. Somente Juventina apareceu de véu e grinalda na Igreja da Praça Serzedelo Corrêa.

Transeuntes riram da sua ingenuidade. Juventina, coitada, nunca mais casou.

José Monteiro, Casos de Polícia, p. 59.

A verdade jornalística, diferentemente de um dogma político-partidário ou de fundamentação religiosa pode ser resumida como um conceito elástico, provisório. Com efeito, toda e qualquer reportagem pode vir a ser total ou parcialmente modificada na edição seguinte, sem que - sobre as páginas dos diários - ou dos blocos do noticiário televisivo/radiofônico - recaia o engessamento típico dos compêndios e enciclopédias, somente atualizáveis [a um custo elevadíssimo] na reedição.

Esta verdade jornalística, porém, será tanto mais confiável e, digamos, preservada enquanto não for questionada. Algumas notícias permanecem, à semelhança das impressões palmares deixadas na Calçada da Fama em Hollywood, como marcas indeléveis de uma personagem fabulosa do cinema ou do jet set internacional.

Por exemplo, são verdades assim consideradas as manchetes e fotos sobre a chegada do homem à Lua; o nascimento de Louise Brown [primeiro bebê de proveta]; as seqüências documentando o instante da prisão de um ditador ou delinqüente classificado como Inimigo Público Número 1; as imagens da ovelha Dolly [o primeiro clone]; as reproduções autenticadas de documentos comprometedores, principalmente quando envolvendo personalidades da vida pública etc.

Durante décadas as reportagens e/ou entrevistas publicadas e/ou tele/radio-difundidas foram rejeitadas no âmbito das Universidades, sob a alegação de que tais informações careciam de credibilidade e de algum rigor metodológico desde a gênese. Dizia-se que um texto capaz de ser reduzido do status manchete a uma nota de pé de página no curto intervalo de vinte e quatro horas não poderia ser considerado documento científico.

A argumentação por parte dos adeptos desse conceito foi lenta gradualmente derrubada na medida em que, por sua própria dinâmica, a Imprensa Brasileira contribuiu para que, isoladamente ou em conjunto, historiadores, cientistas políticos, sociólogos e jornalistas modificassem com seus escritos e/ou comentários gravados parte do intrincado quebra-cabeças da História deste País.

Não sem razão, nos últimos vinte e cinco/trinta anos, foram e têm sido notáveis e indispensáveis as contribuições dos jornalistas para esse reconstituir / redescobrir / repensar de maneira objetiva, correta e bem documentada a nossa História política, econômica e social. Cito alguns desses autores e seus trabalhos:

Domingos Meirelles (As noites das grandes fogueiras; Os órfãos da Revolução); Elio Gaspari (A Ditadura Escancarada; A Ditadura Envergonhada; A Ditadura Derrotada); Jacob Gorender (Combate nas Trevas); Carlos Chagas (A Guerra das Estrelas; O Brasil sem retoque [2 volumes]; Dênis de Moraes (A Esquerda e o Golpe de 64; Prestes, Lutas e Autocríticas); Carlos Castelo Branco (Introdução à Revolução de 1964 [2 volumes]) o próprio Autor destas linhas (A Direita Explosiva no Brasil; Dos Quartéis à Espionagem: Caminhos e Desvios do Poder Militar).

A chamada Seção Policial foi muito provavelmente a primeira a sofrer o impacto dessas modificações gráficas e editoriais. Abriu-se o último furo possível no cinturão e os comentários longos e livres, as teses engendradas pelos remanescentes da antiga Universidade das Ruas (isto é aqueles que não passaram pelos bancos das instituições de ensino superior), cederam lugar aos textos mais enxutos e a um pragmatismo reducionista que, por caminhos paralelos, resultou numa espécie de denuncismo irresponsável além de um infindável quantitativo tanto de ações reparatórias e interpelações judiciais.

Entre as tantas marcas identificadoras desse modelo jornalístico na esfera policial (que se estendeu até meados dos anos oitenta, enquanto o conceito de compact newspaper [1] manteve força na Imprensa Brasileira, notadamente no eixo Rio de Janeiro-São Paulo), destaca-se uma criatividade para muito além da realidade dos fatos descritos nos diários.

Para a maioria dos atuais leitores: estressados, apressados e cada vez menos informados, a descrição física de uma personagem do submundo ou cena de crime constitui detalhe dispensável (não importando a sua extensão ou ressonância).

Para esses leitores o que importa saber é que a notícia, por menor que seja, está ali na página.

Uma reportagem extensa e enfeixando, se possível, todos os desdobramentos não mais encontrará tantos receptores com tempo disponível vontade para refletir sobre o conteúdo ampliado. Internamente, por sua vez, os fechadores de páginas trabalham atualmente com espaço precário. O que se percebe na maioria dos diários de grande circulação é, de fato, uma inversão jornalística.

Pressionados por dívidas decorrentes da aquisição e importação de mega-unidades impressoras, além, muito além das necessidades industriais, boa parcela do espaço gráfico vem sendo ocupado por propaganda institucional, isto é, da própria corporação, prática esta não muito freqüente na primeira metade do século XX

Peço licença para recordar quatro episódios que, por sua natureza, são interessantes. Cada qual apresentando aspectos diferenciados tanto no quesito apuração como em relação às conseqüências.

A primeira delas resgato da época em que trabalhava no Globo como repórter credenciado junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, durante o segundo governo de Antonio de Pádua Chagas Freitas.

Certa noite, após uma dura jornada de trabalho, fui surpreendido com a informação segundo a qual o Secretário daquela Pasta, general Edmundo Adolpho Murgel, após conversa reservada com o governador do Estado, pretendia promover uma devassa na Polícia, para reduzir as estatísticas de violência e de corrupção.

Os diretores de Departamentos, chefes de gabinete, coordenadores adjuntos etc já estavam em suas residências. Daí, as limitadas informações de que eu dispunha foram transformados em uma única nota de dois ou três parágrafos.

Na redação do Globo o editor-chefe, Milton Coelho da Graça (um dos mais completos jornalistas que conheci), decidiu transformar aquela nota em manchete do jornal. Cobrou-me, então, a elaboração de um texto capaz de preencher uma página (dezesseis laudas aproximadamente [480 linhas] descontado o título-forte, legendas, entretítulos, fotos de arquivo etc.

Salvaram-me do pior (isto é, da bronca) o caderno de telefones com os números dos restaurantes freqüentados pelos integrantes da cúpula da SSP, das residências e outros números confidenciais) e a amizade com algumas pessoas ligadas ao Gabinete do Governador, que acrescentaram subsídios àquela decisão estratégica.

O segundo episódio aconteceu passados alguns anos quando eu trabalhava em O Dia (na época o jornal mais vendido nas bancas do no Rio de Janeiro).

José Côrtes, Zé Grande, experiente repórter de Polícia (hoje aposentado) fora designado para cobrir jornalisticamente um homicídio na Zona Norte (nesta época O Dia dispunha da maior frota de carros de reportagem entre todos os diários do Rio de Janeiro, além de uma equipe especializada). A recomendação do Secretário de Redação (Antomary Ruy de Santacruz Lima) era no sentido de - em se tratando de assassinato e sem que se tivesse maiores informações a respeito - correr no escuro.

Zé Grande foi de carro até o local do crime, sabendo previamente que, devido ao adiantado da hora, não teria como retornar à base, redigir ou mesmo ditar os dados para o primeiro redator disponível. [2] Assim que ele conseguiu apurar algumas informações repassou os dados por intermédio do rádio transmissor-receptor do carro de reportagem ao redator (salvo lapso de memória essas informações foram colhidas por Moysés Meohas, excelente jornalista e companheiro de lutas, hoje aposentado).

No entanto aconteceu um imprevisto. Devido ao reduzido impacto do noticiário daquele dia e sem dispor de melhores alternativas nas demais editorias, Ruy Santa Cruz decidiu transformar aquele episódio corriqueiro na manchete do jornal. E determinou que o redator ampliasse o texto resultante daquela primeira apuração para seis laudas (180 linhas).

Zé Grande já estava regressando à Redação, na Rua Riachuelo (Centro), quando o carro da reportagem ficou preso num engarrafamento. Então, de volta à pequena sala onde ficava o rádio, o Chefe de Reportagem do turno da tarde. Manuel Abrantes (já falecido) enviou novo apelo, mais ou menos nos seguintes termos: ", você precisa acrescentar informações porque, com os dados que você já passou, o Moysés somente conseguiu escrever uma lauda e meia e o Ruy quer 180 linhas no mínimo para fechar a página".

A solução: o repórter pediu um pouco mais de tempo para agir e, logo depois, aproveitando-se da experiência na cobertura de fatos parecidos, transmitiu o restante.

O terceiro episódio... Bem, essa é uma história cujos personagens e jornal preservo face às implicações processuais. Dizia-se que durante uma madrugada de temporal, daqueles em que não se enxerga um palmo diante do nariz, certo repórter de plantão recebeu ligação telefônica informando sobre um "encontro de cadáver" junto ao leito da via férrea próximo a uma estação na Baixada Fluminense.

Aquele mesmo repórter foi mobilizado para o local e ao chegar, debaixo do aguaceiro, constatou que o corpo não tinha ferimentos. A equipe ficou quase uma hora aguardando a chegada da guarnição de uma radiopatrulha e a Perícia... e nada!!!

A solução foi seguir de carro até a Delegacia da área e indagar o motivo de tanta demora.

Surpreso com a inesperada visita da equipe de reportagem, o inspetor de plantão perguntou:

- O quê vocês vieram fazer aqui, debaixo desse aguaceiro?

- Aguardávamos a chegada da Perícia no local assim-assim, mas até agora ninguém apareceu...

- Mas... vocês ficaram doidos? Até o momento não recebemos qualquer notificação sobre esse fato. Pode ter sido vítima de mal súbito e a Perícia sequer foi acionada...

- De todo modo nós temos que retornar ao local e esperar.

A partir desse ponto conta-se que, uma hora depois, a mesma equipe voltou à Delegacia e informou ao inspetor que, observando melhor, o cadáver apresentava uma perfuração na altura do peito.

Contam alguns que a equipe voltou realmente àquele trecho ermo da via férrea e, aproveitando-se da escuridão e do temporal, o repórter teria cravado a ponta do guarda-chuva no cadáver para dar a impressão de que acontecera um homicídio e, com isto, assegurar a mobilização dos peritos.

Outros acrescentam que, no transcorrer das investigações, houve um desentendimento entre os peritos do Instituto de Criminalística e os médicos legistas. Os primeiros argumentando que o corpo encontrado fora vítima de ação inesperada e violenta e os demais afirmando que aquela morte decorrera de um infarto agudo do miocárdio.

Houve prática de crime? À luz do Direito, sim. Crime de vilipêndio a cadáver [praticado pelo repórter], tipificado no artigo 212 do Código Penal. Foi claramente ferido o sentimento de respeito pelos mortos, cujo sujeito passivo é a coletividade, conforme acentua Celso Delmanto (In: Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 267-268).

Celso Delmanto cita, ainda, dois outros eminentes criminalistas: Heleno Fragoso e Magalhães Noronha, para quem:

(...) essa conduta deve ser praticada perante, sobre ou junto do cadáver ou suas cinzas. Há dolo específico bem como o elemento subjetivo consistente no propósito de aviltar, ultrajar. Não existe modalidade culposa para esse delito e a pena prevista na lei é de detenção de um a três anos, além de multa pecuniária.

Jornalisticamente, porém, e na ausência de pessoas que pudessem testemunhar e denunciar, esse fato passou impune e foi registrado como qualquer outro naquele diário.

O quarto e último exemplo (este não associado às páginas da Seção Policial) foi elaborado a partir da memória acumulada somada ao imaginário fértil de Luiz Carlos Sarmento, um dos mais representativos e ecléticos jornalistas da sua geração. Ele redigiu uma criativa reportagem sobre A Morte do Brasil Danças, na Cinelândia (Centro do Rio de Janeiro). Todo o texto, publicado na edição do Globo de 26 de agosto de 1979, [3] foi redigido sem que ele tivesse estado no local durante todo o tempo descrito.

Bem... pelo menos naquela noite.

Milton Coelho da Graça, durante seminário do qual participei como expositor, na Associação Brasileira de Imprensa, ficou surpreso ao saber que, em um livro de minha autoria [ainda inédito] e de Gabriel Collares Barbosa (Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ e professor do quadro permanente mesma instituição de ensino) eu incluí, nos Anexos, a íntegra daquela reportagem intitulada A morte do Brasil Danças: Na noite do adeus, Valsa de despedida e a última briga.

Milton Coelho era editor-chefe do Globo e, de hábito, pré-pautava - ele próprio e independentemente dos projetos dos demais editores -, alguns repórteres mais audaciosos e com jogo-de-cintura, para cobrir este ou aquele assunto que julgava essencial ou pitoresco. Eu mesmo, por quatro ou cinco vezes, tive o privilégio de ser escolhido.

Sarmento, no entanto, rompeu todos os parâmetros, ao entregar os originais ao editor na Redação antes mesmo que o baile tivesse terminado.

Na dúvida (e conhecendo algumas das travessuras de Sarmento) Milton Coelho da Graça decidiu publicar o texto.

O que, com sua licença, leitor, também transcrevo agora, na íntegra:

A Morte do Brasil Danças: na Noite do Adeus, Valsa de Despedida e a Última Briga

Luiz Carlos Sarmento

Ainda faltam 20 minutos para a Valsa da Despedida e, ao microfone, a lady crooner Kátia dá o melhor de si na interpretação de Vingança (Lupicínio Rodrigues). É a última noite. De repente, uma cadeira é arremessada e cai na pista de dança. A cadeira é seguida por uma garrafa de cerveja, que se espatifa na pista. É a última briga, na última noite do Brasil Danças. Para os freqüentadores habituais não é novidade: são Pretinha e Silvinha que outra vez se desentendem, quando falta muito pouco para o dancing encerrar suas atividades.

Para quem se acostumou a dançar com as táxi-girls, começa "um imenso vazio"; para mais de cem bailarinas, o desemprego. Elas dizem que vão recorrer à Justiça e já contrataram até advogado, mas está difícil provar há quanto tempo têm a sua remuneração controlada por cartões perfurados. Lilá, a mais antiga, 27 anos de pista, diz que não sabe como conseguirá dormir à noite.

"...Com um sorriso na boca".

O último freguês já tinha saído. Lilá dança sozinha, no meio da pista. Nas mãos, o cartão cor-de-rosa perfurado. Ela canta trechos da música que viu Chocolate compor para Ângela Maria, numa das mesas do dancing: "...E uma lágrima no olhar".

- Pois é. Uma lágrima no olhar, pés inchados, corpo quente de abraços, mãos vazias.

Lilá rodopia, rodopia. Tal como às 22 horas de sexta-feira, quando entrou pela última vez como bailarina do dancing. Um freguês se ofereceu para furar os 300 minutos do seu cartão para que ela saia logo de lá, mas ela não quer. Espera até o fim. Vê Maria Margarida, a colega, ser barrada na porta porque dera entrevista contra a demissão em massa das bailarinas.

Tininha chorar nos ombros do "picoteiro" Antônio, entregando pela última vez seu cartão picotado. Vê as 63 mesas repletas de gente e garrafas. Vê a lágrima no olhar de Nora, que não sabe agora como irá sustentar os dois filhos.

- Depois da valsa a bebida é de graça. É hoje só. Amanhã não tem mais.

Aos berros, o garçom interrompe o rodopio de Lilá, que continua cantando: "...É uma sereia vadia, vivendo da noite de orgia o seu drama passional..."

Denise, ex-bailarina, ameaça um strip-tease.

- Bem que eu disse que ela não podia entrar. Quem deixou ela entrar? Vai estragar a festa. Já pensou o vexame, na hora da valsa? Por que não colocam ela para fora? Essa mulher já "aprontou" muito aqui dentro, será que vai estragar a última noite?

Como Denise, cerca de 200 pessoas querem viver os últimos momentos do Brasil Danças. Algumas comportadas, fáceis de serem identificadas pelas calças compridas (as bailarinas profissionais só usam longos, para serem distinguidas pelo "picotador" e fiscais) e pelos passos desajeitados que dão na pista. Ou pelos olhares maldosos que dão nas bailarinas demitidas. Como o olhar de Denise, ex-bailarina do Brasil Danças, expulsa há dois meses por infringir com falta grave o regulamento que "exige respeito". Com um sorriso na boca, ela insiste em seu strip-tease.

"...Sem escolher seu par".

A primeira música cantada na última noite do Brasil Danças pelo crooner Ed Santos, o Edinho ("não sei não, mas acho que também dancei junto com as bailarinas e não sei para onde vou"), é Gosto de Maçã. Logo que ele começa a cantar, Tânia, 18 anos de dancing, é chamada para dançar pelo comerciante português José Abrantes, 67 anos, vinte de Brasil. Ele faz questão de formar "o primeiro par da noite". Alicia, 18 anos de casa, vê com satisfação o moço louro que acaba de tirar sua filha, Alexandra, também bailarina ("parece ser um moço de respeito"). Ela disfarça a "concorrência" dizendo que amanhã (hoje) tem que pegar cedo em outro trabalho: é trocadora de ônibus da linha 233 (Rodoviária-Barra).

Enquanto a filha dança, Alicia lembra com saudades Nélson Gonçalves e Jamelão.

-Tinha uma menina aqui, a Muda, que era fora de série. Era muda e surda mesmo, mas muito procurada. Não ouvia nada, não falava nada, mas dançava como ninguém. Onde andará? Será que ela vem para o nosso "bota-fora?"

- Alicia, pára de falar na Muda. A Maria Margarida está lá fora. Não deixaram ela entrar na última noite. E agora, como é que ela vai pagar o empréstimo que fez na casa? (Maria Margarida, ou Nina, fez um empréstimo na semana passada para pagar o sepultamento da mãe). Ontem, não picotou cartão. Nem entrou.(Na calçada da Avenida Rio Branco, Nina chora).

Kátia pega o microfone de Ed e "ataca" de Ângela Maria. Antes grita para a pista - Essa é para vocês... Obrigada pelo ofício...".

"...A bailar em pleno vício, como lírio em lamaçal...".

-Tinha a Ciganinha, tinha a Diana, tinha a Rosana. Hoje já não se fabrica táxi-girls como antes - lamenta Broxado, um dos garçons. E, para reforçar o que diz, conta que antigamente elas vestiam peles e usavam jóias: "hoje elas vêm aqui até de bermudas para trocar de roupa. Uma vergonha".

Ivone preocupa-se com o relógio. Está chegando a hora. O patrão diz que vai até às cinco mas ela não acredita. Pergunta a toda hora pelo Oficial de Justiça que não chega.

É sim. Nós fomos falar com o Juiz da Justiça do Trabalho (ela não sabe o nome) e ele garantiu que mandaria aqui um Oficial de Justiça para ver a nossa situação.

- Vem nada. Ninguém quer nada com a gente.

- Vem sim. A Kátia falou lá de "ofício" e eu me lembrei do Oficial... Só isso.

"Quem descerrar a cortina da vida da bailarina... Há de ver cheio de horror...".

Jesus, ex-dono, espanhol de Madri, não apareceu na última noite. Ele vendeu a casa a um grupo de onze pessoas que pretende transformar o dancing em gafieira grã-fina: Jesus nunca foi tão xingado no Brasil como na madrugada de ontem.

- A culpa é do Jesus, a culpa é do Jesus. Ele tinha que nos avisar antes de vender. Nem quero vê-lo na minha frente. Esses onze donos aí não resolverão nada.

Lúcia, professora de dança, culpa Jesus: "Comprou hotéis e outros bichos com o dinheiro que ganhou na venda do dancing".

"E nós aqui, não é?" Ele nem merecia se chamar Jesus, disse Miriam, inconformada.

Miriam, Mara, Marilene, Yolanda, Íris, Penha, Márcia, Sueli, Risoleta, Glorinha, Tânia, Dulcinéia, Leila (ela rodopia como nunca), Telma, Alicia e sua filha Alexandra estão na pista. Fazem círculo para ver Dalva com seu par de 70 anos. Aplaudem. Kátia engasga ao microfone e também bate palmas.

- Essas paredes, esse foco de luz, esse chão, essas mesas, essa pista, essa música...Não dá vontade de chorar? - Glorinha não tira os olhos do relógio. Três e quinze. Acaba às quatro ou às cinco?

- Sei lá. A verdade é que vai acabar. A culpa é do Jesus. O Jesus é o único culpado por isso tudo.

A medida em que os minutos passam, elas começam a ficar tensas. Já se ouve, longe, uma discussão entre elas. Kátia continua inabalável: "... fingindo sempre que gosta de ficar na noite exposta..." Lúcia pergunta pelo Oficial de Justiça que não chega ("não chega nunca, nunquinha!"), Ed toma o microfone de Kátia: "Ah, minha amada me perdoa... pois embora ainda lhe doa a tristeza que eu causei..." Quinze para as quatro da manhã. Mariazinha tem um estalo, uma idéia genial:

- Sabe de uma coisa? Dancei a noite inteira com o meu amigo. Não vou picotar coisa nenhuma. O novo dono não disse que nós somos freguesas? Ele que se dane!

"A vingança é a herança maior que meu pai me deixou..." (É Kátia outra vez). É aí que acontece: por causa de um tal de Zé, Silvinha resolve dar uma cadeirada na Pretinha. A cadeira voa e vai parar na pista de dança. A garrafa de cerveja vai logo depois. Puxa daqui, puxa dali, cada uma vai para um lado e o Zé some.

- Picota essa droga logo, Antônio. É o último. O freguês quer ir embora.

- Não vai ficar para a valsa?

- Que valsa?

- Da despedida.

- Vai ter isso, é?

A valsa começa a tocar. A pista fica repleta. Bailarina sem par dança com bailarina. As luzes se acendem. Há lágrimas em alguns rostos. Lilá rodopia, rodopia. E chora.

- De agora até às cinco a bebida é de graça -anuncia o novo dono.

Denise insiste. Todos gritam: Tira, tira! Num canto Silvinha e Pretinha se reconciliam. Parecem chorar.

Às cinco horas em ponto, sobem pela última vez as escadas que dão para a Avenida Rio Branco.

Em 40 anos as regras não mudaram

Nas duas primeiras décadas do século brilhavam no Rio os cabarés, copiados de modelos parisienses. Destacava-se o Assirius, onde se apresentavam Pixinguinha e os Oito Batutas.

No começo da década de 30 apareceram no Rio outras modalidades de danças noturnas, como as escolas de danças onde, efetivamente, se aprendia a bailar em salão (famosíssima era a do Breno Machado, no alto do atual Cinema Palácio). A outra modalidade foi o dancing, presumivelmente introduzido no Brasil por um espanhol ou argentino (ele se recusava a falar sobre as suas origens) de nome Antônio, que na época fundou na Praça Tiradentes o Samba Dança, primeira casa de taxi-girls que a cidade conheceu.

"Seu" Antonio vinha de Buenos Aires, de onde deve ter trazido o sistema que estabeleceu a primeira e definitiva distinção entre cabaré e dancing: o cartão a ser perfurado pelo cliente a cada rodada de dança. A cada furo correspondia uma quantia em dinheiro. Parte para a casa, parte para a táxi-girl. Outra diferença é que nos cabarés as damas eram livres para aceitar ou recusar cavalheiros. Se aceitavam participar de uma mesa como "convidadas", tinham como obrigação e função principal - pelo menos dentro do cabaré - aumentar o consumo de bebida. Em particular do champanha, que rolava farta naquelas épocas românticas. Convidada, a dama era exclusividade do cavalheiro ou da mesa pela noite toda.

No dancing, as girls eram damas que tinham que dançar com qualquer um, e era-lhes vedado sentar-se às mesas sozinhas ou com fregueses. Essa característica foi mantida até o fim.

As girls também não podiam recusar qualquer cavalheiro. O ambiente era, porém, discreto: luz branda, lusco-fusco. Não se permitiam libertinagens entre os freqüentadores nem entre cliente e taxi-girls. E havia mulheres tão requisitadas para dançar que trabalhavam com mais de um cartão (no fim da sua existência os dancings, às vezes, não tinham clientes para perfurar sequer meio cartão). Usar traje esporte era mais do que sacrilégio: classificava-se como desrespeito. Traje obrigatório para homens: passeio completo. As mulheres, sempre a rigor. Como até o fim, gastando cetins, brilhos, enfeites de cabelos.

Outro dado novo introduzido pelo dancing na vida carioca: não convocavam cantores conhecidos para se apresentar. Os cantores chegavam às salas como componentes de orquestras - crooners - e daí partiam para o profissionalismo, para o disco, quando o talento ou sorte ajudava. Assim começou a carreira de Jamelão, no Brasil Danças.

Havia quem fosse ao Brasil Danças para ouvir os cantores; outros, para ouvir músicos como Pixinguinha, João da Baiana, Benedito Lacerda, Vidraça, que lá trabalhavam com regularidade. Boemia que começava no Café Nice, passava pela Galeria Cruzeiro (atual Edifício Avenida Central) e aí expandia-se. De terno e gravata, no Brasil Danças.

Esta é uma reportagem inteligente e criativa (embora boa parte seja invencionice, nada se percebe que fira ou agrida o bom senso e os leitores). Luiz Carlos Sarmento era cuidadoso neste sentido. Tanto assim que, pouco antes de morrer, pobre, de infarto agudo do miocárdio em um leito de enfermaria do Hospital Municipal Souza Aguiar [ele, um descendente da antiga nobreza, com direito a diploma e tudo o mais], "elaborou algumas notas sobre o Jornalismo que, acreditava, seriam úteis aos futuros profissionais de Imprensa".

O texto [inédito] vale por sua atualidade.

Luiz Carlos Sarmento (exatamente como no original que me foi entregue pela viúva deste grande jornalista, Aleina Sarmento):

O Jornalismo está muito diferente. Hoje, o Chefe de Reportagem é mais um burocrata: cobra matérias, assina ordens de serviço e não tem o entrosamento de antigamente. O diálogo é muito importante entre o editor e o repórter. Antes, o Chefe de Reportagem era muitas vezes pauteiro - já que pauteiro mesmo nem existia.

A pauta é a alma da reportagem. Hoje em dia confundem pauta com agenda: o Ministro da Saúde inaugura um hospital no Rio de Janeiro. Isso é agenda. Pauta é a criação de um fato que não existe na agenda. O Jornalismo está sentindo falta de bons pauteiros. Quando fui pauteiro de alguns jornais, da TV Educativa, também, minha pauta tinha mais de três laudas, tudo bem mastigado.

Antigamente existiam grandes Chefes de Reportagem nos jornais e revistas: Luiz Paulistano, do Diário Carioca; Alves Pinheiro, do Globo; Arnaldo Niskier, da Manchete e Fatos e Fotos; Calazans Fernandes, do Jornal do Brasil. Não mandavam os repórteres logo para a rua. Tinham diálogos com eles.

Para mim o repórter de revista tem que passar pelo jornal. Jornal é a base de tudo na profissão. Não acredito em repórter que não tenha passado por ele e entra direto numa revista. Assim como não creio no repórter que ingressa no jornal sem ter tido um ano, não apenas na "cozinha" da Redação, mas na Seção de Polícia.

A Seção de Polícia dá o background para todas as editorias. Por exemplo, quando você vai cobrir um crime tem que "roubar" a agenda de endereços da vítima ou então o álbum de fotografias... antes da Polícia".

O repórter de Polícia tira de letra uma conversa com o Ministro da Fazenda e faz qualquer entrevista. Mas o repórter de Economia é quase sempre incapaz de fazer uma boa reportagem de Polícia.

Repórter de televisão tem, igualmente, que passar pelo jornal. O repórter de televisão que vai para o jornal muitas vezes fracassa. O fato de o jornalista ter medo não lhe faz nenhum mal. Afinal, é muito difícil enfrentar esse monstro que é a notícia. Para o verdadeiro repórter, a notícia tem cheiro. O repórter cheira o fato. Ele checa a veracidade. Começa a fazer o levantamento. Em revista, por exemplo, é estruturada uma "auto-pauta" sobre o assunto. Posteriormente ele desenvolve o texto.

Noto, atualmente, dois vícios:

1) o gravador, o inimigo público número 1 do repórter, e,

2) pesquisa. Tenho lido em jornais e revistas reportagens especiais contendo parágrafos inteiros meus.

Lugar de repórter é no asfalto. O repórter já nasce feito. Quanto às escolas, são importantes no sentido de darem respaldo e cultura ao futuro repórter. Parece absurdo, mas às vezes penso que quanto mais o repórter desconhece o assunto que vai cobrir, melhor sai a reportagem. Não acredito nos especialistas. Um repórter sem muita expressão pode elaborar fazer uma grande reportagem.

Ao contrário do expert no assunto que mostra sempre o trivial. Quando um repórter não entende nada de energia nuclear, pode fazer as piores e mais bobas perguntas a um físico famoso, mas, na verdade, perguntará exatamente o que os leitores querem saber. O especialista no assunto começa a discutir com o entrevistado, querendo saber mais do que ele, e não informa nada praticamente.

O repórter - mesmo sendo de revista e dispondo de prazo mais dilatado - tem que escrever a matéria ainda com a cabeça quente. Se passar muito tempo esfria a cabeça, esfriam as anotações, esfria a alma. Fazer notícia é como um ato de amor: é preciso transmitir o fato com muito calor e alma.

Quanto menos o repórter anotar numa entrevista, melhor será a sua relação com o entrevistado, pois este se sentirá à vontade. Anotações, sim, de cifras, nomes, datas... Em geral, o entrevistado tem horror a gravador. Ele não diz tudo aquilo que gostaríamos de ouvir.

As características principais do bom repórter, no meu entendimento, são:

1. talento;

2. humildade (a convicção de que cada vez que volta à Redação é como se fosse a primeira) e,

3. artesanato, ou seja, a forma de modelar a matéria.

As fontes devem ser preservadas. O repórter é um vendedor do jornal. Mesmo contrariando as suas idéias políticas. Quando ele vai trabalhar numa empresa, passa a ser esta empresa.

Com o desenvolvimento da tecnologia, o copydesk tende a desaparecer. O repórter precisará ter, obrigatoriamente, texto final.

A TV não mata o jornal, nem a revista. Por exemplo: todo mundo viu o homem ir à Lua. Pergunte o dia e a hora. Você sabe? Logo, recorre-se ao jornal ou revista. São verdadeiros documentos da História. A TV e o rádio são os aperitivos. A pessoa vê a matéria na televisão mas, na manhã seguinte, compra o jornal ou a revista.

Não admito terem dependurado a velha máquina de escrever. A minha máquina tem o formato dos meus dedos. Tem alma.

Conto nos dedos, e não chega a cinco, aqueles que eu considero os grandes repórteres de hoje. Não adianta. O bom repórter já nasce feito.

Notas

[1] As notícias deviam ser elaboradas - ainda hoje é esta a diretriz em alguns diários de menor expressão - respeitando-se o máximo de cinqüenta, sessenta linhas, não importando a natureza do assunto ou sua relevância. Esta concepção objetivava assegurar espaço para novas inserções publicitárias e, de outra parte, mostrar aos leitores que o jornal não tinha sido furado pelas demais corporações noticiosas. A partir daí, no geral, as reportagens deveriam ser desdobradas em coordenadas.

[2] Durante o período em que trabalhei em O Dia (1983-1988) poucos repórteres tinham autonomia para escrever seus textos (ver também, do Autor destas linhas, "Ricardo Galeno, um poeta no cotidiano de chumbo", Juiz de Fora, Revista Lumina, 1999, Vol. 2, nº 2, p. 41-57). A quase totalidade ditava para os redatores o que tinha conseguido apurar. Como aquele jornal fechava mais cedo que os concorrentes, o tempo que seria normalmente gasto pelo repórter, somado à passagem obrigatória pelos redatores, era minimizado por intermédio desse artifício.

[3] Refiro-me a Luiz Carlos Sarmento: Crônicas de uma Cidade Maravilhosa (Cf. COLLARES, Gabriel. Rio de Janeiro, 1995. 295 p. [inédito]). Trata-se de um volume contendo razoável quantitativo da produção daquele extraordinário repórter com quem tive o privilégio de trabalhar anos a fio e, também, de ser amigo.

*José Amaral Argolo é professor adjunto da Escola de Comunicação da UFRJ, pós-graduado em Jornalismo e em Ciência Política, mestre em Filosofia, moutor em Comunicação e Cultura e pós-doutor em Jornalismo pelo Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.


®Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]