Jornalismo
comunitário:
Importância,
conceitos e desafios contemporâneos
Por
Cleofe
Sequeira e Francisco Bicudo*
Uma
parte expressiva das nações
periféricas do capitalismo, após
quase três décadas de implantação
de profundas reformas associadas à
abertura e à integração
de suas economias ao mercado global, apresenta
aumento na concentração de
renda e na exclusão social de grandes
contingentes populacionais urbanos, com
o crescimento do desemprego e do trabalho
informal.
Conseqüentemente,
modificações radicais atingem
o modo de vida de boa parte dos cidadãos,
alterando comportamentos, relações
de emprego e rotinas de trabalho. Na tentativa
de se traçar o cenário da
sociedade contemporânea, pode-se acrescentar
a estes problemas a interferência
de uma mídia global sustentada por
corporações e transnacionais,
que valoriza e estimula padrões de
consumo que poucos podem ter, contribuindo
para estimular revolta e violência
nos bairros periféricos das grandes
metrópoles, o que tem mantido as
sociedades acuadas, diante do aumento da
criminalidade.
Por
outro lado, quando a esfera do econômico
supera a política, Estados e instituições
civis perdem legitimidade e capacidade de
mediar estas tensões, como ocorre
atualmente no Brasil, que convive com a
descontrolada criminalidade urbana.
Para
se encontrar explicações para
o atual contexto, pode-se lançar
mão das análises feitas pelo
teórico Gilberto Dupas, [1] para
quem o capitalismo atual convive com duas
dialéticas centrais: "concentração
versus fragmentação"
e "exclusão versus inclusão".
De
um lado, "a enorme escala de investimentos
necessários à liderança
tecnológica de produtos e processos
continuará forçando um processo
de concentração",
que habilitará apenas a um conjunto
restrito de centenas de empresas gigantes,
líderes das principais cadeias de
produção, decidir o que, como,
quando, quanto e onde produzir os bens e
os serviços (marcas e redes globais)
utilizados pela sociedade contemporânea.
"Ao mesmo tempo, elas estarão
competindo por redução de
preços e aumento da qualidade, em
um jogo feroz por market share e
acumulação".
Simultaneamente,
explica Dupas, este processo radical em
busca de eficiência e conquista de
mercados força a criação
de uma onda de fragmentação
- terceirizações, franquias
e informalização -, abrindo
espaço para uma grande quantidade
de empresas menores que alimentam a cadeia
produtiva central, com custos mais baixos.
A
outra contradição que alimenta
o capitalismo contemporâneo, segundo
Dupas, é a dialética "exclusão
versus inclusão". Diz o teórico
que, apesar do desemprego estrutural crescente,
isto é, a incapacidade progressiva
de geração de empregos formais
em quantidade ou qualidade adequadas,
"o
capitalismo atual tem garantido sua dinâmica,
também, porque a queda do preço
dos produtos globais incorpora continuamente
mercados (inclusão) que estavam
à margem do consumo por falta de
renda. É por isso que alguns dos
maiores crescimentos de várias
empresas globais de bens de consumo têm
sido registrados nos países periféricos
da Ásia e da América Latina,
onde se concentra grande parte do mercado
dos mais pobres".
Simultaneamente,
aqueles que não têm potencial
de consumo (que acaba por superar a idéia
de cidadania), acabam alijados do processo.
Dentro deste novo contexto criado pela globalização
é que se pretende refletir sobre
comunicação popular e a importância
dos movimentos sociais na conquista da cidadania.
Entretanto,
torna-se necessário, primeiro, redefinir
conceitos como desenvolvimento e participação,
dentro deste contexto globalizado. Jesús
Martín-Barbero, em suas reflexões
sobre o tema, deixa claro que "para
se redefinir o conceito de desenvolvimento,
é preciso, antes, centralizar a discussão
"no fundamental, nas questões
de fundo", ou seja, é preciso
que se analise as crises que transpassam
as sociedades latino-americanas em duas
direções: "a da economia
(globalizada), que tem absorvido há
décadas toda a dinâmica do
desenvolvimento social, e a da cultura,
pois só com esta conexão entre
desenvolvimento e cultura pode-se buscar
uma identidade cultural capaz de enfrentar
a globalização". [2]
O
cerne da questão para Barbero está
exatamente no desencontro, na falta de articulação
entre desenvolvimento e participação
popular. Ou seja, o desenvolvimento dos
países latino-americanos se processa
à margem dos sujeitos sociais e de
sua variedade cultural, quando, ao contrário,
o desenvolvimento deveria se processar em
termos de "aprimoramento da qualidade
de vida, da participação popular,
da democratização cultural
e da afirmação da soberania
nacional". [3]
Dentro
da mesma temática, as reflexões
da professora Cicília Peruzzo expõem,
de forma clara, a desarticulação
existente entre desenvolvimento e sociedade,
quando ela afirma que "o povo não
é convocado para participar no planejamento
ou na tomada de decisões de seu país,
ele só participa como contribuinte,
por meio do pagamento dos vários
impostos", que lhe são impingidos.
No projeto atual de desenvolvimento do país,
"o homem é excluído,
não participa do planejamento, nem
da tomada de decisões e não
é suficientemente informado",
ou seja, o homem se sujeita, abdica de seus
direitos e perde a cidadania. É alienado
do processo de desenvolvimento de seu país.
[4]
Para
se desenvolver melhor a reflexão
de Peruzzo sobre o processo de alienação
do povo brasileiro, pode-se recorrer a Marx,
[5] para quem a alienação,
que tem sua origem no processo de trabalho
capitalista, se reproduz também em
nível mais amplo, como no processo
de cessão de direitos, manifestado,
por exemplo, na participação
das decisões e na gestão delas
e no conjunto da sociedade. Para Marx, o
processo de alienação se desenvolve
em três fases: primeiro, na relação
do trabalhador com o produto do seu trabalho
como algo exterior a ele, como um objeto
estranho que o domina. O trabalhador não
dispõe do produto do seu trabalho:
fabrica o carro, mas não tem carro;
constrói o prédio, mas nele
não mora. Segundo, na relação
do trabalhador com sua própria atividade.
O
trabalho é exteriorizado dele porque
não trabalha para si, mas para outro,
porque no trabalho ele não se pertence,
mas pertence a outro, enquanto mercadoria.
Terceiro, a transformação
do caráter da espécie humana,
que, de atividade livre e consciente, passa
a ser atividade como meio de subsistência
física e individual. O homem se submete,
cede o produto do seu trabalho, cede a si
mesmo e cede o caráter de sua espécie,
o que enfraquece o desenvolvimento do homem
e da espécie humana.
Interpretando
as palavras de Marx, Peruzzo acrescenta
que "embora impregnado da alienação,
ou seja, envolto na cessão de si
mesmo e do caráter de sua espécie,
o homem vive carências (fome, perda
da saúde), mas vê a opulência
de alguns e outras contradições".
E é esta alienação,
diz a autora, que faz germinar, no trabalhador,
a sua negação à participação.
Assim, torna-se visível a não
participação da classe trabalhadora
na riqueza produzida pela sociedade. Entretanto,
como afirma Peruzzo em seus estudos sobre
movimentos populares, obstruídos
os canais tradicionais de participação,
o povo inventa outros e é dessa dinâmica
de superação da negação
que emergem os movimentos sociais.
São
movimentos dinâmicos, criativos, que
visam superar a passividade: é a
resistência popular, mesmo diante
da globalização. "Submetido
a um processo de pobreza, o povo se agrupa
para denunciar, resistir, pressionar e reivindicar
o acesso à riqueza através
de melhores condições de vida
e o direito de participação
política". É nos movimentos
sociais, que se espalham cada vez mais pelo
Brasil, que a classe subalterna se supera,
para praticar a cidadania. Os movimentos
sociais tornam-se, assim, a ponte para que
a resistência popular se consagre,
e a comunicação construída
e orquestrada pelas classes menos favorecidas
é um fator primordial.
Para
Brunner, [6] que pesquisa as relações
entre desenvolvimento, cultura e comunicação,
as barreiras começaram a ser quebradas,
na América Latina, no final dos anos
1970.
O
teórico enumera três fatos
determinantes que levaram às primeiras
conquistas alcançadas na área
da comunicação popular: primeiro,
a experiência por que passaram países
sob regimes autoritários, experiência
esta que levou à busca de espaços
alternativos, como núcleos de resistência
e oposição, para driblar a
censura e o arbítrio, e cita como
novos espaços as comunidades cristãs,
os movimentos populares e os grupos de direitos
humanos; segundo, de que mesmo o autoritarismo
mais brutal não se esgota nas medidas
de força, nem responde unicamente
aos interesses do capital, mas há
sempre o intento de trocar o sentido da
convivência social, modificando o
imaginário e os sistemas de símbolos.
E, terceiro, o fato de que a cultura, diante
da dinâmica da escolarização
e dos meios massivos, coloca-se no centro
do cenário político e social.
Para Brunner, portanto, estes fatos redefinem
tanto o sentido da cultura como o da política,
onde a problemática da comunicação
entra não somente a título
temático e quantitativo (interesses
econômicos que movem as empresas de
comunicação), como também
qualitativo. É no cruzamento dessas
linhas de renovação - a que
vem inscrever a questão cultural
no interior do político e a comunicação
no interior da cultura - "que aparece,
em toda sua especificidade, o desafio que
representa a indústria cultural".
Para
Brunner não faz sentido políticas
que prescindam do que se passa na cultura,
daquilo que se passa nas massas, na indústria
e nos meios massivos de comunicação.
"Não podem ser políticas
à parte, posto que aquilo que se
passa culturalmente com as massas é
fundamental para a democracia, se é
que democracia tem ainda algo que ver com
o povo".
Cotidiano
e consumo, sob novos prismas
Barbero
propõe uma nova relação
entre desenvolvimento e participação
a partir de mediações entre
cultura e política em dois âmbitos:
primeiro, o do cotidiano e o do consumo,
como espaços de atividade social
não meramente apolítica, nem
reprodutiva; segundo, o dos movimentos urbanos
como lugar de uma profunda transformação
da política e da cultura.
Na mesma linha de pensamento, Nestor Garcia
Canclini construiu uma análise integral
do consumo (saindo do terreno das pesquisas
de mercado e da compulsão consumista),
que é visto pelo teórico como
o conjunto dos processos sociais e de apropriação
dos produtos. Nesta afirmativa, Canclini
vai de encontro à reclassificação
de desenvolvimento dada por Barbero (que
redefine desenvolvimento, em termos de aprimoramento
da qualidade de vida e participação
popular). Para Canclini, o espaço
da reflexão sobre consumo é
o espaço das práticas cotidianas
enquanto lugar de interiorização
muda da desigualdade social:
"o
consumo não é somente reprodução
de forças, mas produção
de sentido; o lugar de uma luta não
se esgota na possessão de objetos,
mas passa ainda decisivamente pelos usos
que lhe dão forma social e nos
quais se inscrevem demandas e dispositivos
de ação, que provêm
das diferentes competências culturais".
[8]
Para
complementar a reflexão de Canclini,
pode-se utilizar a afirmação
de Barbero, quando este diz que a prova
de significação social desse
novo terreno que se abre, a partir da cotidianidade,
é a relevância política
que têm hoje os novos conflitos sociais,
contra as formas de poder que, discriminando
ou reprimindo, atravessam a vida cotidiana
e as lutas pela apropriação
de bens e serviços.
Afirma, ainda, que a articulação
entre cotidiano e consumo se faz clara nos
movimentos sociais urbanos. "O espaço
social é onde melhor se expressa
o sentido da dinâmica cultural, desde
o popular da forma aos processos coletivos
de comunicação, principalmente
com relação aos movimentos
que partem dos bairros". Pois é
a partir do quarteirão do bairro
que se vislumbra "o trajeto que atravessa
e enlaça hoje o campo da comunicação
com a história cultural e com o surgimento
de um senso novo no modo de articular política
e cultura".
Barbero
posiciona-se, claramente, no campo teórico,
quando afirma que a cultura política
feita nos bairros não é a
dos "trabalhadores", ou seja,
estes movimentos não têm a
visão de mundo questionadora dos
anarquistas ou socialistas, mas "uma
cultura mais reformista que olha a sociedade
como algo que poderia ser melhorado",
uma sociedade que, sem ser radicalmente
distinta da existente, pode chegar a ser
"melhor organizada, mais justa."
Donde
conclui-se que ele rejeita uma revolução
da classe trabalhadora visando a mudança
social, mas propõe uma "uma
organização mais justa"
na sociedade existente. Ele cita, ainda,
exemplificando sua tese, como palco desta
nova situação, a corrente
migratória que atinge as grandes
cidades latino-americanas, descaracterizando
as cidades em "sua geografia e sua
moral".
"As
situações de fato, ou seja,
invasões de terreno na periferia
para morar, e das ruas do centro para
fazer algo que permita sobreviver geram
novas fontes de direito reconhecidas ou
permitidas por um estado, por sua vez,
descaracterizado". [9]
Nas
situações vividas pelos imigrantes,
a solidariedade cria laços sociais
no novo meio, que são transformados
em centros, sociedades e núcleos,
que oferecem clima capaz de congregá-los
ao dar-lhes um mínimo de representação
frente às autoridades, frente ao
Estado. "São associações
que não se esgotam no bairro e que,
em muitos casos, articulam a percepção
e a solução dos problemas
do bairro a um projeto mais amplo e global".
Para o autor, a luta das populações
por habitação, serviços
de energia elétrica e de água,
transporte mínimo e saúde
"se inscrevem em uma realidade mais
integral, a da luta pela identidade cultural".
Para
o teórico, em uma sociedade tão
pouco institucionalizada, as associações
populares, desde organizações
até centros de educação
e comunicação, "vão
construindo um tecido social que vai desenvolvendo
uma institucionalidade nova, fortalecendo
a sociedade civil e, com isso, cria novas
relações sociais e de sujeitos
coletivos ativos na vida do país".
Diante
de um mercado de trabalho rotativo e provisório,
que dificulta a criação de
laços permanentes, é no bairro
que as classes populares podem estabelecer
solidariedade duradoura e personalizada.
"Nesse
espaço, ficar sem trabalho não
significa perder a identidade, isto é,
deixar de ser filho de fulano ou pai de
beltrano. E frente ao que sucede nos bairros
residenciais de classes altas e médias
altas, onde as relações
se estabelecem mais na base dos laços
profissionais do que de vizinhança,
pertencer ao bairro para as classes populares
significa poder ser reconhecido em qualquer
circunstância". [10]
O
bairro é, ainda, na visão
de Barbeiro, "o lugar de reconhecimento,
que põe à mostra a produção
simbólica dos setores populares da
cidade, não só na religiosidade
festiva, mas também na expressividade
estética". Pode-se considerar
boa mostra disso os grafites, as decorações
dos ônibus, o arremate das fachadas,
a cenografia das vitrines nos armazéns
populares, que expressam a arte popular
urbana não só nas periferias
da cidade, mas também, no caso de
São Paulo, no área central.
Outro exemplo da expressão estética
popular pode ser encontrado na música,
em processo de reelaboração,
que se torna referencialmente tão
política quanto os grafites.
Em
busca de conceitos
A
discussão sobre a importância
e o papel social que podem ser cumpridos
pelo jornalismo comunitário exige
também um esforço acadêmico
capaz de encontrar conceitos que possam
auxiliar na árdua tarefa de oferecer
elementos definidores do segmento e da prática.
É fundamental que saibamos, afinal,
de quem exatamente estamos falando, já
que, não raro, o jornalismo comunitário
acaba sendo confundido com o popular, o
de serviços, o ligado a movimentos
sociais, o alternativo, o de bairro.
De
certa forma, ele dialoga com todas essas
outras instâncias - mas, é
importante destacar, trilha também
caminhos próprios e específicos,
principalmente quando o contexto histórico
que se impõe hegemonicamente é
o da globalização neoliberal
e o das grandes corporações
midiáticas, como já vimos
acima. O que se pretende neste trabalho
é atualizar a discussão e
identificar algumas características
que possam ser consideradas marcadoras do
jornalismo comunitário, sem, no entanto,
apresentar como objetivo a imposição
de fórmulas engessadas ou definitivas.
Não é nossa intenção
sacar coelhos mágicos da cartola,
muito menos esgotar o assunto.
Nesse
esforço conceitual, contribuições
de grande valia são oferecidas por
três autores: Felipe Pena, José
Marques de Melo e Pedro Celso Campos. Para
o primeiro,
"O
jornalismo comunitário atende às
demandas da cidadania e serve como instrumento
de mobilização social. (...)
Outra característica importante
é o completo afastamento do ranço
etnocêntrico. O jornalista de um
veículo comunitário deve
enxergar com os olhos da comunidade. Mesmo
que já pertença a ela, deve
fazer um esforço no sentido de
verificar uma real apropriação
dos processos de mediação
pelo grupo". [11]
Em
obra recentemente lançada, Marques
de Melo complementa esse raciocínio
ao afirmar que
"(...)
uma imprensa só pode ser considerada
comunitária quando se estrutura
e funciona como meio de comunicação
autêntico de uma comunidade. Isto
significa dizer: produzido pela e para
a comunidade". [12]
Entrevistado
pelos autores deste trabalho, Campos afirma
que as novas tecnologias podem alterar os
rumos e a ação, mas não
têm o poder de eliminar os interesses
comunitários. Portanto, a comunicação
que dá vazão a essas demandas
continua a existir, como instrumento de
organização e de resistência,
impondo-se como garantia de espaço
e de voz para os excluídos.
"a
proximidade entre as pessoas é
a principal característica do meio
comunitário. As pessoas se conhecem
e se reconhecem (como dizia Paulo Freire)
nos seus problemas, angústias,
alegrias e ritos cotidianos. Essa reconhecibilidade
também exige uma linguagem referenciada
aos costumes do grupo social. É
uma linguagem coloquial, de fácil
entendimento, reconhecível em suas
gírias e modismos. Hoje, ou em
qualquer época, jornalismo comunitário
é uma atividade de comunicação
originada na comunidade, administrada
pela comunidade e dirigida à comunidade".
[13]
As
três referências teóricas
nos dão as pistas para identificar
pelo menos cinco características
marcadoras do jornalismo comunitário,
responsáveis por garantir ao segmento
personalidade, autenticidade e registros
muito nítidos de uma carga genética
("DNA") exclusiva:
a)
valorização da realidade
local;
b)
participação da comunidade
durante todo o processo de produção;
c)
consagração das idéias
da mobilização e da transformação;
d)
resgate de um viés pedagógico
e educativo;
e)
articulação com a produção
independente e de resistência. Vale
a pena pensar com um pouco mais de profundidade
sobre cada um dos itens.
No
jornalismo comunitário, o local é
quem dá as cartas - ou melhor, as
pautas. Ele assume com ênfase e sem
constrangimentos o fato de procurar dar
conta de uma área restrita e, nesse
sentido, e em comparação com
os chamados veículos da grande imprensa,
não se importa em ser pequeno, de
conversar com grupos limitados, em termos
quantitativos. Essa, aliás, é
vista como uma de suas grandes virtudes
qualitativas, pois o fato de aproximar-se
de seu público permite que dialogue
com ele mais com profundidade e intensidade.
Essa
relação de proximidade, embora
se manifeste essencialmente no plano geográfico
- assuntos que estão mais perto da
região onde vive a comunidade tendem
a ter prioridade no noticiário -,
pode também se revelar por meio daquilo
que chamamos de "proximidade por demandas
ou expectativas". Exemplificando: projetos
culturais e sociais desenvolvidos na comunidade
terão destaque nos veículos
por ela produzidos; o mesmo raciocínio
vale para cenários de violência
e exclusão, para problemas como o
desemprego e a falta de escolas ou de postos
de saúde. Aqui, prevalece a lógica
geográfica - e, sem dúvidas,
ela ocupa a maior parte do noticiário.
Na
outra ponta, no entanto, é aceitável
- e desejável - a publicação
de uma reportagem que discuta, por exemplo,
a nacionalização das reservas
de gás na Bolívia, desde que
se consiga estabelecer relações
claras entre o tema mais amplo e os impactos
específicos que terá sobre
aquela comunidade em particular (nesse caso,
o possível aumento do gás
de cozinha, por exemplo).
Dessa
forma, o geral funciona como força
de atração e estimula o debate,
que deve sempre estar focado nos desdobramentos,
conseqüências e repercussões
sobre o local. A narrativa precisa viabilizar
estratégias capazes de criar vínculos,
identidades e o sentimento do pertence,
permitindo que o público, ao travar
contato com a notícia de aspecto
mais amplo, possa afirmar "eu me reconheço
nessa notícia, ela faz parte de meu
cotidiano, ainda que não tenha acontecido
aqui onde moro".
"Uma
caracterização importante
é o acentuado uso didático,
diferindo bastante da concepção
usual que se tem de notícia, por
exemplo. O destaque aos assuntos é
dado em função da sua importância
para o grupo social, numa relação
direta com o cotidiano das pessoas. [14]
A grande mídia chega
para todo mundo, mas ela não tem
a mobilidade de chegar falando a linguagem
local, ela não sabe o nome das
pessoas, ela não conhece os costumes.
Ela apenas faz um recorte da realidade,
mas não dá conta de passar
toda a realidade com sua cor local. Só
o comunitário pode fazer isso,
porque está inserido fortemente
na comunidade". [15]
Em
relação ao processo de produção,
o jornalismo comunitário de certa
forma quebra a lógica que garante
aos pequenos e poderosos grupos o privilégio
da emissão, e às grandes massas
a tarefa da recepção. De forma
direta e participativa, ou por meio de conselhos
e de representantes, a comunidade tem o
dever e a prerrogativa de atuar durante
todo o fluxo produtivo, da discussão
das pautas à distribuição
ou veiculação das notícias,
responsabilizando-se inclusive por estimular
o debate sobre aquilo que já foi
feito, para que se possa apontar erros e
virtudes e melhorar em oportunidades seguintes.
O
público deixa de ser visto como mero
depositário de informações
escolhidas e traduzidas por um grupo de
iluminados e esclarecidos, e passa, democraticamente,
a ser encarado como cidadão protagonista,
ativo, pensante e atuante. A hierarquia
de certa forma se rompe, e o diálogo
se manifesta no sentido horizontal (COM)
e não na direção diagonal,
de cima para baixo (PARA). Efetiva-se de
forma mais significativa, portanto, o fenômeno
da COMunicação. O jogo do
"eu falo, vocês escutam"
é substituído pelo do "nós
falamos, nós escutamos".
As
ações são compartilhadas
- bem como as responsabilidades.
Como a participação das pessoas
comuns está garantida, o jornalismo
produzido passa a ser encarado como um patrimônio
da comunidade, estimulando mobilizações
e lutas coletivas capazes de produzir transformações.
Note-se:
não estamos falando de uma prática
sectária e seduzida por palanques
e holofotes, mas de discursos e narrativas
competentes o suficiente para estimular
a reflexão crítica sobre os
mais diversos assuntos, transformando informação
em conhecimento e garantindo ao cidadão
- e não ao consumidor - o direito
de ampliar seu repertório intelectual
e de participar com consistência dos
debates que se estabelecem na arena pública.
Trata-se de um jornalismo que se propõe
a dialogar e a formar a cidadania, para
que esta, ciente de seus direitos, possa
lutar por eles.
Para
evitar confusões ou incompreensões:
não encaramos ou imaginamos o jornalismo
como a única ferramenta capaz de
agir nesse sentido, uma espécie de
milagreiro salvador da pátria, de
dono absoluto das verdades, nem pretendemos
que a atividade deva se responsabilizar
por tentar preencher todas as lacunas de
formação das comunidades.
Mas
defendemos que a prática tem uma
função social importantíssima
a cumprir: democratizar a informação
e incentivar as ações da cidadania.
Ao realçar o seu valor de uso, em
detrimento do valor de troca (como em geral
agem as grandes empresas jornalísticas),
o jornalismo comunitário resgata
as origens modernas da profissão,
nascida justamente para romper os diques
de segredos da Idade Média, como
bem aponta Ciro Marcondes Filho, em "A
Saga dos Cães Perdidos".
Trata-se
de uma situação infelizmente
esquecida e/ou colocada de lado pelos conglomerados
midiáticos contemporâneos,
ávidos pelo lucro e pelo "furo".
Sem pretender inventar a roda, o comunitário
estreita seus laços de identidade
com a educação e, ao criar
espaços para que o conhecimento seja
socializado e compartilhado, contribui pedagogicamente
com a formação de sujeitos
críticos e livres, capazes de fazer
opções e de decidir seus destinos.
E esse conhecimento não é
estanque ou passivo - pelo contrário,
consagra-se como motivador e mobilizador,
como defendia Paulo Freire.
"É
possível considerar, em relação
ao tratamento dado à informação,
o desenho de um esquema que remeta o jornalismo
aos seus primórdios, quando seu
exercício tentava ser sinônimo
de justiça social. (...) O que
permite conceituar um veículo como
comunitário não é
sua capacidade de prestação
de serviço, e sim sua proposta
social, seu objetivo claro de mobilização
vinculado ao exercício da cidadania".
[16]
Finalmente,
o jornalismo comunitário pode ser
inscrito na galeria das práticas
alternativas, entendida aqui como uma ação
contra-hegemônica, como pretende Bernardo
Kucinski em "Jornalistas e Revolucionários".
Significa
dizer que abre espaço para temas
não costumeiramente tratados pela
grande imprensa (uma outra agenda pública
de discussões); significa ainda dizer
que, mesmo que os assuntos sejam também
abordados pelos chamados jornalões,
certamente receberão, dos veículos
comunitários, outros enfoques e tratamentos,
voltados para as demandas e realidades das
populações menos favorecidas
(um olhar "dos de baixo").
Cria-se,
assim, a resistência e o contraponto,
elementos de garantia da pluralidade, e
tão necessários em uma sociedade
que se pretende democrática. Como
reforça Campos, "a principal
virtude é dar voz a quem geralmente
não tem voz".
Para
finalizar essa breve busca conceitual, é
fundamental lembrar que, para o jornalista,
descortina-se, no segmento comunitário,
"a
função do comunicador social,
como profissional que pode estar habilitado
a trabalhar com esse novo desenho social.
Muito mais que um publicitário,
jornalista ou radialista, esse profissional
deve ser alertado para o seu papel de
agente social, aquele que primeiramente
é capaz de promover e de potencializar
a articulação comunitária,
seja via instituições (desde
prefeituras, órgãos municipais
e organismos não-governamentais)
ou por meio da evocação
de uma comunidade determinada. A função
desse profissional, considerado freqüentemente
como agente externo, é provocar
a participação". [17]
Os
desafios
Apesar
da existência das organizações
populares constituídas hoje no Brasil,
Peruzzo lembra que as classes subalternas
não têm ainda o seu projeto
de sociedade, "mas vislumbra-se que
este pode vir a ser construído".
Para ela, uma nova situação
vem sendo criada: por um lado, organizações
populares interferem, provocam mudanças
nas condições de vida das
classes subalternas (associações
de moradores, grupos de mulheres); por outro,
está sendo desenvolvida uma prática
participativa.
Nem
todas essas dimensões do participar
se dão em todas organizações
populares e ao mesmo tempo, nem de forma
cristalina. "Às vezes, apesar
de todo um processo decisório democrático,
certas atitudes de lideranças as
contradizem". Ela dá o exemplo,
que afirma ser comum nas periferias das
grandes cidades, das lideranças populares
que depois de muita discussão com
os moradores decidem agir sozinhas, procurando
diretores ou assessores das Prefeituras
para resolver os problemas locais, ao invés
de contar com a participação
de todo grupo. "O agir sozinho, além
de impedir a ação coletiva,
que é educadora (acesso a informações,
tomada de consciência, favorece a
organização, a mobilização),
contribui para o controle das informações,
podendo gerar processos de dependência
e até de cooptação".
Para
Peruzzo, a comunicação popular
participativa se desenvolve no conjunto
do processo de consciência, organização
e ação, de acordo com as necessidades
dos movimentos, respeitada sua própria
dinâmica. "A comunicação
popular deixa de se caracterizar simplesmente
como atividade fim, ou seja, informar e
mobilizar, e adquire características
também de atividade meio, isto é,
a produção e difusão
enquanto processo educativo e de criação
coletiva".
Isto porque implica o conhecimento de técnicas,
conhecimento dos fatos que ocorrem e suas
implicações, partilha do poder
de expressar o conteúdo, além
de toda uma metodologia de trabalho participativo,
entre vários outros aspectos. O fazer
um jornalzinho, por exemplo, desenvolve
o domínio de conhecimentos antes
reservados a uns poucos, ocorrendo, portanto,
a socialização de conhecimentos.
"Isto diz respeito a uma nova metodologia
da comunicação popular, que
tem como objetivo que o outro se torne independente".
Essas
são demonstrações de
que um novo projeto de sociedade pode estar
sendo gestado. Entretanto, os desafios são
muitos e dentre eles estes são os
três principais, na visão de
Peruzzo:
- primeiro,
o desafio de disseminar por todos os movimentos
sociais a prática participativa
da comunicação, que possibilita
um processo educativo, que poderá
desembocar na gestão dos grandes
meios de comunicação, cuja
socialização já é
defendida no conjunto da sociedade;
- o
segundo desafio é o transcender
da comunicação popular de
exclusiva da organização
tópica para outros movimentos sociais
e o conjunto da sociedade, construindo
assim a articulação e nova
hegemonia e
- terceiro,
que a prática participativa em
nível do micro, ou seja, nas organizações
populares, transcenda para o macro, para
que haja a participação
na gestão em nível municipal,
estadual e nacional de todas as coisas
que afetam a sociedade, da fábrica
ao sistema escolar e à sociedade
côo um todo.
"É
a prática nova da democracia
que gera novo homem e nova sociedade.
É o homem com o mundo e não
no mundo, no dizer de Paulo Freire.
O desenvolvimento comunitário
irá se constituindo no bojo da
gestação e da plenitude
de um novo projeto de sociedade: projeto
popular desalienante e superador da
divisão em classes". [18]
Que
assim seja.
Notas
[1]
DUPAS, Gilberto. Economia Global e Exclusão
Social. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2001, p. 142-148.
[2]
BARBERO, Jesus Martin. "A comunicação
no projeto de uma nova cultura política".
In: MELO, José Marques de. (Org.).
Comunicação na América
Latina - desenvolvimento e crise. Campinas:
Papirus, 1989, p. 83-98.
[3]
Ibidem, p. 88.
[4]
PERUZZO, Cicília Maria Krohling.
"Participação Popular:
dos 'fiscais de Sarney'aos movimentos sociais".
In: MELO, José Marques de. (Org.).
Comunicação na América
Latina - desenvolvimento e crise. Campinas:
Papirus, p. 131-138.
[5]
MARX, Karl. "Manuscritos econômicos
e filosóficos". In: FROMM, E.
Conceito marxista do homem. Rio de
Janeiro: Zahar, 1970. p. 93.
[6]
BRUNNER, José Joaquín. La
cultura como objeto de políticas.
Santiago: Flacso, 1985. p. 03-37.
[7]
CANCLINI, Nestor Garcia. "Gramsci com
Bourdieu: hegemonia, consumo y nuevas formas
de organización popular".
Nueva Sociedad, nº 71, p. 74.
[8]
Ibidem. p. 79.
[9]
Ibidem. p. 83-98.
[10]
Ibidem. p. 83-98.
[11]
PENA, Felipe. Teoria do Jornalismo.
São Paulo: Contexto, 2005. p. 185-187.
[12]
MELO, José Marques de. Teoria
do Jornalismo - identidades brasileiras.
São Paulo: Paulus, 2006. p. 126.
[13]
CAMPOS, Pedro Celso. Professor da Universidade
Estadual Paulista (Unesp), em entrevista
aos autores.
[14]
PAIVA, Raquel. O espírito comum
- comunidade, mídia e globalismo.
Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p. 139
[15]
CAMPOS, Pedro Celso. Professor da Universidade
Estadual Paulista (Unesp), em entrevista
aos autores.
[16]
PAIVA, Raquel. Op. Cit. p. 140
[17]
Idem. p. 143
[18]
Ibidem. p. 131-138.
Referências
bibliográficas
BARBERO,
J. M. "A Comunicação
no projeto de uma nova cultura política".
In: MELLO, J. M. (Org.). Comunicação
na América Latina - desenvolvimento
e crise. Campinas, SP: Papirus, 1989.
BRUNNER,
J. J. La cultura como objeto de políticas.
Santiago: Flacso, 1985.
CAMPOS,
P. C. Professor do curso de Jornalismo da
Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru).
Entrevista aos autores em: 20set2006. (Por
e-mail).
CANCLINI,
N. G. "Gramsci com Bourdieu: hegemonia,
consumo y nuevas formas de organización
popular". Nueva Sociedad, nº
71, s/d, p. 74.
DUPAS,
G. Economia Global e Exclusão
Social. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2001.
MARX,
K. "Manuscritos econômicos e
filosóficos". In: Fromm, E.
Conceito marxista do homem. Rio de
Janeiro: Zahar, 1970.
MELO,
J. M. Teoria do jornalismo - Identidades
brasileiras. São Paulo: Paulus,
2006.
PAIVA,
R. O espírito comum - comunidade,
mídia e globalismo. Rio de Janeiro:
Mauad, 2003.
PENA,
F. Teoria do jornalismo. São
Paulo: Contexto, 2005.
PERUZZO,
C. M. K. "Participação
Popular: dos 'fiscais de Sarney' aos movimentos
sociais". In: MELO, J. M. (Org.). Op.
Cit.
*Cleofe
Sequeira e Francisco Bicudo são pesquisadores
da Universidade Anhembi Morumbi.
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