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ENSAIOS

História de vida de comunicadores populares
Relato de uma experiência em rádio livre

Por Suely Maciel*

O presente texto visa apresentar a narrativa do comunicador Eliezer Barreto da Rocha sobre sua experiência à frente da Estação Apache, rádio livre que esteve no ar entre o final da década de 80 e o início dos anos 90, na região de Poá, na Grande São Paulo.

Reprodução

A narrativa faz parte de um estudo, ainda em desenvolvimento, de história oral de vida de comunicadores de rádio, subsidiário de um projeto maior sobre linguagem radiofônica e interatividade nos processos de comunicação.

O levantamento das experiências centra-se em comunicadores populares [1] que estão ou estiveram envolvidos na produção de programas e/ou no comando/direção de emissoras comunitárias ou livres. [2] Sua atuação deverá estar circunscrita à região da Grande São Paulo e da Capital, nos últimos dez anos, no mínimo.

O estudo está sendo desenvolvido de acordo com os métodos da História Oral (Meihy, 2005), mais especificamente história oral de vida, porque o seu foco é a experiência dos comunicadores e sua trajetória pessoal, articulada com a da comunidade ou grupo em que se inserem e com a atividade desempenhada na comunicação alternativa.

A escolha dos comunicadores populares se deve à compreensão de que eles desempenham o papel de mediadores privilegiados entre a sociedade e o desenvolvimento de iniciativas diferenciadas de produção midiática, no caso rádios comunitárias e livres.

Além disso, eles estão envolvidos numa dinâmica que tem dupla dimensão: ao mesmo tempo em que atuam no processo de produção das mensagens veiculadas pela rádio de sua localidade, encontram-se também na posição de destinatários, que são a razão de ser das transmissões e para os quais, justamente, as mensagens se dirigem. Ao ocuparem esse lugar, os comunicadores se constituem simultaneamente como instância de produção e de recepção e podem contribuir de forma significativa para a compreensão desses dois posicionamentos.

A partir do relato das experiências, entre eles o de Eliezer Barreto, intenta-se também identificar e compreender de forma coadjuvante, mas não secundária como se efetivam as práticas de produção numa rádio comunitária ou livre e, num plano mais amplo, como se atualizam e relacionam o cotidiano da emissora e o das comunidades e grupos, numa dinâmica que tem como marcas principais a participação cidadã ativa e a busca por caminhos de democratização dos meios.

Isso porque interessam, para os objetivos do projeto ora em desenvolvimento, emissoras cuja gestão e programação são de responsabilidade de pessoas ou organizações que querem efetivar uma comunicação participativa, têm vínculo orgânico com a comunidade, tratam da realidade local e favorecem uma programação interativa. [3]

1. Alternativa democrática e mais participativa

O rádio tem sido tradicionalmente considerado o veículo mais 'democrático' entre os demais meios devido a sua mobilidade e a sua penetração em grupos de todas as classes sociais, faixas etárias e graus de instrução.

No entanto, ainda que os recursos radiofônicos facilitem um diálogo concreto entre as instâncias de produção e recepção, a abertura à participação do receptor na mídia tradicional tem sido irrisória, o que configura também uma exploração limitada das potencialidades do meio, problema para o qual Brecht (1981) havia alertado há quase 80 anos:

O rádio seria o mais fabuloso meio de comunicação imaginável na vida pública, constituiria um fantástico sistema de canalização, se fosse capaz, não apenas de emitir, mas também de receber. O ouvinte não deveria apenas ouvir, mas também falar; não isolar-se, mas ficar em comunicação com o rádio. A radiodifusão deveria afastar-se das fontes oficiais de abastecimento e transformar os ouvintes nos grandes abastecedores. (Brecht, 1981:51)

Essa ausência da participação do ouvinte é sistemática na produção dos veículos de comunicação de massa vinculados a empresas de comunicação, que seguem modelos de exclusão monológicos. Iniciativas, porém, têm caminhado numa outra direção, buscando não apenas uma diferenciação de conteúdo, mas também uma programação mais livre e próxima do ouvinte, considerando substancialmente a participação deste.

Esse é o caso exemplar das rádios comunitárias e livres, que se diferenciam das chamadas comerciais em termos técnicos, de proposta e de dinâmica de produção. Elas acabam representando aquilo que Machado et al. (1986) apontam como uma possibilidade real de radiodifusão alternativa em relação à institucionalizada:

...deve haver espaço também para outras modalidades de exploração, mais democráticas e que permitam engajar a iniciativa da própria comunidade atingida pelos meios. Nesse espaço alternativo podem caber, por exemplo, emissoras ligadas a grupos de produção, a grupos de intervenção social, às minorias étnicas, culturais ou sexuais, aos partidos políticos, às comunidades locais e também aos amantes do rádio e da TV para aí realizarem experiências renovadoras de linguagem" (Machado, 1986: 17-8).

Conforme Guattari (1986), emissoras dessa estirpe representam novas maneiras de luta e expressão, e seriam exemplares de formas de intervenção de uma "inteligência alternativa" em práticas sociais inovadoras. Além disso, as iniciativas são ainda mais representativas quando se trata do papel do receptor como sujeito efetivo do processo de comunicação:

Fala-se muito hoje e um tanto impropriamente de tecnologias interativas, a propósito principalmente dos recursos da informática. Essas discussões poderiam ganhar impulso se as pessoas depositassem um pouco mais de atenção na experiência das rádios livres, que se mostrou capaz de inventar, nos seus momentos mais ousados, um verdadeiro sistema de feed back entre a equipe emissora e a comunidade dos ouvintes. Seja através da intervenção telefônica, da abertura das portas da emissora à comunidade, da transmissão direta das ruas ou da veiculação de fitas produzidas pelos próprios ouvintes, as rádios livres restabeleceram o circuito do diálogo nas mídias de massa, abrindo a possibilidade de falarem e serem ouvidas sobretudo àquelas camadas da população tradicionalmente afastadas das antenas. Tecnicamente, elas souberam tirar todas as conseqüências do casamento explosivo do rádio com o telefone, transformando automaticamente todos os seus ouvintes em correspondentes (...) (Machado, 1986: 31)

Iniciativas como as das rádios livres e comunitárias, portanto, podem se constituir em profícuas tentativas de efetivação de uma democracia nos meios de comunicação, seja por contestarem o oligopólio nos meios e os sistemas de controle político e econômico da comunicação de massa, seja por serem sensíveis à forte demanda social das comunidades em que se inserem.

Nesse contexto de busca de novos paradigmas e de uma nova proposta de radiodifusão e de democratização dos meios, implementada pelas rádios alternativas, tornam-se importantes as figuras dos comunicadores da comunidade, que passam a representar o duplo papel de instâncias de produção e de recepção, como dito anteriormente.

Ter como foco o personagem do comunicador, sua trajetória pessoal e sua inserção nesse universo comunicacional/comunitário é importante para observar uma sistemática social de suma relevância na contemporaneidade.

As narrativas dessas experiências permitem compreender tanto a trajetória individual dos sujeitos, suas escolhas ao longo da vida e os fatores desencadeadores destas, como também os processos sociais mais amplos que os permeiam e, de certa forma, determinam.

O papel do comunicador popular como mediador entre a produção midiática e a sociedade e a relação que se estabelece entre sua vida pessoal e a da comunidade são, portanto, o foco do estudo parcialmente apresentado aqui justamente porque deixam entrever dinâmicas que abarcam desde a problemática estritamente ligada aos processos de comunicação até uma discussão ampliada sobre cidadania, participação individual e popular e mudança nas relações de força e poder entre a ordem institucionalizada e os grupos sociais, tendo como fator de mediação simbólica os veículos de comunicação.

Apresenta-se a seguir, [4] então, a narrativa do comunicador popular Eliezer Barreto da Rocha, de 51 anos. Ele é morador de Guarulhos, na Grande São Paulo, onde trabalha atualmente no Serviço Autônomo de Água e Esgoto, empresa municipal de abastecimento e saneamento. No final da década de 80, Eliezer passou a atuar à frente da Estação Apache, emissora livre que transmitia para a cidade de Poá, também na região metropolitana paulista. Essa história [5] é contada pelo próprio comunicador.

"Fazer rádio livre foi muito prazeroso, foi um barato... mas também me levou a ser muito cético em relação a tudo nesse país"

Eu me chamo Eliezer Barreto da Rocha e tenho 51 anos. Sou... oficialmente... leitor de hidrômetro do SAAE, em Guarulhos, pois foi para isso que passei em concurso público, mas trabalho mesmo no atendimento ao público... Eu comecei na militância política por volta de 1975, me filiando ao antigo MDB. Desde essa época, eu já tinha assim... algumas idéias... algumas propostas para que o partido entrasse em contato com a juventude, com a comunidade de uma maneira geral.

Pensava em promover palestras, trazer músicos..., mas essa idéia não se viabilizou dentro do MDB. Eu e alguns amigos acabamos saindo do partido porque notamos que o interesse maior não era esse, naquela cidade em que a gente morava, Poá, na Grande São Paulo, região Leste... (eu nasci em São Paulo, mas praticamente fui criado em Poá. Eu sou cidadão poaense, praticamente). Então, viemos a fundar o Partido dos Trabalhadores na cidade e enfrentamos todas aquelas dificuldades que os militantes do início do PT enfrentaram, com repressão e tal. (...)

Isso foi em 1979, 1980, na época da formação do PT. (...) Inicialmente, o PT tinha uma proposta de educação política dos trabalhadores, para despertar a consciência política, mas, para se viabilizar eleitoralmente, para cumprir a legislação eleitoral, para conseguir voto, acabava filiando gato e sapato... Mas ser contra isso em 1982-83 era ser "reacionário", "louco"!!!...

Bom, aí essa desilusão com o partido me levou a me afastar do PT também, e a me aproximar das idéias anarquistas, da autogestão, do "faça você mesmo". Esta posição era uma influência também do punk rock, da música. Além disso, havia a vontade ainda de passar uma outra informação, não aquela informação que era veiculada na mídia oficial. Vem daí a idéia de rádio livre, de experimentação de novas linguagens e de um outro conteúdo, tanto em termos do discurso quanto de música. Então, a gente sempre procurou, depois já do fazer da rádio, veicular aquilo que as rádios comerciais não veiculam. Mesmo que até tocássemos uma música que estava nas lojas, nos vinis (na época nem havia o CD, era só vinil e fita cassete mesmo), não era sucesso da banda, do grupo, do cantor, da cantora da moda.

Esse outro caminho [o da comunicação alternativa] apareceu depois que deixei a militância... Ficou um buraco, um vazio... e eu tinha uma vontade, um desejo de comunicar o que pensava, tocar o que gostava de ouvir, enfim, disseminar um pouco do conhecimento que tinha e que não estava na mídia, não é? A questão das drogas e da ecologia, por exemplo, a gente levantou nos fanzines... A discussão sobre as questões ecológicas era muito incipiente ainda na época... Na Estação Apache foi essa a rádio de que participei desde o início , nós fizemos um acompanhamento muito grande do movimento ecológico na região de Poá, Suzano, Mogi das Cruzes.

A Estação Apache nasceu em setembro de 1989, no Dia do Rádio, e, num primeiro momento, discutia muito as questões ideológicas, as ecológicas... Não que na rádio houvesse algum 'militante', mas a gente divulgava esses assuntos porque queria, achava importante.

O nome Estação Apache tem a ver com grupos de 'marginais', com pessoas marginalizadas que invadiram prédios em Paris. Naquela época (eu não sei precisar a época...), "apache" era o nome dado a esses grupos que viviam à margem da sociedade. Também há a referência aos índios apaches americanos, que têm a resistência como marca. Vem desse viés, então, o nome Estação Apache, além da inspiração anarquista... A gente fez campanha por voto nulo na cidade em todas as eleições, desde as municipais e estaduais até as federais, em nível nacional.

Nós centramos nosso trabalho na questão da autogestão mesmo. A rádio chegou a ter 15 pessoas, compramos equipamentos e acabamos meio que impondo... não impondo, mas sugerindo a leitura de determinados textos a todas as pessoas que entravam, que iriam fazer parte da rádio. Claro que essas pessoas já vinham sabendo do que se tratava, já tinham tido alguma espécie de contato com a área.

Ao ouvir a rádio, elas se sentiam afinadas com alguma coisa que ali acontecia, desde as idéias, os textos, os poemas, as histórias de fanzines que a gente divulgava, até as preferências musicais. Também a discussão ideológica, do anarquismo, era fator de atração. Nós atraímos, assim, um grupo de anarcopunks que estava na cidade. Eles vieram se juntar a nós na rádio e divulgavam as questões do movimento de que participavam.

Quando não era esse viés ideológico que fazia com que as pessoas criassem vínculos com a rádio, era o gosto musical 'incomum', digamos assim. Ele não era pautado pelo que a mídia impunha. As pessoas ajudavam a gente a se diferenciar justamente nesses dois aspectos: o discurso ideológico e o conteúdo musical.

(...)

O conteúdo crítico da rádio era muito grande, ela era panfletária mesmo. A gente atacava a igreja, o Estado, a justiça, tudo! Numa cidade pequenina como Poá, você lê um poema e pode ofender A e B, entendeu? Quer dizer... você não está ofendendo pessoas, mas todo um meio social que favorece o advento de pessoas com um pensamento 'atrasado', digamos assim... Então, nós vivíamos com receio de nos expor.

Inicialmente, a rádio era clandestina mesmo, ninguém sabia quem a colocava no ar. (...) Paralelamente às atividades na Apache, nós editávamos um fanzine chamado Sinal de fumaça, que tinha uma caixa postal. Como era um veículo impresso de tiragem pequena, no máximo 300 exemplares por número (se chegou a isso... e nós editamos seis números), a circulação era mais restrita. O Sinal de fumaça era mais conhecido fora de Poá do que na cidade, mas algumas pessoas, ouvindo a rádio, escreviam para lá utilizando a caixa postal do fanzine.

Foi a partir desse contato via carta que nós ficamos conhecendo outras pessoas que acabaram vindo participar do trabalho. Fizemos uma primeira reunião, expusemos o projeto da rádio e aí eu falei: "Quero mais gente trabalhando comigo porque eu quero trabalhar com pessoas! Não quero ficar aqui, sozinho, todos os dias em que a rádio for ao ar, colocar só o que eu gosto de colocar. Não!! É preciso diversificar, ver que tem mais gente, mais cabeças pensantes na cidade e que não somos só nós!"
Queríamos pessoas que estivessem afinadas com o discurso, com o conteúdo da rádio, e que tivessem uma postura diferente na sociedade local, entendeu?

E isso aconteceu. Nós acabamos tendo contato com 15 pessoas, aproximadamente, fizemos uma primeira reunião e, a partir daí, uma oficina de rádio, pois, como eu, essas pessoas também nunca tinham estado atrás de um microfone, não entendiam direito como é que funcionava uma rádio...

Além dessas orientações, falávamos sobre a rádio, sobre a questão de rádios livres. Explicávamos que estávamos buscando a democratização nos meios de comunicação, o porquê disso, o que nos levava a nos opor a esse discurso padronizado da mídia... Também discutíamos qual era o discurso da rádio, de viés anarquista, de não se ligar a nenhum partido político, porque estava provado que todos eles, até então existentes, acabavam tendo um discurso diferente, mas uma prática muito igual, e isso não nos contentava por isso... por isso... por isso...

Eu cheguei à rádio levado pelo José Carlos. Ele era um cara que eu conhecia desde o colegial. A gente era muito amigo, ouvia as mesmas músicas... Ele estudou não sei se foi Ciências Sociais ou foi Sociologia Política em São Paulo, então nós líamos muita coisa juntos... (eu só vim fazer um curso superior agora, recentemente, pois nunca havia concluído o terceiro grau. Tinha entrado na faculdade umas duas vezes, mas não tinha concluído...).

Bom, como ele fazia Sociologia, a gente acabava lendo algumas coisas que ele trazia, trocava figurinhas mil em termos de literatura, de mídia... E ele também foi militante do PT e, posteriormente, depois que deixou o partido, formou a rádio Capitão Gancho. Ele e um outro amigo nosso ficaram juntos nessa rádio um bom tempo, acho que de 1983-84 até 1989, quando as atividades da emissora foram encerradas e nós dois montamos a Estação Apache

(...)

E a escolha do nome influenciou até o debate que tivemos sobre a linguagem que íamos empregar. Foi idéia do José Carlos que utilizássemos uma 'linguagem indígena' e, a partir daí, começamos a ler coisas sobre o assunto. Lemos basicamente dois livros: Na terra, no coração e na curva do rio, que narra o processo de genocídio dos povos latino-americanos, da América do Norte, pela colonização inglesa, e um livro sobre o mesmo tema, mas abordando a questão dos índios no Brasil, o Nossos índios, nossos matos, de um jornalista chamado Edilson Martim, se eu não me engano...

Então, em cima desses dois livros, fomos construindo a linguagem da rádio, meio, como diria... de faroeste, sabe? O José Carlos chamava o prefeito da cidade, os pró-homens, os vereadores, de "chefes estrelados dos brancos", o "chefe estrelado não sei o quê"... A gente adaptava essa linguagem para um discurso político, pois a rádio tinha um discurso político contrário à opressão branca, aos vermes brancos que carcomem as montanhas, que invadem as montanhas e constroem um monte de casinhas, cortam todas as árvores, destroem a natureza, poluem os rios...

(...)

Nesse trabalho com rádio livre, houve aspectos muito interessantes... Um deles era o fato de a rádio ter um bom público, ser bem ouvida, ser alvo de comentários, tanto favoráveis como contrários. A pregação do voto nulo, por exemplo, ficou como uma marca da Estação Apache. Era característico falar que os partidos políticos não iriam resolver nossa situação se nós mesmos não fizéssemos acontecer o que queríamos...

Falávamos de desobediência civil e de coisas um tanto quanto perigosas para a época, certo? Mas nós ouvíamos tanto os elogios quanto as críticas.

Uma vez, um rapaz chegou pra mim e falou; "Pôxa, cara, vocês falam umas coisas muito loucas naquela rádio, muito interessantes, só que a minha mina não entende nada!! Vocês deviam transmitir para a Vila Madalena!...". Ele quis dizer o seguinte: muitas pessoas logicamente não entendiam o nosso discurso porque ele seria muito avançado para a localidade, mas que num outro lugar, mais 'intelectualizado', de pessoas mais informadas, elas com certeza ouviriam e entenderiam melhor tudo aquilo que era falado no dia-a-dia da programação. Interessante...

(...)

Eu sempre tive um 'posicionamento de esquerda', vamos dizer assim, sem saber ao certo o que era essa 'esquerda'... A gente lia muito sobre temas como anarquismo, contracultura etc. Acho que foi isso que me levou à filiação no MDB. (...)

Não me lembro como passei a ler as coisas que lia, a ter as idéias que tinha, a trilhar esse outro caminho. Eu só sei que não fazia tanto parte desse mundo que meus pais passaram inicialmente para mim. Acho que essa outra visão foi acontecendo por causa das leituras, que era algo pouco sistemático, já que eu lia o que caía na minha mão. Ou um amigo chegava e falava: "Leia esse livro aí, é legal".

Os livros circulavam entre as pessoas. Lembro que, na época de ginásio e colegial, formávamos um grupo de colegas de classe e todo mês a gente fazia uma vaquinha, juntava uma grana e alguém comprava um livro e ficava sendo dono dele, mas todo mundo o lia. No mês seguinte, outro comprava, e assim por diante. E isso ocorria com livro, com disco... Nós estávamos sempre buscando coisas novas e quando a leitura era interessante, sempre havia referência a outra obra...

(...)

Quando eu fui fazer a rádio com o José Carlos, ele tinha uma emissora com o assessor parlamentar Dárcio, de Poá (hoje grande amigo também, companheiro de muitas, muuuitas peripécias... muitas aventuras...!!!). Os dois faziam a Capitão Gancho e eu, como era amigo deles, às vezes freqüentava o estúdio, que ora estava na casa de um, ora na do outro.

Eu ia lá na hora da transmissão, cheguei até a empunhar timidamente o microfone. Eu tremia! Não saía palavra da minha boca, mas... eu estava apaixonado por aquela questão, por aquela história de contra-informação!!! Nós já estávamos desiludidos com o PT mesmo, já tínhamos caído fora, já éramos tachados de loucos na cidade, aquelas histórias... Eu achava legal o trabalho na Capitão Gancho, mas a rádio era deles e eu ficava na minha, muito tímido, admirando, né?! Mas, então, eles resolveram, lá por questões deles, acabar com a rádio Capitão Gancho.

Tinha mais gente trabalhando nela, mas eles divergiram, sei lá, e as atividades da rádio foram encerradas. O José Carlos quis montar uma outra emissora, com um novo perfil, uma nova linguagem. Ele falou da Apache e foi aí que me convidou. Eu topei: "Vamos fazer, então".

Desde o início eu participei de todo o processo e ficamos juntos até 1989?1990? Acho que em meados de 1990 eu já estava sozinho com a rádio e chamando alguém para ficar comigo. As outras pessoas vieram no final de 1991, acreditando que esse era o caminho, que a gente podia atingir outras pessoas.

O lance sempre foi esse: atingir as pessoas, trazer as pessoas para participarem, se mobilizarem e estarem agitando a cidade, porque aquilo era um marasmo completo, uma cidade conservadora...! A gente sempre teve isso em vista, o PRAZER!! O prazer mesmo de estar fazendo a rádio, porque fazer rádio é um negócio meio terapêutico também, entende? Você deitar falação, ler o que você quer... Em determinados programas era tudo organizadinho, tinha, vamos dizer assim, uma pauta, mas em outros não tinha nada! "O que a gente vai rolar hoje?". "Então, tá aqui, vamos colocar" e pá! colocava o programa no ar e ia falando, compondo fanzine, lendo poesia imaginária... A programação acontecia espontaneamente, não havia um preparo, embora às vezes a gente escrevesse um texto sim, combinasse de fazer de um jeito, "fala isso"... "toca música aqui" ... etc. Também fizemos alguns programas de entrevistas.

Antes de eu ter essa experiência, eu era ouvinte de rádio, desde criança. O rádio era "o" veículo de comunicação lá em casa. Meu pai trazia jornal de vez em quando, mas era o rádio o veículo principal. Então eu ouvia desde pequenininho, ouvia música sertaneja, ouvia Nelson Gonçalves, Velha Guarda...(...) Minha mãe tinha discos 78 rotações aos montes, discos que se perderam, quebraram... Mesmo depois de criança, eu sempre continuei ouvindo rádio, ouvindo música, dormia com o rádio ligado e até hoje eu gosto disso.

(...)

Ao passar para o 'lado de lá', de fora para dentro da rádio, veio aquela constatação de que, numa sociedade de classes, algumas pessoas vão ter acesso a determinadas informações e outras não. E, queira ou não, eu me incluo entre os que têm algum nível de informação, fui um privilegiado nesse aspecto porque era só olhar ao meu redor na cidade e ver quantas pessoas tinham o conhecimento que eu tinha em relação às coisas que eu estava fazendo, em relação às experiências que eu fui vivendo no decorrer da minha vida... Essas experiências práticas trouxeram conhecimento e me levaram a tomar contato com pessoas que passaram para mim outros saberes, ambientes que me proporcionaram esta e aquela sacação...

O que se vê, porém, é que as pessoas se aproveitam do conhecimento diferenciado que têm para se impor, para viverem bem, para ganharem dinheiro, para se venderem em todos os níveis. Eu passei a questionar isso. "Até que ponto o que eu estou fazendo está sendo passado com clareza?" Isso era até decorrente de questionamentos como o do rapaz cuja namorada, dizia, não entendia nada o que eu falava na rádio.

Assim como a menina dele, muitas outras pessoas não entendiam nada e, mesmo hoje em dia, quantas são capazes realmente de entender, com um mínimo de clareza e de profundidade, as notícias veiculadas nas rádios? Quer dizer, tem-se muita informação, mas... as pessoas não reagem! O país está sendo assaltado já faz tempo, e não é de agora, não é na administração do PT não, é desde 1500!!! E a população está aí, apática. Será que ela não tem informação sobre o que acontece? O que falta para que se dê um salto de qualidade realmente, de exigência, de reivindicação, de mobilização??

Eu fiquei meio descrente em relação a essas coisas porque percebi que, normalmente, as pessoas acabam apenas tirando proveitos pessoais desse conhecimento que adquirem no decorrer da vida, em geral por fazerem parte de uma elite econômica e, em decorrência disso, de uma elite intelectual. E tudo fica por aí mesmo, todo mundo só fala para os seus pares!!...

(...)

A Estação Apache praticamente encerrou suas atividades em julho de 1992, depois de dois anos de devoção, mais ou menos. Ela foi de 1989 a julho de 1992. Depois houve até umas transmissões esporádicas, mas não voltamos a transmitir por dificuldade em encontrar um lugar seguro para isso. Nesse período se formou a primeira Associação das Rádios Livres do Estado de São Paulo, da qual o primeiro presidente foi o Leo Tomás, da rádio Reversão, que funcionava na Vila Ré. A rádio era mais estruturada.

Eles faziam transmissão de apresentações musicais ao vivo e funcionavam todo dia. Já nós transmitíamos três, quatro, quando muito cinco vezes por semana, durante algumas horas da noite. Nossa experiência era mais mambembe e a gente vivia mudando de lugar, fugindo.

Em 1991, houve um problema com o local de transmissão, que não foi fiscalizado pelo Dentel, mas pela Polícia Civil. Eram paus-mandados dos pró-homens da cidade, mas a gente já estava sabendo da história, da 'fiscalização', e paramos as transmissões. A gente vivia mudando os locais de transmissão, embora tivesse mantido um lugar fixo durante um certo tempo. Eram no mínimo três lugares, ficávamos uns meses em um, depois íamos para o outro, depois voltávamos para o primeiro... Hoje é diferente e as rádios livres têm um lugar fixo de transmissão...

(...)

Na década de 80, ocorreu um boom de fanzines do Brasil e nós recebíamos publicações do país inteiro, além de fitas cassete com músicas... O Sinal de fumaça teve um grande papel nessa história porque, como veículo impresso, ele chegava aonde a rádio não chegava. Até em Belém do Pará ele foi dar...Com esse negócio de fanzine vão-se estabelecendo relações que você não controla!! Você faz um fanzine, manda pra outro fanzineiro, que faz um comentário sobre a sua publicação e informa o endereço dela no fanzine dele... E isso roda, vai virando uma bola de neve! Era assim que muitas pessoas tomavam conhecimento da Estação Apache... Fora isso, tinha também a imprensa, pra onde a gente mandava uns números...

O Sinal de Fumaça foi um grande divulgador de movimentos de rádios livres no Brasil. Era um órgão impresso marginal de divulgação de uma coisa também marginal na época, que era a questão das rádios livres. O Sinal era um fanzine que trazia histórias em quadrinhos de autores desconhecidos, textos anarquistas e libertários, poesias. Havia também informações sobre rádios livres, de aspectos técnicos como modelos de transmissor até dicas sobre como montar notícias nas rádios. Uma vez, por exemplo, a polícia fez uma 'visita' à rádio Reversão e prendeu o Leo Tomás. Nós divulgamos isso no Sinal.

Acredito que muitas pessoas tenham ficado sabendo alguma informação, pelo menos sobre as rádios livres, através do fanzine, que era feito na região Leste por duas pessoas, eu e o José Carlos, com a colaboração do Brasil inteiro!! Acho que a tiragem máxima foi de uns trezentos exemplares por número. Eram duas folhas de papel sulfite A4 dobradas no meio. Depois ele até evoluiu, pois chegamos a fazer a editoração eletronicamente! Mas ele era xerocopiado, a partir de uma matriz.

(...)

A uma certa altura da história da Estação Apache, não dependia mais de mim para ela ficar no ar, pois ela já era de todos, até o transmissor era coletivo. Cada um dos 15 participantes havia contribuído para a compra (um bancário que fazia a programação com a gente abriu uma conta no banco e assim eram geridas as finanças da rádio). Portanto, se eu saísse e os outros quisessem tocar o barco, eles tocariam. Mas o projeto terminou mesmo por dificuldades materiais, por problemas de 'logística'. Não ter um local para a transmissão era outro empecilho, pois era perigoso ficar se expondo e correndo o risco de perder tudo, e isso a gente não queria! Além do que, sem lugar para a transmissão não há rádio, não é? Havia também muita repressão, a Reversão tinha sido pega mais ou menos nessa mesma época, se não me engano...

Somado a tudo existia um certo cansaço do modelo, do jeitão de fazer a rádio e a dificuldade de avançar mesmo, porque a gente queria fazer coisas que dependiam de grana. Queríamos investir na aparelhagem da rádio, comprar um transmissor mais potente... Mas como era que a gente ia levantar a grana? Pôxa, a idéia era que a rádio se autogerisse, não tivesse vender espaços ou publicidade como muitas rádios acabaram fazendo. Nós éramos contra isso, embora até tenhamos questionado essa posição num determinado momento.

(...)

Devido às dificuldades e aos questionamentos que eu já vinha fazendo, acabei ficando meio sem pique, não consegui entender como íamos tocar a coisa e vencer esses entraves. Não consegui esclarecer a dúvida sobre como chegar a mais pessoas... A gente até avançou um pouco na discussão com a idéia de fazer uma rádio com outro perfil, mais aberta realmente à comunidade. Só que, então, pintava dúvida de novo: aberta quanto? Ficamos discutindo essas alternativas, como a da possibilidade de trazer um grupo lá de música sertaneja pra tocar. "Mas que tipo de música sertaneja? Essa que rola aí?" "Não, essa que rola não!!".

Ou seja, sempre tendo claro que serve bem esse tipo de música... mas "Onde encontrar as pessoas que vão fazer isso?". Nós também chegamos a fazer reuniões pra discutir possibilidade de fazermos reportagens, cobrirmos os acontecimentos da cidade, mas então já seria uma rádio com uma outra cara, um outro perfil, não tão mais de combate.... Porque aquele momento foi importante, era meio quixotesca a coisa... a gente desafiava realmente os moinhos de vento da cidade!... O Zé Carlos até falava muito isso e é verdade: dependendo do que a gente falava no microfone, era preciso tomar cuidado para sair de casa e descer a rua para pegar o trem...

Depois que fechamos a Estação Apache, as pessoas partiram para outras atividades. O transmissor ficou com o pessoal, parado, não foi mais utilizado. Um grupo de pessoas continuou na ativa, fazendo música, fazendo fanzine. Recentemente encontrei um deles, com quem cheguei a conversar. "A gente tá pensando em montar uma rádio, claro, mas uma rádio livre", foi o que ele contou. Eu, porém, não mais nenhum envolvimento, nem vontade de trabalhar com isso.

Essas coisas, todo esse 'altruísmo' encheram a paciência. Pode até ser uma fraqueza minha (se isso for encarado só por esse lado...), mas a gente começa a achar que não tem saída, que "tá tudo dominado", como dizem... Então... não tem muito o que fazer não. Acho que qualquer atividade que seja feita acaba sendo desviada para interesses que acabam sendo os "interesses da oficialidade banal de aldeia!", como diríamos os apaches!!...

Pessoalmente, ter realizado essa atividade foi uma baita experiência, que trouxe momentos agradáveis, conhecimento, contato com pessoas interessantes... Mas também me levou a ser muito cético em relação a tudo nesse país!... A experiência também serviu para expandir muito meu conhecimento sobre a comunicação, sobre o poder da comunicação... e também questionar até que ponto as informações ou as contra-informações resultam em posturas claras, objetivas, e em coisas concretas para melhorar o entorno... o social... o geral... o coletivo.

Me levou a isso... a esse questionamento. Pessoalmente, foi uma experiência muita rica, muito gostosa, foi um negócio meio lúdico!... Acho que não tenho muito mais o que falar além disso... foi um grande BARATO!!! ter feito tudo isso na época e nas condições em que fizemos... (...)

Foi possível também ver que mistifica-se muito o trabalho alternativo... de rádio livre. Grosso modo, porém, a coisa era muito mais simples de ser feita do que alguns acadêmicos na época tentavam passar pras pessoas, né?... com seus discursos bem elaborados. Diziam que "tem de ser feito assim", "não tem que ser feito assado". Ahh! tem que ser feito assim nada, tem que ser feito do jeito que DER!! É claro que sempre se vai procurar melhorar, tanto é que a gente passou a questionar toda essa questão de ampliação da rádio, de melhoria e tal.

Mas... um certo discurso 'oficioso' que se faz em cima das tentativas alternativas pra qualquer coisa... acaba tolhendo às vezes a vontade e até intimidando as pessoas... "ahh, não, isso não é pra mim", né?... Se eu não tivesse visto acontecer, na cidade onde eu morei, a experiência de rádios bem simples... assim... trazendo muita coisa rica, muita informação, muita coisa nova, eu jamais teria feito porque se eu fosse ler, depois, eu ia achar que era uma coisa muito difícil de ser feita, que estava muito além das minhas posses e tudo o mais. E, no entanto, era uma coisa muito fácil de ser feita. A gente nem tinha, assim, muita despesa... Claro que, para nós, acabava pesando no orçamento, porque você tirava de um lugar pra pôr no outro pra sustentar a rádio... mas...

Então, viver essa experiência prática foi muito legal... foi prazeroso, foi lúdico! Foi um grande barato!... Se tem um saldo positivo da minha experiência é o de que foi um grande barato, porque, do resto, já estou questionando tudo!!... entendeu? Se mobiliza, se não mobiliza, até que ponto mobiliza, entendeu? O que que é mobilização?... Mas aí já são outros quinhentos... aí já é uma outra discussão...

Considerações finais

Não é pretensão desse texto apresentar uma análise definitiva da narrativa de Eliezer Barreto da Rocha ou do papel do comunicador popular, haja vista que isso só será possível a partir do diálogo com outras narrativas ainda em fase de sistematização que irão compor o conjunto da pesquisa.

Apesar disso e de ser apenas uma das entrevistas, ela já permite identificar as motivações, as preocupações e os anseios que levaram Rocha a participar de um projeto de rádio livre. Mais que apenas compor o relato de uma experiência, as palavras revelam inquietações e perspectivas que certamente assemelham-se àquelas de milhares de comunicadores que, com suas iniciativas, questionam o sistema massivo de comunicação e representam, de forma concreta, alternativas a ele. Além disso, a narrativa lança questionamentos que levam a uma reflexão sobre os sentidos dessas mesmas iniciativas e sobre projetos efetivos de comunicação.

A fala de Eliezer mostra uma posição de questionamento social e político alinhada com um discurso de contestação marcante nas décadas de 70 e 80. Esse dizer, apesar de muitas vezes tido como anacrônico por determinadas correntes hegemônicas de pensamento na atualidade, refere-se a problemas comunicacionais concretos que, presentes mesmo antes do período enfocado pelo relato, não foram equacionados até hoje: representatividade, interatividade, determinação dos conteúdos, linguagem diferenciada, participação popular, democratização. Ou seja, os anseios do passado ainda são os mesmos no presente.

É possível perceber também que a atuação do comunicador na rádio livre estava completamente alinhada com um anseio já manifestado desde a adolescência, que era o de se posicionar no contrafluxo de um determinado tipo de discurso e de práticas estabelecidas. A busca por 'outros olhares' sobre a realidade, as leituras que ele chama de "contraculturais", a simpatia por conceitos como o de autogestão já delineavam a possibilidade de formas de atuação no futuro.

Essa formação se refletiu nas atividades paralelas desempenhadas na idade adulta (de meados dos anos 70 em diante), todas elas alternativas à produção midiática geral, como fanzines e rádios livres, sem falar no engajamento em partidos primeiro o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), depois o Partido dos Trabalhadores (PT) que aglutinavam forças populares de oposição ao poder estatal e político instituído na época.

Quanto à maneira de produção da programação na rádio Estação Apache, destacam-se a informalidade e o uso do microfone como canal para a expressão de anseios, preferências e pontos de vista individuais sobre a realidade. Mais que meio coletivo de manifestação, no caso da experiência de Eliezer revela-se uma produção centrada na comunicação de preocupações e gostos particulares, de um grupo extremamente restrito e sob forte sentido agregador de idéias e posturas. Isso desvela uma faceta quase oposta à da produção midiática massiva, que é produzida por muitos e se dirige a um universo muito maior ainda, a "massa" de que fala Warren Breed (1971).

É instigante notar que os questionamentos do comunicador sobre seu trabalho se dão justamente nesse sentido, numa compreensão ainda muito marcada pela idéia de que os meios de comunicação, mesmo os alternativos, têm sim que falar para muitos e representar os interesses de muitos. Na sua avaliação, ter o "privilégio" do acesso a um veículo de comunicação e não servir como porta-voz dos grupos alijados dessa 'sorte grande' imprimiria à iniciativa um caráter pouco legítimo, uma espécie de apropriação indevida, um desperdício de uma oportunidade tão rara...

A narrativa de Eliezer, então, põe em cena a discussão sobre a representatividade de ações diferenciadas na comunicação social. Ao fazer isso, suscita uma série de questionamentos: as iniciativas de comunicação devem, sempre, envolver o maior número de sujeitos possível, ou seja, devem se configurar de e para grupos ampliados, ainda que sob propósitos restritos?

É possível fazer uso dos meios de comunicação para falar para poucos ou até mesmo para si? As transmissões radiofônicas em iniciativas comunitárias e/ou livres podem ser reflexo de gostos pessoais, e as mensagens, devido a suas formas de composição, podem se dirigir a um conjunto bastante fechado de pessoas, únicas para as quais seriam compreensíveis?

Ainda não é possível apresentar respostas para essas perguntas. As demais entrevistas talvez contribuam para isso ou, quem sabe, venham adicionar outros questionamentos aos já postos. Ainda assim, eles colocam, desde já, um problema para aqueles que pensam e discutem a comunicação, em especial em mídias e iniciativas alternativas.

Notas

[1] Por comunicador popular estou considerando os sujeitos que atuam em mídias radiofônicas diferenciadas, ou seja, em iniciativas independentes do sistema de radiodifusão oficializado, lugar esse ocupado notadamente pelas rádios comunitárias e livres. Refiro-me, ainda, a pessoas que pertencem a uma determinada comunidade, ampla ou restrita, e que não têm vínculos nem experiência de trabalho com radiodifusão comercial. Ressalte-se que o termo 'popular' não é aqui sinônimo de "simpático" e de "boa penetração" na comunidade, nem de profissionais que atuam na comunicação massiva em programas de grande apelo público, em emissoras comerciais.

[2] Não há um consenso na diferenciação entre emissoras livres e comunitárias, embora ambas denominações sejam comumente utilizadas para identificar projetos de rádio independentes e singulares. De comum entre as duas designações há a baixa potência de transmissão (em geral 25W) e audiência restrita e, na maioria dos casos, transmissão sem concessão, permissão ou autorização de canal por parte do governo (cf. PERUZZO, 1998). Atualmente, com o advento da legislação sobre rádios comunitárias, tem sido corrente no meio chamar de comunitárias as que já obtiveram autorização de funcionamento do governo e de livres, as que continuam sem essa outorga. No presente projeto, a distinção se deve ao tipo de proposta que norteia as atividades das emissoras e não o critério da 'legalidade/ilegalidade'. Opto por utilizar os termos rádios comunitárias e livres para designar iniciativas que se desvinculam da rede 'formal' de emissoras de rádio e que se insiram em propostas e atividades vinculadas com as comunidades em que se situam ou com grupos específicos comprometidos com projetos de democratização da informação, não importando como elas se auto-denominam ('comunitárias' ou 'livres'); o que importa é a atividade que realizam.

[3] Os parâmetros que caracterizam as rádios comunitárias e livres são apresentados por PERUZZO (1998).

[4] O texto é uma versão parcial da transcriação da entrevista com o comunicador, realizada no dia 26 de outubro de 2005. Ressalte-se que, devido às limitações de espaço, optou-se por destacar trechos de sua narrativa que abordam mais diretamente a sua experência à frente da rádio livre e de outros projetos alternativos de comunicação.

[5] A narrativa foi obtida conforme o método da História Oral. A perspectiva, como dito anteriormente, é da história oral de vida, com foco na trajetória pessoal do colaborador a partir da ótica deste. Em vista disso, o interesse do levantamento não está na contraposição ou checagem de dados, mas no relato da experiência feito pelo colaborador. O importante é saber como ele compreende as dinâmicas históricas e a relação destas com a sua vivência.

Referências bibliográficas

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PERUZZO, Cecília Maria Krohling. Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. Petrópolis, Vozes, 1998.

_____________________________. Participação nas rádios comunitárias no Brasil. XXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Recife-PE, 9 a 14 de setembro de 1998. Disponível em http://bocc.ubi.pt/pag/_texto.php3?html2=peruzzo-cicilia-radio-comunitaria-br.html (acesso em 31/08/2005).


*Suely Maciel é jornalista formada pela Universidade Federal de Goiás, mestre em Semiótica e Lingüística Geral pela FFLCH/USP e doutoranda em Ciências da Comunicação/Jornalismo pela ECA/USP.

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