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Dossiê

A história do jornal Correio Centro-Oeste:
O registro da memória sob a ótica da violência
Por Marilane Peixoto Nogueira*

Resumo

Este artigo reflete sobre a participação do jornalismo impresso na construção da história da mídia regional.

Reprodução

O jornal impresso apresenta, por meio de publicações, a visão recortada da realidade presente, tornando-se documento de valor histórico para a sociedade.

A idéia central é mostrar a relação existente entre memória e história no jornalismo regional. O texto questiona as possibilidades de uma sociedade se identificar ou não com os fatos mostrados no jornal impresso da região onde vive. O importante é discutir até que ponto a história construída pelo impresso local é o reflexo verdadeiro de um povo. O questionamento histórico se restringe, então, às publicações sobre o tema violência feitas pelo jornal "Correio Centro-Oeste", da cidade de Arcos, localizada no centro-oeste mineiro. Sob a ótica da violência, discute-se a construção da história da imprensa local e os obstáculos enfrentados pelo "Correio Centro-Oeste" em sua busca por valorizar o jornalismo interiorano desenvolvido em Arcos.

Palavras-chaves

Jornalismo Regional / História / Memória / Violência

O desejo de manter viva a lembrança de fatos cotidianos ou acontecimentos marcantes é algo comum ao homem, desde os tempos primitivos. Ao longo dos anos, técnicas comunicativas foram desenvolvidas com o intuito de contribuir para a perpetuação do tempo.

Juntamente com técnicas capazes de desenvolver a memória - inscrições em pedra, ferramentas, papiros, pergaminhos, entre outras - a linguagem atuou como instrumento de propagação das representações, proporcionando ao homem o papel de ator principal na construção da própria história.

As formas de rememorar fatos e de armazenar informações sofreram mudanças com o surgimento da escrita. Diferente do homem primitivo, que se sociabilizava e armazenava informações por meio de repetições, mitos e representações, o homem letrado foi capaz de reconstruir, de forma retrospectiva, o tempo da história. A memória apresenta-se disponível, catalogada e comparável: "o saber deixa de ser apenas aquilo que me é útil no dia-a-dia, o que me nutre e me constitui enquanto ser humano membro desta comunidade. Torna-se um objeto suscetível de análise e exame" (LÉVY, 1993).

A escrita foi encarada pelo homem como maneira única de se conservar lembranças, visto que "as palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem" (HALBWACHS, 1990, p. 80). Desse modo, tendo em vista a importância da narrativa escrita na construção da história de uma sociedade, não há como descartar o valor do jornalismo impresso como documento histórico, desde o surgimento da imprensa, no século XVIII.

O jornalismo transforma a realidade apreensível em relato. Apresenta-se como peça fundamental no registro de acontecimentos, o que lhe confere função histórica na sociedade. Para Tranquina (1999), o jornalismo é entendido como uma prática social, que estabelece relações com o mundo simbólico e com o mundo material dos indivíduos. Essa constituição de relações simbólicas e materiais acontece enquanto história e linguagem.

História porque são relações que se constituem a partir das exterioridades do jornalismo, e este se encontra inserido dentro do processo de produção, transformação e manutenção da sociedade tecnológica para a qual a informação virou mercadoria sofisticada e o jornalismo transformou-se em atividade industrial. Linguagem porque são relações que se constituem também a partir do modo de quem faz.

Portanto, o século XVIII é marcado pela necessidade de as pessoas registrarem a vida cotidiana, como forma de manter a memória viva. Assim, a memória jornalística e diplomática surge como "a entrada em cena da opinião pública, nacional e internacional, que constrói também a sua própria história" (Le Goff, 1994, p. 461).

A história construída pelas publicações nos impressos é feita através de uma visão recortada da realidade. Dentro da diversidade de fatos ocorridos diariamente, o jornalista é obrigado a fazer um recorte das informações que chegam à redação. Apesar de existir o interesse da empresa jornalística em publicar certas notícias, percebe-se que a escolha das matérias do dia é feita de acordo com o grau de importância para o público alvo.

Neste caso, a região onde o jornal se localiza é levada em conta no momento em que as notícias são selecionadas. O leitor tem o interesse de se manter informado sobre os fatos ocorridos na região ou cidade onde mora. Desse modo, a questão da memória presente nos impressos está diretamente relacionada com o meio social onde o indivíduo se encontra.

Para Halbwachs (1990), pertencer a um determinado grupo é condição primordial para o registro da memória, que é tratada pelo autor como um fenômeno de natureza social. A coletividade vai influir na formação da memória individual, que sofre mudanças conforme o lugar que o indivíduo ocupa, por ser um ponto de vista sobre a memória coletiva. Assim, cada sociedade recorta o espaço a seu modo, de forma a constituir um quadro fixo onde encerra e localiza suas lembranças.

O registro de acontecimentos em jornais impressos está diretamente relacionado com a necessidade do homem de se relacionar com o espaço onde vive. Por meio das notícias publicadas, o homem se reconhece como membro da sociedade referida. Somente a partir dessa identificação que o leitor será capaz de refletir e criticar sobre os problemas sociais que o rodeiam e, posteriormente, poderá contribuir para a construção de uma nova realidade. É através dessa participação pública que o homem se apresenta como ator principal da própria história.

Num estudo notável, Eliseu Verón analisou o modo como os media "constroem hoje o acontecimento". Muitas vezes, é preciso transcrever informações dadas pela mídia, mas "o discurso da informação para os novos media contém perigos cada vez maiores pela constituição de memória que é uma das bases da história" (LE GOFF, 1994, p. 142). O "acontecimento" em história - da história vivida e memorizada e da história científica fundamentada em documentos - é produto de uma construção que compromete o sentido histórico das sociedades e a validade de uma verdade histórica - base do trabalho histórico:

"Na medida em que as nossas decisões e as nossas lutas diárias são, no que é fundamental, determinadas pelo discurso da informação, torna-se claro que o que está em jogo é, nada menos, que o futuro da nossa sociedade. (...) E as solicitações dos media fizeram entrar a produção histórica no movimento da sociedade de consumo" (LE GOFF, 1994, P.143).

Esta discussão nos leva a refletir: afinal, o homem de hoje consegue se identificar com a realidade mostrada nos jornais impressos da região onde vive? Esse questionamento nos permite analisar, primeiramente, qual a relação estabelecida entre memória e história na construção do jornalismo regional.

A relação direta entre Memória e História

Podemos nos perguntar, num primeiro instante, se a memória seria realmente um elemento imprescindível para a construção da história do homem. Mas, logo chegaríamos a uma conclusão óbvia - o homem, desde sua origem, sente a necessidade de demarcar "territórios" que o caracterizam e que são importantes para o seu próprio reconhecimento como ser participante do meio onde se encontra.

A capacidade de rememorar fatos ocorridos se restringe, principalmente, ao registro da própria vida cotidiana. Porém, antes de se chegar a esse registro factual, como se poderia definir a memória? Para Le Goff (1994), a palavra memória apresenta diferentes conceitos no campo científico global. Segundo ele, em primeiro momento, a memória leva-nos a associá-la a um conjunto de funções psíquicas, que permitem ao homem atualizar informações passadas. Mas este conceito se torna mais abrangente se remetido à memória tal como ela surge nas ciências humanas. Atenta-se, assim, para a relação de interdependência existente entre os termos memória e história.

Falar de história é algo complicado, principalmente quando se procura achar um conceito que a defina. Algumas problemáticas surgem quando se indaga qual o sentido do termo. A história começou como um relato, a narração daquele que pode dizer "Eu vi, senti. Este aspecto da história-relato, da história-testemunho, jamais deixou de estar presente no desenvolvimento da ciência histórica. Paradoxalmente, hoje se assiste à crítica deste tipo de história pela vontade de colocar a explicação no lugar da narração, mas também, ao mesmo tempo, presencia-se o renascimento da história-testemunho através do "retorno do evento" ligado aos novos media, ao surgimento de jornalistas entre os historiadores e ao desenvolvimento da "história imediata". (LE GOFF, 1994, p. 9).

Devido à sua natureza social, a história apresenta relação direta com os termos tempo, espaço e passado. Para Le Goff, o tempo histórico encontra hoje, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta. Diz ele:

"Penso que a história é bem a ciência do passado, com a condição de saber que este passado se torna objeto da história por uma reconstrução incessantemente reposta em causa. (...) A história recolhe sistematicamente, classificando e agrupando os fatos passados, em função das suas necessidades atuais. É em função da vida que ela interroga a morte. Organizar o passado em função do presente: assim se poderia definir a função social da história" (LE GOFF, 1994, p. 26).

A duração da memória coletiva depende e limita-se à duração do grupo.

Desse modo, todas as lembranças nascidas no interior da classe se apóiam uma sobre a outra, e não em recordações exteriores. Por isso, a memória individual mantém-se intrínseca à coletividade. Pode-se dizer que, as pessoas nunca estão sozinhas, pois há realidade social ao redor delas.

Desse modo, as lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos" (HALBWACHS, 1994).

É preciso, porém, que haja uma distinção entre memória individual e coletiva na construção da história. Apesar de ambos se inter-relacionarem, é necessário que se estabeleçam suas diferenças nesse processo construtivo. Para isso, Halbwachs estabelece a distinção entre duas memórias - a autobiográfica e a histórica. Segundo ele, a primeira se apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral.

Para ele, a memória de nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais contínuo e mais denso, enquanto que a histórica não nos representaria o passado senão sob uma forma resumida e esquemática. Mas, a memória coletiva não se confunde com a histórica. Esta, sem dúvida, é a compilação dos fatos que ocuparam o maior espaço na memória dos homens.

Os acontecimentos passados são escolhidos, aproximados e classificados conforme as necessidades ou regras do grupo social.

A história, quando deseja tratar dos detalhes dos fatos, torna-se erudita e a erudição é condição de apenas uma minoria. Para Halbwachs, se a história se limita, ao contrário, a conservar a imagem do passado, ela apenas retém da memória coletiva aquilo que ainda interessa às sociedades, isto é, em resumo, bem pouca coisa. A memória coletiva se distingue da história pelo menos sob dois aspectos. É uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, já que retém do passado somente, aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. Por definição, ela não ultrapassa os limites deste grupo.

Contudo, a memória sofreu metamorfoses no decorrer da história da humanidade. Mas é com o surgimento da imprensa que ocorre uma revolução, embora lenta, na memória do Ocidente.

Essa transformação pode ser observada na passagem de Leroi-Gourhan:

"Até o aparecimento da imprensa... dificilmente se distingue entre a transmissão oral e a transmissão escrita. A massa do conhecido está mergulhada nas práticas orais e nas técnicas; a área culminante do saber, com um quadro imutável desde a Antigüidade, é fixada no manuscrito para ser aprendida de cor... Com o impresso... não só o leitor é colocado em presença de uma memória coletiva enorme, cuja matéria não é mais capaz de fixar integralmente, mas é freqüentemente colocado em situação de explorar textos novos. Assiste-se então à exteriorização progressiva da memória individual; é do exterior que se faz o trabalho de orientação que está escrito no escrito" (1964-65. pp. 69-70).

Enfim, é nesse momento que se insere a importância do jornalismo como documento histórico. Porém, este estudo vai fazer um recorte da prática jornalística, restringindo-se ao valor do jornalismo regional para a construção da história midiática.

Jornalismo Regional e sua ativa participação na história da imprensa

A vontade de estar próximo aos acontecimentos e de ter acesso às informações referentes ao espaço onde vivem é uma constante entre as pessoas. Não importa, neste caso, a posição geográfica em que elas se encontram em relação à cidade ou região de origem. O importante é ser capaz de participar de forma direta ou indireta do desenrolar dos fatos cotidianos desse local. E foi com esse intuito que empresas jornalísticas se instalaram nos interiores do país, principalmente as de jornais impressos.

Mais do que aproximar os leitores à realidade cotidiana, os jornais de interior assumem a responsabilidade de propagar informações para além-fronteiras, contribuindo também para maior aproximação entre a população e os órgãos governamentais. Porém, o jornalismo regional luta intensamente para mostrar o seu valor social e histórico, diante do poder monopolista exercido pelas empresas jornalísticas dos grandes centros.

Muito se discute a questão do jornalismo regional e a necessidade de jornalistas e editores reconhecerem as multiplicidades culturais existentes no Brasil. Mas, valorizar culturas alheias é prática comum dentro das redações. Estas culturas alheias, neste caso, não dizem respeito a costumes trazidos de outros países. A imposição de diferentes culturas ocorre entre cidades e regiões brasileiras.

Esse problema nos leva ao seguinte questionamento: se o jornalismo regional é considerado uma atividade de importância social e histórica o que o difere do jornalismo exercido no eixo Rio-São Paulo? Para o jornalista Wilson Marini [1] (1997), o que diferencia as duas atividades é o prestígio. Uns são conhecidos nacionalmente e o que publicam repercute até no exterior.

Outros têm o espectro limitado à sua área de circulação. Além disso, o fácil acesso aos grandes jornais fora da sua área principal de circulação é outro ponto que supervaloriza o jornalismo dos grandes centros. Em relação aos jornais interioranos, é difícil encontrá-los fora do seu eixo de influência. Porém, a existência dessa concentração da mídia não tira o mérito dos jornais de interior como importantes prestadores de serviço à população local.

A atividade jornalística regional abre debate para diferentes questões relacionadas à sua atuação. Uma delas diz respeito à sua própria definição. Não há como convencionar um conceito para o termo jornalismo regional, frente à complexidade da atividade e às diferentes visões que podem ser atribuídas a ela. Hoje, o jornalismo regional não pode ser definido somente como uma atividade comunicacional direcionada a um público específico de uma determinada localidade.

Jornais de repercussão nacional e mundial podem ser enquadrados no perfil regional. O fato de ser encontrado em diversas localidades fora de sua área específica não o caracteriza como nacional, pois esse fato se deve exclusivamente à sua maior circulação pelo país. Desse modo, jornais como Globo, Folha, Estado e Zero Hora apresentam-se como meros veículos regionais. Para o jornalista Wilson Marini (2003), [1] o jornalismo é necessariamente regional.

"No sentido informativo e de circulação, é impensável nos paradigmas atuais a existência de um jornal rigorosamente nacional, quanto mais, utopicamente, continental ou mundial. O fator diferencial entre todos os jornais é o tamanho do mercado em que atuam, associado ao investimento da empresa jornalística" (MARINI, 2003).

Cria-se, a partir dessa discussão, uma dúvida sobre o que pode ser considerado regional ou nacional na mídia. Porém, não há como chegar a uma resposta definitiva para essa questão.

O importante é que os veículos de comunicação, em especial os impressos, saibam aproveitar o espaço onde se encontram, oferecendo à população um produto jornalístico ético e de qualidade, que atue como um "espelho" refletor da realidade com a qual o leitor se identifica.

O jornalismo regional vive um momento de expansão e aperfeiçoamento das técnicas em diversas áreas do Brasil. Algumas já mostram um progresso mais expressivo, outras ainda caminham em busca deste crescimento. Valorizar a produção regional é visto como uma maneira de propagar a própria cultura nacional, possibilitando uma democracia viva e participativa. Porém, sabe-se que estas transformações significativas ocorrem lentamente.

Ainda é comum aos impressos do interior espelharem-se nos grandes jornais. Estes são tidos como referência de qualidade e de exemplo a ser seguido. Esse desejo de "tentar igualar-se à cara dos bem-sucedidos foi identificada por Alberto Dines como um fenômeno de 'mimetismo'" (Marini, 2003).

Entretanto, os jornais de interior, cada vez mais, sentem a necessidade de mostrar seu diferencial em coberturas jornalísticas. O excessivo fluxo informacional existente na mídia faz com que os grandes jornais publiquem exclusivamente notícias de repercussão nacional. O interior ganha espaço nestes jornais somente quando são "palco" de catástrofes e fatos inusitados. Então, é neste ponto que o impresso regional se distingue na atividade jornalística.

A ele é dada a possibilidade de publicar notícias diferenciadas das presentes em outros veículos. E é esse diferencial que caracteriza esse jornalismo interiorano. Como os grandes jornais não voltam o olhar para os acontecimentos cotidianos do interior, resta então aos veículos locais publicá-los. Desse modo, não é necessário que se faça jornalismo regional com base nos jornais de capital. Ao contrário do que se pensa, é no interior que surgem, muitas vezes, grandes pautas jornalísticas que, posteriormente, ganham repercussão nacional. O jornalismo regional tem vida própria e é ela que possibilita a construção da identidade e da história de um povo.

Mesmo dando prioridade a assuntos locais, o jornalismo regional também precisa ter uma visão global dos acontecimentos. Destinar-se a um público de uma área específica não impossibilita esses jornais de aprofundar os assuntos pautados.

"Notícia local, para esses jornais, deveria ser não apenas aquela que tem origem nos limites do município onde é produzido, mas também aquela que chega e desperta interesse no público, não importando onde e quando tenha sido gerada. E se não chega, deveria chegar, pois esse é justamente o papel dos jornais: dar acesso ao que está oculto e ao que é relevante tornar conhecido" (MARINI, 2003).

A escolha do que publicar nos impressos regionais sofre interferências políticas por parte dos donos. Esse empecilho compromete a construção da história local, pois há um recorte significativo da realidade. Também a instabilidade dos veículos de comunicação no interior, seja na periodicidade ou no tempo de exercício, dificulta o trabalho de resgate da memória da sociedade. Almeida (1983) retrata esse problema ao afirmar que:

"(...) a imprensa interiorana se apresenta com uma história dinâmica, um abre-fecha constante de jornais. Sempre, porém, prestando às comunidades um serviço inestimável, de tal modo que não se pode menosprezá-la, ainda quando ela não dá sinais de ter evoluído técnica e profissionalmente" (ALMEIDA, 1983, p. 15).

Portanto, o recorte dos fatos pelos veículos impressos regionais provoca a construção de uma realidade falseada. As pessoas que vivem naquela área de circulação passam, então, a não se identificar com aquilo que é publicado pelos jornais. A própria mídia passa a se tornar cúmplice do silêncio. Em troca, há interesses políticos, econômicos e culturais em jogo.

Assim, o direito à informação é violado pela própria imprensa. Neste caso, essa violação pode ser encarada como uma violência contra a sociedade.

Partindo desse pressuposto, este estudo se dirige ao enfoque da história da imprensa regional limitando-se à cidade de Arcos, localizada no centro-oeste mineiro. Tendo como base a importância da memória jornalística na construção de história local, este artigo apresenta uma análise desse assunto, a partir das publicações relacionadas à violência no jornal "Correio Centro-Oeste".

Jornal Correio Centro-Oeste e os registros sobre violência

O Jornal "Correio Centro-Oeste" circula em Arcos e cidades vizinhas do centro-oeste mineiro há 15 anos. Fundado em julho de 1989, o jornal surgiu do sonho de seus idealizadores de criar um veículo semanal. Inicialmente, ele circulou apenas como informativo comercial, trazendo anúncios e classificados. Após algum tempo, começou a publicar matérias de cunho informativo.

O "Correio" se destaca na história da imprensa local por ser o primeiro órgão a alcançar 500 edições. Com o objetivo de aprimorar a prática jornalística, o jornal sofreu algumas mudanças editoriais e estéticas no decorrer dos anos. Desde sua criação, o "Correio" teve periodicidade semanal. Apresentava 40 páginas, que incluíam o caderno Geral, destinado a notícias não factuais. As edições eram publicadas todos os domingos. Mas, a partir do primeiro semestre de 2004, o jornal passou a ser bissemanal. O número de páginas pode variar de 18 a 24 páginas e as edições saem todas as quintas-feiras e aos domingos. Atualmente, o "Correio" traz as editorias de política, esporte, cidade, saúde, economia, polícia, informática, opinião e entretenimento, além do suplemento infantil.

Apesar de ser o primeiro jornal com uma tiragem mais expressiva, o "Correio" faz parte da história de uma cidade que tem 89 anos de jornalismo impresso. A cidade de Arcos, localizada a 206 Km de Belo Horizonte, teve como primeiro veículo de comunicação o jornal o "Implicante", criado em 1915 pelo professor Francisco Fernandes. A partir de então, diversos jornais surgiram e desapareceram ao longo dos anos.

Porém, independentemente do tempo de circulação e da linha editorial, estes veículos contribuíram de forma significativa para o registro da memória de Arcos e região.

O trabalho de importância social e histórica realizado pelo "Correio Centro-Oeste" não impede que façamos questionamentos sobre o conteúdo dos registros publicados. Neste caso específico, o estudo de restringe às matérias sobre violência publicadas no período de 4 de novembro a 1º de dezembro de 2004.

O tema violência se torna pertinente ao estudo por fazer parte da vida cotidiana das pessoas, atualmente. A violência deixa de estar presente somente nos grandes centros e passa a se tornar comum também nas cidades interioranas. Esse fato se deve a várias questões políticas, sociais e econômicas de nosso país. Mas, o termo violência não pode relacionado somente a ações ligadas à força física.

Assim, é possível afirmar que a compreensão da violência é complexa, porque sendo um produto de sociedades ela muda de fisionomia e de escala de acordo com as mudanças dos aspectos da vida social. Nesses termos, coloca-se como impossível conceber e aprender a violência independentemente de critérios e pontos de vista (DIAS, 1996, p. 99).

Porém, estes critérios não devem se restringir à visão subjetiva de um ou dois indivíduos, principalmente em se tratando de uma matéria jornalística. Por ser um problema social, as reflexões sobre violência devem abranger a diferentes pontos de vistas.

Definir o termo violência, portanto, passa a ser uma tarefa difícil. Segundo Dias (1996), o direito liga a palavra violência à idéia de uma força, de uma potência cujo exercício contra uma coisa ou contra alguém torna o caráter violento. Na tentativa de precisar um dado caracterizador da violência, também é proposto considerar o termo como uma forma de privação. Com efeito, toda vez que o indivíduo sentir-se despojado, destituído, ou seja, privado de algo a que tem direito, um ato de violência estará sendo consumado (DIAS, 1996, p. 101)

A apreciação da violência deve acontecer nos limites do seu contexto social. Por isso, ela pode ser observada sob a ótica do poder. Nesse ponto, o termo violência nunca é avaliado de forma neutra, porque se prende a valores políticos, econômicos, sociais e culturais aos quais as pessoas se distinguem e se opõem.

A partir da análise feita nas edições do jornal "Correio Centro-Oeste", pode-se observar a presença de matérias sobre o tema violência em seis edições das sete analisadas, durante o período determinado. Todas as matérias estavam relacionadas à violência social, como assaltos, homicídios e roubos. Porém, o estudo preocupou-se em analisar a forma como se faz o registro desses fatos no veículo local. Isso permite uma visão mais ampla sobre a forma como a história da cidade está sendo construída pela imprensa escrita.

Num primeiro instante, podemos nos perguntar o porquê da escolha dessas matérias pelo jornal. O fato de Arcos ser uma cidade de aproximadamente 35 mil habitantes nos permite deduzir que diferentes fatos relacionados à violência ocorrem durante a semana. Então, que critérios são usados para se definir o grau de importância dos acontecimentos? Nas edições analisadas contam-se seis publicações envolvendo o tema escolhido. Há, portanto, um recorte da realidade social presenciada pelos moradores da cidade. Esse fato coloca em dúvida o reconhecimento dessas pessoas como membros desta sociedade.

O papel da imprensa em informar o leitor sobre a realidade que o cerca, muitas vezes, é colocado em discussão. Para Marini (1997), a imprensa regional prende-se às suas limitações técnicas e de produção na cobertura das matérias.

"(...) a imprensa regional, mais do que os jornalões, é limitada por seus parcos recursos de produção, se atrela muito mais facilmente aos poderosos de plantão e o resultado é que, na maioria dos casos, temos boletins e não, como seria fundamental, jornais de militância investigativa. (Há as exceções, é claro, há as exceções!)" (Marini, 1997).

Essa limitação técnica pode ser notada nas edições analisadas, pois não há um aprofundamento do tema. Os fatos são contados a partir de uma visão também limitada.

Embora o jornal consiga informar os acontecimentos à população, os registros não vão além dos boletins de ocorrência feitos pela Polícia Militar da cidade. Nota-se, então, a negligência do veículo em exercer a pratica jornalística investigativa.

A concentração de relatos limitados também pode ser colocada como um fator prejudicial na construção da memória local. Assim, esse recorte restrito da realidade impede que o leitor enxergue o seu mundo conforme ele se apresenta realmente. Esse poder da mídia em conduzir o leitor a uma interpretação desejada é tratada por Dias (1996) como uma conseqüência do discurso da notícia.

O fato real tem seu valor em função de uma atenção e compreensão especial e de uma representação ideologicamente determinada, primeiro nas mentes dos agentes de notícias ou das fontes de notícias e, então, realmente formulado em possíveis histórias, depois de uma interpretação similarmente ideológica e da representação pelo jornalista (DIAS, 1996, p. 105).

Partindo do estudo de Dias (1996) sobre o discurso da violência, pode-se afirmar que verdadeiras retóricas agem na produção e na recepção de notícias. Esse discurso se insere dentro de um contexto histórico urbano e se destina a um leitor acostumado a esses "modelos noticiosos" e à forma como lhe são apresentados. Também o leitor vai construir na memória o "modelo" de situação que vai lhe conduzir a uma compreensão dos fatos lidos. Por isso, pode-se dizer que os processos de construção e leitura das notícias não podem ser considerados "inocentes".

Na construção do processo histórico de uma cidade ou região também podemos fazer uma "leitura" da ausência de registros. A edição nº 795, dos dias 28 de novembro a 1º de dezembro, não traz nenhuma matéria policial. Neste caso, o leitor pode pensar que não aconteceu nenhum crime na cidade, durante este período. Porém, sabe-se que isso é praticamente impossível, principalmente se levado em conta o número de habitantes do local. Assim, o silêncio também é um elemento passível de ser encontrado no processo de construção histórica de uma cidade ou região. A realidade passa a fazer parte do não-lugar, sendo preciso aguçar a visão crítica para encontrá-la ou percebê-la.

Portanto, a participação da imprensa na construção da história do jornalismo regional encontra obstáculos políticos, econômicos, sociais e culturais no processo de documentação dos fatos. Essa conclusão também é direcionada ao papel do jornal "Correio Centro-Oeste" como participante ativo na imprensa de Arcos. A mídia regional se encontra num processo de transformação e aperfeiçoamento da atividade jornalística.

Atualmente, já existe uma luta por parte das empresas para se destacarem no exercício do jornalismo regional, mostrando o seu diferencial na cobertura de pautas que fogem da mesmice publicada pelos grandes jornais. Com o surgimento de novas tecnologias, principalmente a Internet, o jornalismo regional ganha "nova cara", pois tem a capacidade de ir além de acontecimentos locais, mas atentando-se sempre à importância das notícias para o público alvo. Assim hoje, o local tem possibilidade de se projetar em uma perspectiva global.

Em meio a tantas transformações, o registro da memória histórica também sofre mudanças.

No caso específico da cidade de Arcos, o jornal "Correio Centro-Oeste" passa a ser agente construtor da memória local ao publicar fatos com periodicidade constante. Apesar de falhas encontradas no registro dos acontecimentos, em especial os relacionados com o tema violência, não há como estimar o valor do serviço prestado pelo jornal "Correio Centro-Oeste" à população de Arcos e região.

O que se pode afirmar é que o processo de registro histórico realizado pelo jornalismo regional se mantém constante, procurando a cada dia aperfeiçoar suas técnicas. Com relação às pessoas, nota-se, muitas vezes, a falta de participação ativa na construção de sua própria história. É preciso que se crie a consciência de que valorizar a cultura e a história regional é uma ação de importância nacional, pois fazemos parte de um país de múltiplas identidades. E é nesse ponto que o jornalismo regional vai interferir de forma significativa, contribuindo para a perpetuação da história de sociedades tão distintas.

Referência Bibliográfica

ALMEIDA, Gastão Tomás de. Imprensa do interior: um estudo preliminar. SP: Imprensa Oficial do Estado. 1983, 59 p.

DIAS, Ana Rosa F. O discurso da violência: as marcas da oralidade no jornalismo popular. São Paulo: EDUC/Cortez, 1996, 177 p.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2ª ed, São Paulo: Vértice, 1990, 189 p.

LE GOFF. Jacques. História e memória. 3ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994, 553 p.

PIERRE, Lévy. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, 208 p.

TRANQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e estória. Lisboa: Vega, 1993.

Endereços eletrônicos

BARRETO, Gustavo. Jornalismo Regional. Disponível em (http://www.consciencia.net/2004/mes/03/barreto-regional.html). Acesso em 4 out 2004.

CORREIA, João Carlos. Jornalismo regional e cidadania. Disponível em (http://bocc.ubi.pt). Acesso em 04 out 2004.

MARINI, Wilson. Agilidade no interior. 1997. Disponível em (http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/mat2009e.htm). Acesso em 03 set 2004.

_______________. Somos todos regionais. 2003. Disponível em (http://www.anj.org.br/webc/webs/anj/jornal_anj/detalhes.cfm?id_web=53&id_noticia=323). Acesso em 15 dez 2004.

Notas

[1] Wilson Marini, jornalista, ex-editor-chefe do Correio Popular e do Diário do Povo, de Campinas, é consultor para redações de jornais e editor do Fax Regional, boletim com notícias dos jornais de prestígio regional.


*Marilane Peixoto Nogueira é aluna de graduação em jornalismo da PUC/Minas, em Arcos/MG.

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