Nº 11 - Fev. 2009
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO VI
 

 

Expediente
Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 



ENSAIOS
 

O corpo como linguagem
e expressividade

Por Devani Salomão de Moura Reis*

RESUMO

Delimitaremos aqui o campo em que estamos pensando a dimensão física da terceira idade – o corpo – e o modo como este é constitutivo e significativo para a própria velhice. Recorreremos a algumas das noções do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, discípulo do fenomenólogo alemão Edmund Husserl. Merleau-Ponty dedicou grande parte de seus estudos à corporeidade e a seu sentido.

Reprodução

Nicolaes Maes.
Old Woman Dozing (1656), Musées Royaux des Beaux-Arts, Bruxelas.

PALAVRAS-CHAVE: Análise da Linguagem / Corporeidade / Envelhecimento

1. Intenção e premissas

Um dos livros em que essa questão é tratada de modo mais completo é a Fenomenologia da percepção, publicado em 1945 e de grande importância dentro do movimento fenomenológico-existencial. Ali, o filósofo procura, sobretudo pensar o corpo em seu aspecto existencial, enquanto potência viva e ativa, longe das concepções tradicionais que o pensavam ora como objeto, ora como reflexo da consciência.

O envelhecimento, na sociedade atual, não tem sido como um processo multi, onde existem mudanças biológica e psicológica, entre outras. É como se fosse possível manter o corpo sempre vigoroso e atraente. A medicina e os produtos cosméticos têm contribuído com novas tecnologias para a construção de um corpo “eternamente” jovem. Não é dado ao velho o direito de envelhecer naturalmente sem o recursos das plásticas, das lipos, dos botox. Quanto menos idade ele aparentar, com relação a sua idade, melhor será aceito na sociedade.

Quanto ao aspecto psicológico, os velhos, com os valores e crenças internalizados por décadas têm que conviver com outros, muito mais permissivos e também relativos.

2. A visão de Merleau Ponty

O ser no mundo - indivisibilidade

A primeira preocupação de Merleau-Ponty, na parte do livro dedicada à corporeidade, é mostrar a insuficiência do pensamento objetivo, que trata o corpo como algo que existiria “(...) partes extra partes, e que conseqüentemente não admite entre suas partes ou entre ele mesmo e os outros objetos senão relações exteriores e mecânicas”. [1] As funções orgânicas se explicariam, nessa vertente, por relações lineares de estímulo e recepção.

Essa linha, contudo, não é capaz de explicar o fato de que essa exteroceptvidade exige e envolve uma atividade da consciência, uma doação de forma. O que o pensamento objetivo perde de vista é a relação interna entre o psíquico e o físico, de modo que apenas concebe o corpo ou como objeto ou como “fato psíquico”. A experiência, entretanto, mostra justamente o contrário, tal como comprova o exemplo do membro fantasma usado por Merleau-Ponty. [2] Esse fenômeno da percepção de um membro que o doente perdeu nos remete a uma região ambígua:

“O membro fantasma não é o simples efeito de uma causalidade mecânica, não é de modo algum uma cogitatio. Só poderia ser uma mistura dos dois se encontrássemos o meio de articular um sobre o outro, o ‘psíquico’ e o ‘fisiológico’, o para si e o em si, e de preparar entre eles um encontro, caso os processos na terceira pessoa e os atos pessoais pudessem ser integrados num meio que lhes fosse comum”. [3]

O tratamento dessa região de encontro entre o físico e o psíquico é um dos projetos principais da Fenomenologia da Percepção; ali ela será concebida justamente pela noção de ser-no-mundo, entendido como o movimento mais originário de nosso ser, como nossa existência mesma. O importante é que o ser-no-mundo desenha um campo pré-objetivo, e, portanto ainda não cindido pelas noções cartesianas de corpo e espírito como pólos separados.

Nessa perspectiva, o fenômeno do membro fantasma se explica a partir da recusa da mutilação por um “(...) Eu engajado num certo mundo físico e inter-humano, que continua a se estender em direção a seu mundo, apesar das deficiências ou das amputações, e que, nesta medida, não as reconhece de júri”. [4] O que se revela é nossa inerência no mundo, nossa relação constitutiva com ele: “O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é para uma pessoa viva juntar-se a um meio definido, confundir-se com alguns projetos e engajar-se continuamente neles”. [5]

3. Temporalidade

Ponty diz [6] “Enquanto habito um “mundo físico”, onde “estímulos” constantes e situações típicas se reencontram – e não somente o mundo histórico onde as situações não são nunca comparáveis -, minha vida comporta ritmos que não têm sua razão no que escolhi ser, mas sua condição no meio banal que me cerca. Assim aparece em torno de nossa existência pessoal uma margem de existência quase impessoal, que por assim dizer, segue por si, a qual me coloco com cuidado para me manter em vida – em torno do mundo humano que cada um de nós fez um mundo em geral, ao qual se deve primeiramente pertencer para poder fechar-se no meio particular de um amor ou de uma ambição.

Envelhecer mexe com a identidade do indivíduo, que em geral, está ligada a uma atividade econômica. As pessoas em geral se apresentam, como: sou fulano de tal, da empresa x, ou sou (a profissão) e depois o nome. Quando o indivíduo não tem como se identificar, dentro desses padrões, naturalmente ele se isola ou busca a companhia de seus iguais.

O corpo, por meio da "temporalidade", articula justamente o físico e o psíquico, nossa existência biológica ou impessoal, com nossa existência pessoal ou nossos atos próprios: “O organismo e suas dialéticas monótonas não são, pois estranhos à história e como inassimiláveis por ela. O homem, concretamente tomado, não é um psiquismo unido a um organismo, mas este vaivém que ora se deixa ser corporal e ora se dirige aos atos pessoais”. [7]

Dessa maneira, o próprio reflexo passa a se situar nesse campo ambíguo. Ele não é um processo cego ou objetivo, mas sim o modo pelo qual nosso ser se volta para as coisas, abre-se a uma situação, investe os estímulos objetivos de um sentido e de uma configuração, constituindo-os enquanto presença global. É a estrutura temporal de nossa experiência que opera essa reunião do múltiplo, essa superação da dispersão dos instantes rumo a um sentido definitivo e integrador da totalidade de nossa experiência.

Mas, justamente por essa mesma estrutura, tal síntese nunca é completa, ela nunca se esgota, já que o próprio tempo jamais se fecha sobre si, sempre abrindo-se rumo a um porvir inédito. Assim, embora cada presente pareça pretender fixar nossa vida, [8] ele sempre se mantém aberto e tensionado entre um passado e um futuro, que o impedem de em algum momento ser total.

O passado, portanto, é sempre de alguma maneira preservado pelo presente: “Com mais razão ainda o passado específico que é nosso corpo não pode ser retomado e assumido por uma vida individual senão porque ela nunca o transcendeu, porque o nutre secretamente e emprega nele uma parte de suas forças, porque ele permanece seu presente, como se vê na doença em que os acontecimentos do corpo tornam-se acontecimentos do dia”. [9]

Já que o corpo é a nossa história, com tudo que foi experimentado, física e psicologicamente, a vida individual não pode ser separada do dele, que é o instrumento de realização do seu cotidiano. O nutrir é tanto físico quanto psicológico e, quando o corpo adoece é porque algo no cotidiano precisa ser observado e cuidado com atenção. O doente sente em seu corpo uma segunda pessoa implantada. Como distinguir nos sintomas as causas fisiológicas e os motivos psicológicos. Como associar as duas explicações e como conceber um ponto de junção entre as duas determinantes?

4. Espacialidade

Além disso, o corpo constituirá uma espacialidade própria, articulada entre as noções de figura e fundo, formando um “(...) fundo sob o qual pode se destacar ou o vazio diante do qual pode aparecer o objeto como finalidade de nossa ação”. [10]

Essa espacialidade se configura pela orientação de nosso corpo, que se volta para as coisas, se polariza em direção a elas, e constitui um sistema prático com o espaço exterior. Desse modo, o próprio movimento corporal não terá como fundamento o pensamento ou a motricidade, mas uma “intencionalidade motora”, que agrega o projeto motor e sua efetivação em uma totalidade única, fazendo com que o movimento em si mesmo já seja o encontro entre a intenção (consciência) e sua realidade motora:

O fundamento do movimento não é uma representação ligada ou associada exteriormente ao próprio movimento, ele é imanente ao movimento, ele o anima e o dirige a cada momento, a iniciação cinética é para o sujeito uma maneira original de se referir a um objeto assim como a percepção. [11]

Por meio da análise de vários casos de doenças relacionadas a distúrbios físicos, Merleau-Ponty mostra que nem uma interpretação meramente física e nem uma meramente psíquica dão conta do fenômeno que elas manifestam em sua integridade. Tomado concretamente, o homem tem de ser considerado enquanto “(...) vaivém que ora se deixa ser corporal e ora se dirige aos atos pessoais (...). Entre o psíquico e o fisiológico pode haver relações de troca que impedem quase sempre de definir um distúrbio mental como psíquico ou como somático”. [12]

Há um profundo entrelaçamento entre os processos orgânicos e os psicológicos, um não podendo ser claramente dissociado do outro. No movimento da existência, o acontecimento psicofísico (incluído aí as doenças) situa-se justamente nessa região ambígua e mista entre corpo e alma.

A doença, portanto, expressa uma estrutura complexa, única, em que se fundem a consciência e o corpo, de modo que o comportamento corporal não é nem um processo mecânico, autônomo, e nem é a mera resposta a uma ordem anterior dada pelo pensamento. Os casos clínicos analisados permitem perceber a simultaneidade entre uma função simbólica e uma função perceptiva: “Os conteúdos visuais são retomados, utilizados, sublimados, ao nível do pensamento, por uma força simbólica que os ultrapassa; mas é na base da visão que essa força pode se constituir”. [13]

O corpo realiza uma dialética entre a forma e o conteúdo, uma ação recíproca, que é a nossa própria existência: “(...) a retomada perpétua do fato e do acaso por uma razão que não existe antes dele e sem ele”. [14]

Nesse movimento, o sujeito forma para si um campo disponível, um mundo do qual ele dispõe e ao qual recorre espontaneamente. Esse mundo tem para o sujeito uma evidência antepredicativa, um valor pré-tético, que funciona como fundamento e apoio de todas as suas percepções e ações; ele aparece como uma espécie de sedimentação, um “saber contraído”, que não se mantém inerte, mas ao contrário nutre-se do presente e o nutre, estabelecendo uma relação constitutiva com ele.

Do mesmo modo que os pensamentos adquiridos, esse campo sedimentado não é absoluto, mas sim uma expressão de nosso presente, e isso porque “(...) a aquisição só é verdadeiramente aquisição se for retomada num novo movimento do pensamento e um pensamento só está situado se ele próprio assume sua situação”. [15] Pelo processo temporal, a consciência realiza um movimento duplo de sedimentação e espontaneidade, criando o novo a partir do dado, o porvir a partir do passado.

É por essa razão que o corpo não está dentro do espaço e do tempo, mas sim mora neles, isto é “(...) aplica-se a eles e os envolve”. [16] O corpo toma um espaço e um tempo, assumindo-os como sua situação, mas nunca os abarcando inteiramente, já que estes encerram sempre horizontes indeterminados: “A síntese do tempo, como a do espaço, está sempre por recomeçar”. [17]

O corpo faz essa compreensão sem ter de recorrer a qualquer função simbólica ou objetivante. Para o sujeito normal, seu corpo é não apenas um sistema de posições atuais, mas também um “(...) sistema aberto a uma infinidade de posições equivalentes em outras orientações”, [18] é justamente esse sistema de equivalências que Merleau-Ponty designa como esquema corporal, um invariante dado que transpõe imediatamente tarefas motoras.

Esse esquema apoia-se na unidade do corpo próprio, na medida em que este não é uma reunião de partes distintas, mas uma totalidade em que as diferentes experiências se entrecruzam e se penetram, uma “‘lei eficaz’ de suas mudanças”, [19] que opera interpretando a si mesmo, constituindo um estilo próprio, certa modulação existencial característica.

Independentemente da idade, as pessoas interagem com o mundo através do corpo. A amplitude de cada existência é delimitada pelo espaço e pelo tempo que cada um habita. Não nos esquecendo que nesses mesmos contextos existem outros corpos, portanto outras visões de mundo. Então, temos duas visões sobre “mim” e o “meu corpo”; meu corpo para mim e meu corpo para o outro, e como esses dois sistemas são compossíveis.

Ao analisarmos a questão da terceira idade na sociedade moderna, que cultua o corpo magro, rijo, dourado, siliconado a visão do corpo do idoso é destoante desse modelo. Não importa se ele ainda é que capaz de agir, se continua com os cinco sentidos em forma, sua aparência é incompatível com o “padrão exigido”.
Assim, para além da inteligência e da percepção, encontramos uma função mais fundamental do corpo, que faz com que existam para nós objetos, e que é justamente uma espécie de arco intencional:

(...) que projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa situação física, nossa situação ideológica, nossa situação moral, ou, mais certamente, faz com que estejamos situados sob todas essas relações. É este arco intencional que faz a unidade dos sentidos, dos sentidos e da inteligência, da sensibilidade e da motricidade. [20]

A motricidade corporal, nessa direção, aparece como uma intencionalidade original, o que significa que ela é a simultaneidade entre corpo e espírito, e que a consciência é um “eu posso” que se realiza por meio de seu corpo. A noção de intencionalidade é central em Merleau-Ponty, sendo compreendida como a própria existência, o poder de visar e significar para além do dado que é o próprio ser no mundo, nossa transcendência original pela qual nos constituímos, retomando o passado e inaugurando um porvir.

Esse movimento existencial se realiza enquanto unidade entre o sentido e sua encarnação, a consciência e o corpo. Assim, a consciência é “(...) estar na coisa por intermédio do corpo”, [21] e é por meio de corpo que “compreendemos” e visamos às coisas, respondendo a uma solicitação do mundo que se faz sem recorrer a qualquer representação. Por meio do corpo, eu tenho acesso a um mundo e a sua compreensão, não por uma atividade intelectual, mas por uma ação propriamente motora ou existencial.

Um exemplo disso é o hábito, que não podendo ser reduzido nem a um conhecimento nem a um automatismo, se explica como um “(...) saber que está nas mãos, que só se liberta com esforço corporal, e que não pode ser traduzido por meio de uma designação objetiva”. [22]

O hábito mostra claramente que é o corpo que compreende, desde que entendamos a compreensão como acordo entre o visado e o dado, entre a intenção e sua efetuação; [23] mais que isso, essa ação que, no hábito, realizamos espontaneamente rumo ao fim que pretendemos, mostra que o corpo “é eminentemente um espaço expressivo (...) Mas nosso corpo não é somente um espaço expressivo entre todos os outros. Este é somente o corpo constituído. Ele é a origem de todos os outros, o próprio movimento de expressão, o que projeta para além as significações dando-lhes um lugar, o que faz com que existam como coisas sob nossas mãos e sob nossos olhos”. [24]

O corpo é a própria realização da intenção, e nesse sentido é sua própria expressão ou encarnação; ele funciona como um centro significativo, que ao mesmo tempo compreende o sentido e o exprime. E não se perde os sentidos e nem a capacidade de expressão ao envelhecer, ao contrário, os mesmos estão mais aguçados e críticos, talvez por isso incomodem.

Como procurávamos indicar, o que Merleau-Ponty começa a delinear é a inseparabilidade entre o signo e a significação, o sentido e a sua realização efetiva.

Esse sentido, aproximado do campo corporal, não será mais compreendido como pensamento autônomo, que teria no máximo uma relação de representação com o símbolo, mas sim como uma modulação existencial, um misto entre o psíquico e o concreto. Nosso corpo será, assim, “(...) um conjunto de significações vividas que segue no sentido de seu equilíbrio”, [25] ou seja, ele é a encarnação de um “nó de significações”.

Essa intencionalidade, essa totalidade, se exprime, por exemplo, na percepção erótica, que não funciona como um cogitatio, mas sim “(...) através de um corpo, ela visa outro corpo, ela se forma num mundo e não numa consciência”. [26] Essa percepção tem uma significação sexual quando existe para o corpo, quando ele a compreende, realizando-se no plano da intersubjetividade.

A sexualidade manifesta-se corporalmente, não, portanto como um automatismo, mas ligada ao ser cognoscente e atuante, formando uma estrutura típica que engloba esses três setores em uma relação de expressão recíproca; ela é enfim uma intencionalidade, que segue o movimento geral da existência, particularizando-a e exprimindo-a em uma corrente específica, preservando, contudo seu caráter próprio.

O papel do corpo, nessa dimensão expressiva, pode ser percebido no caso da afasia, em que o doente perde a capacidade de falar; neste caso, mostra Merleau-Ponty tal perda se dá por uma “decisão” mais profunda que à vontade, uma recusa mais original e geral, que é tornada situação de fato. É justamente essa metamorfose de um significado em sua concreção que o corpo realiza: “Ele transforma as idéias em coisas, minha mímica do sono em sono efetivo. Se o corpo pode simbolizar a existência, é porque ele a realiza e é sua atualidade”. [27]

Dessa forma, afirma Merleau-Ponty, o corpo exprime a existência no mesmo sentido em que a fala exprime o pensamento, [28] realizando uma “(...) operação primordial de significação em que o exprimido não existe à parte da expressão, em que os símbolos eles próprios, induzem exteriormente o seu sentido. É desta maneira que o corpo exprime a existência total, não que ele seja seu acompanhamento exterior, mas porque ela se realiza nele.

Este sentido encarnado é o fenômeno central do qual corpo e espírito, símbolo e significação, são momentos abstratos”. [29] O corpo é, pois, a existência fixa, e a existência uma encarnação perpétua, de modo de que se um não se reduz ao outro, eles se pressupõe mutuamente. Não se trata de reduzir a existência ao corpo ou vice-versa, mas de reconhecer o movimento existencial como o meio equívoco no qual as diferentes ordens de fatos se comunicam, se encontram e tecem uma trama comum. [30]

Nessa perspectiva, o amor, o pudor e o desejo adquirem uma dimensão metafísica, na medida em que dizem respeito ao homem não como uma máquina natural, mas enquanto ele é também consciência e liberdade. Há sempre uma intenção, um sentido, constituindo seus atos; e é por isso que ao mostrar seu corpo, o homem oscila entre o pudor e o despudor, entre o expor-se ao outro e o atrair o outro – o que ocorre é uma relação entre corpos animados, conscientes e livres, e não entre feixes de instintos naturais.

A sexualidade, assim, se reporta à estrutura metafísica do corpo, enquanto abertura ao outro e operação dialética, constituindo-se como uma espécie de atmosfera ambígua, própria à existência. Ela manifesta o movimento mais geral do existir como retomada e transformação da situação de fato, enquanto “(...) operação mesma pela qual aquilo que não tinha sentido passa a tê-lo, aquilo que só tinha um sentido sexual toma uma significação mais geral (...)”. [31]

A visão de Ponty é bem diferente da sexualidade vivida nos tempos atuais. A mídia tem dado um espaço exagerado a sexualidade, romantizado demais as relações sexuais, esperando que ela seja uma válvula de escape infalível para as obsessões no campo do romance e da sensualidade.  Nas novelas em artigos da mídia contam-se preferencialmente histórias de desempenhos extraordinários. Existe uma ansiedade de alcançar um padrão delirante. Ignora-se uma combinação perversa de aspectos físicos, psicológicos e de estilo de vida que podem melhorar ou piorar o desempenho sexual.

No universo dos idosos a situação não é diferente, o estilo de vida que tiveram e têm levará a um melhor ou pior desempenho sexual. Perda de hormônios, o fumo e o álcool, doenças como diabetes, hipertensão e estresse, além do onipresente fator emocional, podem levar na dificuldade do ato sexual. Não estamos falando apenas dos idosos, mas da qualidade da relação e do interesse dos parceiros envolvidos na mesma. Não está se possuindo corpos, mas um corpo animado por uma consciência.

5. Análise da linguagem

É por essa sua função expressiva, de união entre o físico e o psíquico, encarnando e realizando o sentido, que o corpo será central na análise merleau-pontyana sobre a linguagem. O primeiro passo nessa análise é afastar as concepções tradicionais que trabalham, sobretudo com a idéia de “imagem verbal”.

Tanto na vertente mecanicista quanto na intelectualista, essas linhas concebem a fala como um fenômeno em terceira pessoa, separando as palavras da intenção de significar:

O sentido das palavras é considerado como dado com os estímulos ou com os estados de consciência que se trata de denominar (...) a fala não é uma ação, ela não manifesta possibilidades interiores do sujeito: o homem pode falar assim como a lâmpada elétrica pode tornar-se incandescente. [32]

Nos dois casos, o ponto central é de que a palavra não tem uma significação, uma eficácia própria, sendo concebida como simples invólucro vazio de um pensamento que se faz independentemente dela. O meio de ultrapassar ambas as correntes é, portanto, a afirmação “(...) de que a palavra tem um sentido”. [33]

O cerne da argumentação de Merleau-Ponty será mostrar que a fala não traduz um pensamento já feito, mas o realiza; o pensamento tende para a expressão como que para seu acabamento, só existindo na medida em que se dá para si, em que se faz efetivo pela linguagem. Do mesmo modo, aquele que escuta recebe o pensamento da própria fala, graças a um poder espontâneo que temos de compreender para além de nossos próprios pensamentos, pensando “segundo o outro”.

A relação intersubjetiva se apoia nessa capacidade do homem de se transcender, rumando para significações e pensamentos novos que lhe são propostos; na compreensão do outro, o problema é sempre indeterminado porque ele se configura a partir de uma relação aberta com a alteridade, já que nosso pensamento retoma o do outro e se faz também nele: “A comunicação ou a compreensão dos gestos se obtém pela reciprocidade de minhas intenções e dos gestos do outro, de meus gestos e das intenções legíveis na conduta do outro”. [34] Isso comprova, enfim, que a palavra traz sua significação, e justamente em uma dimensão anterior à do conceito, como uma espécie de significação gesticulatória, imanente à fala.

Dessa maneira, o pensamento não é uma representação, e nem o são as palavras que ele utiliza para manifestar-se. A linguagem e o pensamento se constituem enquanto ação, havendo entre eles uma profunda imbricação: “A fala e o pensamento só admitiriam essa relação exterior se eles fossem um e outro tematicamente dados: na verdade eles estão englobados um no outro, o sentido é tomado na palavra e a palavra é a existência exterior do sentido”. [35]

Assim, como já havíamos notado no corpo, o que se configura aqui é uma relação de imbricação e inseparabilidade entre o sentido e o signo, e é justamente por isso que o corpo será um lugar privilegiado para se pensar a linguagem e o fenômeno expressivo. A experiência expressiva realiza ou efetua a significação, fazendo com que o pensamento exista no mundo e nas palavras. O sentido está no próprio gesto lingüístico, e não em alguma instância separada à qual ele remeteria.

Essa significação que a linguagem realiza se constitui a partir de um solo de significações já dadas, disponíveis, tornadas aquisições culturais, e às quais Merleau-Ponty designará como fala falada; mas o sentido novo se constrói justamente dispondo dessas significações de um modo original, criando a partir do dado algo de inédito – constituindo a chamada fala falante. Assim, a expressão opera simultaneamente em dois registros: por um lado, dispondo do dado, do já expresso, daquilo que ela recebe por sua própria inserção no mundo; por outro, significando esse dado, dando-lhe uma forma própria e inédita, exercendo sua liberdade e sua transcendência.

Assim, a linguagem não é a manifestação exterior de um pensamento fechado em si mesmo, mas uma “(...) tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações”. [36] O corpo apreende os núcleos significativos que lhe são propostos, transfigurando suas próprias potencialidades naturais, o que se exprime pela aquisição de um comportamento e por sua decorrente expressão; há um descentramento e uma reorganização dos poderes do corpo nesse movimento pelo qual ele se transcende em direção ao novo e ao outro.

Sendo uma relação viva com o outro, a linguagem aparece como manifestação e revelação “(...) do ser íntimo e do laço psíquico que nos une ao mundo e aos nossos semelhantes”. [37] Pensando na palavra enquanto intenção significativa nascente, e, portanto como fala falante, nós a reconheceremos como o movimento pelo qual a existência se polariza em direção a certo sentido, que não é um dado, mas algo a ser criado, um não-ser, ou ainda um “(...) excesso de nossa existência no ser natural”. [38]

A análise da linguagem, portanto, permite entrever melhor a função do corpo, já que ele é justamente essa potência expressiva, esse movimento de retomada do dado e de sua realização ou encarnação em um sentido novo:

Ele não é um conjunto de partículas das quais cada uma permaneceria em si, ou ainda um entrelaçamento dos processos definidos uma vez por todas – ele não está onde está, ele não é o que é – pois o vemos secretar em si mesmo um ‘sentido’ que não lhe vem de nenhum lugar, projetá-lo em seu círculo material e comunicá-lo aos outros sujeitos encarnados. [39]

O corpo, enfim, torna-se ele próprio, a intenção ou o pensamento que ele significa, sendo ele próprio o sentido imanente ou nascente – eis seu funcionamento e seu mistério.

Esse corpo forma com o mundo um sistema, animando-o e sustentando-o interiormente. Tal relação no se reduz à expressão de uma circunstância psicológica, não significa um feixe de correlações objetivas; por outro lado, também não equivale a afirmar a significação presuntiva do objeto, abstraindo de sua experiência.

Mas, na verdade, trata-se de uma “(...) conexão viva comparável ou mais certamente idêntica àquela que existe entre as partes de meu próprio corpo”. [40] De modo que a percepção exterior e a do corpo próprio aparecem como duas faces de um mesmo dinamismo, revelando a profunda imbricação entre corpo e mundo.

Na terceira idade os corpos também estão presentes, preenchidos de toda a história daquela vida. Quanto mais idoso for aquele corpo, mais pensamentos, mais sentimentos e maior experiência ele terá. Ele é um documento de uma geração, documento esse que pode ser respeitado ou não, usufruído ou não, compartilhado ou não. Dependerá da valorização que o Estado, a sociedade, e a família lhe derem. O problema não é o corpo do velho, consiste sim a cultura de uma sociedade que, de alguma maneira, nega suas origens.

NOTAS

[1] MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 86.

[2] Se, num amputado, alguma estimulação substituir a de sua perna, no trajeto que vai do côto de perna ao cérebro, o sujeito sentirá uma perna fantasma, porque a alma está unida imediatamente ao cérebro e a ele só. Op. cit. p. 89. No caso do membro fantasma o sujeito passa a ignorar sua mutilação e conta com seu fantasma, como membro real. Op. cit. p. 94.

[3] Idem, p. 90.

[4] Idem, p. 94.

[5] Idem, p. 94.

[6] Op. cit. p. 96.

[7] Idem, p. 100-101.

[8] Idem, p. 98.

[9] Idem, p. 98.

[10] Idem, p. 113.

[11] Idem, p. 122.

[12] Idem, p. 101.

[13] Idem, p. 137.

[14] Idem, p. 138.

[15] Idem, p. 141.

[16] Idem, p. 151.

[17] Idem, p. 152.

[18] Idem, p. 153.

[19] Idem, p. 161.

[20] Idem, p. 147.

[21] Idem, p. 150.

[22] Idem, p. 155.

[23] Idem, p. 156.

[24] Idem, p. 157.

[25] Idem, p. 164.

[26] Idem, p. 167.

[27] Idem, p. 175.

[28] Idem, p. 177.

[29] Idem, p. 177.

[30] Idem, p. 177.

[31] Idem, p. 180.

[32] Idem, p. 185.

[33] Idem, p. 187.

[34] Idem, p. 195.

[35] Idem, p. 192.

[36] Idem, p. 203.

[37] Idem, p. 206.

[38] Idem, p. 207.

[39] Idem, p. 207.

[40] Idem, p. 212.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEAUVOIR, S. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

CITELLI, A. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2003. 15ª ed.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

*Devani Salomão de Moura Reis é jornalista e doutora em relações públicas pela ECA/USP.

   

Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]