O
percurso jornalístico de Manuel
Carlos Chaparro, da práxis à teoria
1
Por
José Marques de Melo* 2
A
homenagem que a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares
da Comunicação - INTERCOM - presta ao nosso
ex-presidente Manuel Carlos Chaparro constitui um ato
duplamente significativo.
Primeiro,
pela celebração pública dos seus
bens vividos 70 anos, recentemente comemorados por amigos.
e familiares, bem na véspera das suas bodas de
ouro como jornalista, pois o batismo na profissão
ele o recebeu em 1955 ao trabalhar na reportagem do jornal
português "Juventude Operária".
Segundo,
pelo gesto de reconhecimento institucional aos serviços
prestados por um dos seus dirigentes mais comprometidos
com a interação crítica entre academia,
mercado e sociedade, num período "dramaticamente
marcado pela escassez de recursos financeiros", como
ele próprio definiu. Sua gestão se destacou
por três "intervenções"
simultâneas:
a)
A reforma gráfica e editorial da Revista Brasileira
de Ciências da Comunicação;
b)
a definição de um perfil científico
para os congressos anuais;
c)
a criação dos Grupos de Estudos como estratégia
de identidade e crescimento da instituição.
3
Mesmo
correndo o risco de ser repetitivo, em face das exposições
precedentes, não posso deixar de incluir neste
depoimento alguns registros sobre as nossas convergências
intelectuais, antes de esboçar o seu pensamento
jornalístico, tarefa que a qual fui designado especialmente.
Conheci
Chaparro na cidade do Recife, na conjuntura tumultuada
do pós-64, quando a nossa geração
lutava para sobreviver ao torvelinho das perseguições
movidas contra os intelectuais pelos golpistas que empalmaram
o poder nacional. 4
Na verdade, eu só tivera conhecimento do mito Chaparro.
Pois ele chegava à SUDENE - Superintendência
do Desenvolvimento do Nordeste -, como assessor de imprensa,
respaldado pela aura de múltiplo detentor do Prêmio
Esso de Jornalismo. Sua fama de renovador do jornal "A
Ordem" de Natal corria solta pela categoria,
logo suplantada pela ousadia de normatizar e moralizar
as relações entre o jornalismo e o serviço
público, quando institucionalizou a assessoria
de imprensa da SUDENE. Por isso mesmo ele se viu compungido
a migrar para São Paulo, como fizemos eu e tantos
outros jornalistas naqueles anos sombrios.
Voltei
a encontrar Chaparro em São Paulo, em 1967, na
"Folha de S.Paulo". Ele fazia parte do
trio de "cabras da peste" ou "papas-gerimun",
de que também faziam parte Calazans Fernandes e
Gaudêncio Torquato, responsável pela implantação
do Departamento de Suplementos Especiais da Folha, iniciando
a revolução modernizadora daquele jornal
paulista.
Foi
nessa ocasião que descortinei o arguto pensador
do jornalismo, refletindo criticamente sobre a profissão,
mas sem deixar de ter os pés na terra. Ele buscava
soluções pragmaticamente exeqüíveis
para superar os impasses com se defrontava na reportagem
ou na edição.
Como
modesto pesquisador que contribuía para aquele
empreendimento editorial, manejando as ferramentas do
jornalismo comparado, 5 senti-me estimulado,
em várias ocasiões, pelas teses instigantes,
então lançadas por Chaparro, duelando com
os outros ases da equipe, Calazans e Gaudêncio.
O
capital intelectual acumulado e o reconhecimento profissional
ali obtido foram suficientes para que a dupla Chaparro
- Torquato buscasse novos rumos. Aliando-se a Luiz Carrion
e a Regina Célia Tassitano, eles passaram a formar
o quarteto responsável pela primeira empresa prestadora
de serviços na área de jornalismo empresarial,
cujo diferencial era a produção de conhecimento
empírico sobre os objetos manufaturados cotidianamente.
A PROAL erigiu-se ao mesmo tempo como "fábrica
de jornais", "centro de pesquisas" e "agência
difusora de inovações".
Cérebro
estratégico dessa arrojada iniciativa, Chaparro
comandava a equipe de jovens jornalistas ali reunida para
produzir house organs com sotaque brasileiro, compartilhando
com seus colegas dirigentes as metas operacionais. Empresas
estrangeiras como a General Motors, a Siemens
ou a Brastemp, empresas públicas como a
COSIPA e sociedades civis como o Club Athletico
Paulistano, aprenderam com Chaparro e seus colegas
a praticar um tipo de jornalismo institucional precocemente
sintonizado com as aspirações democráticas
de uma sociedade acorrentada pelo autoritarismo governamental.
O
jornalismo empresarial ali concebido superava as fórmulas
made in USA predominantes no setor, para construir
um jornalismo tipicamente enraizado no jeitinho brasileiro,
conciliando os interesses empresariais com as demandas
sindicais, nem sempre coincidentes com os ditames dos
poderosos de turno.
A
primeira fase do pensamento jornalístico de Manuel
Carlos Chaparro está enfeixada no ensaio que ele
publicou nos Cadernos Proal, n. 2, sob o título
"Jornalismo Empresarial: planejamento, condição
de qualidade" (1971). A matriz do jornalismo
empresarial de qualidade ele a situa na esfera da responsabilidade
social. Para cumpri-la adequadamente os seus produtores
tem como tarefa Exigente o planejamento.
Desta
forma, Chaparro joga uma pá de cal na anacrônica
fórmula da improvisação jornalística,
conferindo regularidade às publicações
empresariais, no sentido de conquistar a credibilidade
do público potencial, constituído majoritariamente
por não-leitores de jornais diários.
Sua
teoria do planejamento jornalístico aplicado às
publicações empresariais não se restringe
ao lançamento e à produção,
mas contempla a sua evolução constante.
Isto porque o cerne dessa operação está
na permanente sintonia entre os jornalistas e seus leitores.
Chaparro
alavanca sua proposta naquela dialogicidade implícita
nos genuínos processos de comunicação.
"O retorno é o termômetro que mede a
qualidade da publicação empresarial. Logo,
qualquer editor honesto e competente preocupa-se em conhecer
as reações despertadas pelo seu jornal ou
revista, e por elas fazer a avaliação mais
profunda sobre o seu trabalho". 6
Ele
aprofundaria essa reflexão anos mais tarde, quando
optou pela formação acadêmica como
método para o amadurecimento das experiências
empíricas acumuladas durante a contínua
jornada profissional, antes e depois da PROAL.
Seu pensamento jornalístico ganharia intensidade
e complexidade na dissertação de mestrado
defendida na ECA-USP, sob o título "A notícia
(bem) tratada na fonte: novo conceito, para uma nova prática
de Assessoria de Imprensa" (1987).
Nesse
trabalho, que ainda permanece inédito, aguardando
publicação em livro, o pesquisador estabelece
uma feliz conjugação entre empiria e teoria.
Refletindo sobre o projeto Pré-Pauta. criado como
embrião da Agência USP de Notícias,
o jornalista sistematiza conceitos inovadores sobre assessoria
de imprensa. Na verdade, ele retira a assessoria de imprensa
do status subalterno a que esteve relegada historicamente,
para conferir ao jornalista responsável pela alimentação
noticiosa das fontes o papel de agente educativo, socialmente
responsável.
Nesse
sentido, Chaparro identifica as fronteiras entre o jornalismo
e as relações públicas, distinguindo
a missão informativa do jornalista em confronto
com a tarefa persuasiva que compete ao agente de relações
públicas.
Nesse
momento da sua trajetória profissional, Chaparro
envereda pela docência universitária, ingressando
como professor do Curso de Jornalismo da Universidade
de São Paulo e dando continuidade à sua
formação acadêmica como aluno do Curso
de Doutorado da Escola de Comunicações e
Artes.
Foi
justamente aí que tive o privilégio de conviver
de modo intelectualmente mais intenso com Carlos Chaparro,
tendo-o como aluno na disciplina "Gêneros Jornalísticos"
que ministrei naquela instituição até
a minha aposentadoria em 1993. Ele freqüentou o curso
ministrado em 1985, tendo como foco os gêneros opinativos
na imprensa diária e como objeto de estudo a Folha
de S.Paulo.
Foi
uma rica experiência cognitiva de que participaram
outros jornalistas da sua geração como Cremilda
Medina, José Arbex Junior, Pedro Gilberto Gomes,
Rafael Souza Silva, Stefania Brill, Andréa Guaraciaba
e Marco Flávio Simões Coelho. Acolhidos
plenamente pela empresa sob o comando da Família
Frias, convertemos a redação do jornal Folha
de S.Paulo em nosso laboratório de observação
empírica, dissecando os gêneros jornalísticos
ali estampados, num trabalho marcado pela convivência
de natureza etnográfica com os produtores das matérias
pesquisadas.
Os
resultados dessa aventura investigativa foram publicados
no livro "Gêneros Jornalísticos na
Folha de S.Paulo" (São Paulo, FTD, 1992),
do qual Chaparro participa com a unidade referente às
cartas dos leitores. Ele retoma em certo sentido a sua
preocupação inicial com as demandas dos
leitores, como vimos naquele texto sobre o planejamento
do jornalismo empresarial.
Por
isso mesmo, sua análise tem dupla articulação:
identifica a carta como "manifestação
opinativa, reivindicatória, cultural ou emocional
do leitor", ao mesmo tempo em que a visualiza, no
bojo do processo industrial do jornalismo, como uma "concessão
ao leitor, administrada em proveito do jornal".
Exercícios
intelectuais desta natureza conduziram Chaparro ao patamar
superior do seu itinerário teórico no campo
do jornalismo, ou seja, à tese de doutorado em
esboça a sua "teoria da ação
jornalística". Fundamenta-se no pragmatismo
de Peirce, Van Djik e outros exegetas da linguagem, bem
como nos pressupostos éticos de Sánchez
Vasquez e nos postulados jornalísticos defendidos
por Martinez Albertos, Desantes e Marques de Melo para
construir a sua "pragmática viva".
Ela
embasou um "modelo macropragmático para a
descrição da ação jornalística,
tendo como idéia central a atribuição
de essencialidade ao componente intenção,
no entendimento e na concretização de fazeres
jornalísticos". Tais práticas jornalísticas
estão alicerçadas na tríade ética-técnica-estética,
justificando conclusivamente o seguinte enunciado: "Sem
o controle consciente sobre os fazeres, o jornalismo
não se concretiza nem como ação social
nem como criação cultural."
Mas
o ápice do pensamento jornalístico de Carlos
Chaparro seria alcançado em sua tese de livre docência,
onde faz um trabalho modelar e erudito, empregando a metodologia
do jornalismo comparado para testar empiricamente as hipóteses
concernentes aos gêneros jornalísticos 7
hegemônicas em Portugal e no Brasil. Trata-se da
mais abrangente e rigorosa incursão pelo terreno
dos gêneros jornalísticos em território
lusófono, que dá passos adiante na sua teorização,
justamente pela ancoragem empírica, mas cujas hipóteses
estão a desafiar outros pesquisadores da nossa
disciplina.
A
razão para essa prudência conclusiva está
contida naquela circunstância anotada pelo jornalista
português Mário Mesquita, prefaciador daquela
obra - os gêneros jornalísticos persistem
como "formas de expressão difusas e mutantes,
que tendem sempre a escapar das grelhas do analista".
Concluída
aquela via crucis acadêmica a que todo pesquisador
precisa submeter-se para obter o reconhecimento universitário
- mestrado, doutorado, livre docência - Carlos Chaparro
optou por uma alternativa consentânea com a sua
pragmática responsável, produzindo conhecimento
jornalístico em ritmo sintonizado com a dinâmica
profissional.
Enquanto
permaneceu atuando em tempo integral na academia ele justapôs
o ritualismo universitário à difusão
de idéias produzidas no "calor da hora".
Resultado dessa ação em que a produção
e a divulgação científica são
indissociáveis, ele reuniu em livro aquelas "práticas
e relatos resultantes de cinco anos de observações
comparadas, regular e metódica, de práticas
jornalística em Portugal e no Brasil".
Sob
o título "Linguagem dos Conflitos",
essa obra, editada em Portugal (Minerva Coimbra, 2001),
infelizmente não obteve circulação
suficiente no Brasil. Em compensação, os
leitores brasileiros estão tendo a chance de usufruir
os comentários judiciosos que Carlos Chaparro faz
semanalmente no site Comunique-se, bem como os
artigos, ensaios e lições que ele divulga
de forma periódica no seu próprio portal
Reeescrita.
Por
isso mesmo, o pensamento jornalístico de Chaparro
constitui um aluvião, em pleno processo criativo,
demonstrando riqueza interpretativa e maturidade intelectual.
Essa fase pós-aposentadoria afigura-se até
mesmo mais apetitosa, rica e utilitária, talvez
como conseqüência do rompimento daquelas amarras
que a academia costuma inibir ou manietar seus componentes.
Quem
sabe voltamos a nos reunir no próximo ano, para
celebrar as suas bodas de ouro de jornalismo. Será
um momento propício para debater esta última
fornada de saberes jornalísticos, calcados em fazeres
imediatos, que Chaparro vem tecendo, através da
internet, quase em fluxo contínuo. O convite está
lançado. Cabe aos seus colegas, discípulos
e admiradores tomar a iniciativa.
Notas
1
Depoimento lido durante o Seminário Acadêmico
"Sotaques do Jornalismo. Contribuições
de Manuel Carlos Chaparro aos fazeres e dizeres jornalísticos",
coordenado pela Profa. Dra. Marli dos Santos, durante
o XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação,
realizado pela INTECOM, na cidade de Porto Alegre, no
dia 31 de agosto de 2004.
2
Fundador e Presidente de Honra da Sociedade Brasileira
de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
- INTERCOM. Professor Emérito da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, atualmente
ocupando o cargo de Diretor-Titular da Cátedra
UNESCO/UMESP de Comunicação.
3
CHAPARRO, Manuel Carlos - Anos de consolidação
da identidade científica, In: PERUZZO & MOREIRA,
orgs. - Intercom, 25 anos, São Paulo, INTERCOM,
2002, p. 100-101.
4
Registros memorialísticos daquela conjuntura estão
contidos no artigo "Nos Tempos da Gloriosa"Revista
Brasileira de Comunicação, vol. XX, n. 2,
São Paulo, INTERCOM, 1997, p. 13-28.
5
O estudo que realizei com meus alunos da Faculdade Cásper
Lìbero, a pedido da Folha de S. Paulo, e cujos
resultados serviram para alavancar decisões estratégicas
daquela empresa, em pleno fase de transição
para o processo de impressão offset, está
reproduzido integralmente no meu livro Estudos de Jornalismo
Comparado, São Paulo, 1972, p. 85-128.
6
CHAPARRO, Manuel Carlos da Conceição - Jornalismo
Empresarial: planejamento, condição de qualidade,
Cadernos Proal (2), São Paulo, PROAL, 1971.
7
A gênese desse trabalho é o projeto "A
evolução dos gêneros no discurso da
imprensa diária brasileira", publicado no
Anuário Brasileiro da Pesquisa em Jornalismo, n.
1, São Paulo, ECA-USP, Departamento de Jornalismo
e Editoração, 1992, p. 207-220.
Bibliografia
referencial
CHAPARRO,
Manuel Carlos da Conceição:
1971
- Jornalismo Empresarial: planejamento, condição
de qualidade, Cadernos Proal (2), São Paulo,
PROAL.
1992
- Carta, In: MARQUES DE MELO, org. - Gêneros
Jornalísticos na Folha de S. Paulo, São
Paulo, FTD, p. 63-74.
1992
- A evolução dos gêneros no discurso
da imprensa diária brasileira, Anuário
Brasileiro da Pesquisa em Jornalismo, n. 1, São
Paulo, ECA-USP, Departamento de Jornalismo e Editoração,
1992, p. 207-220.
1994
- Pragmática do Jornalismo - buscas práticas
para uma teoria da ação jornalística,
São Paulo, Summus.
1998
- Sotaques d´aquém e d´além
mar - percursos e gêneros do jornalismo português
e brasileiro, Santarém, Jortejo.
2001
- Linguagem dos conflitos, Coimbra, Minerva.
*José
Marques de Melo é Professor Emérito da Universidade
de São Paulo, diretor titular da Cátedra
Unesco-Umesp, presidente da Rede Alfredo de Carvalho de
História da Mídia, coordenador do Grupo
de Estudos sobre o Pensamento Jornalístico Brasileiro
(USP), membro efetivo do Instituto Histórico e
Geográfico do Estado de São Paulo e presidente
de honra da Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação.
|