Nº 12 - Nov. 2009
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO VI
 

 

Expediente
Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 



DOSSIÊ:
RÁDIO - Vertentes
 

O caso da rádio comunitária Santo Dias
Direito à palavra


Por Catarina Tereza Farias de Oliveira e
Katharine de Sousa Marques Magalhães
*

Reprodução

RESUMO

A partir de uma demanda social, a comunicação popular da rádio comunitária Santo Dias assumiu características culturais que antes não eram pensadas no processo de comunicação. A emissora passou a incentivar a evangelização e valorizar a proposta “participativa” e “crítica” de comunicação através de comentários, mas também a incluir na programação elementos da realidade social do bairro, que assumiram um lugar estratégico na comunicação.

Não demorou muito até que a Anatel, respaldada pela lei 9.612 e pala política de concessão de emissoras de rádio no Brasil, exigisse a interrupção da programação e lacrasse os equipamentos da rádio, pois a liminar que autorizava o funcionamento da emissora havia sido cassada.

PALAVRAS-CHAVE: Rádios Comunitárias / Cidadania / Concessões

1. Introdução

Historicamente, o final da década de 90 representou uma conquista ambígua para o cenário das experiências de rádios comunitárias no Brasil. Em 1995 um grupo de representantes das rádios comunitárias foi recebido no dia 10 de abril pelo então Ministro das Comunicações, Sérgio Mota, e conseguiu que o representante do governo assumisse publicamente o compromisso de regulamentar, por meio de uma legislação específica, o funcionamento das rádios comunitárias brasileiras.

Após muitas negociações que envolveram as entidades representativas das rádios comunitárias foi aprovada a Lei Federal 9.612, em fevereiro de 1998. Finalmente, essa legislação tornava legal a existência de emissoras, uma vez que instituía o Serviço de Radiodifusão Comunitária sonora, em Freqüência Modulada, ao mesmo tempo em que estabelecia uma série de limitações que deveriam ser observadas pelas emissoras, como é o caso da proibição de publicidade e do alcance de até um quilômetro pelas mesmas.

De acordo com o texto da lei podem explorar este tipo de atividade “as fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, desde que legalmente instituídas e devidamente registradas, sediadas na área da comunidade para a qual pretendem prestar o Serviço, e cujos dirigentes sejam brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos” (artigo 7°). Na tentativa de estabelecer uma unidade no que se refere às características destas emissoras, a lei enfatiza suas finalidades e funções.

Art. 3º O Serviço de Radiodifusão Comunitária tem por finalidade o atendimento à comunidade beneficiada, com vistas a:
I - dar oportunidade à difusão de idéias, elementos de cultura, tradições e hábitos sociais da comunidade.
II - oferecer mecanismos à formação e integração da comunidade, estimulando o lazer, a cultura e o convívio social;
III - prestar serviços de utilidade pública, integrando-se aos serviços de defesa civil, sempre que necessário;
IV - contribuir para o aperfeiçoamento profissional nas áreas de atuação dos jornalistas e radialistas, de conformidade com a legislação profissional vigente;
V - permitir a capacitação dos cidadãos no exercício do direito de expressão da forma mais acessível possível.

Ainda de acordo com as determinações que passam a vigorar a partir do início de 1998, a programação de uma rádio comunitária deve obedecer a uma série de “princípios” pré-determinados:

Art. 4º As emissoras do Serviço de Radiodifusão Comunitária atenderão, em sua programação, aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas em benefício do desenvolvimento geral da comunidade;
II - promoção das atividades artísticas e jornalísticas na comunidade e da integração dos membros da comunidade atendida;
III - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, favorecendo a integração dos membros da comunidade atendida; IV - não discriminação de raça, religião, sexo, preferências sexuais, convicções político-ideológico-partidárias e condição social nas relações comunitárias.
§ 1º É vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária.
§ 2º As programações opinativa e informativa observarão os princípios da pluralidade de opinião e de versão simultâneas em matérias polêmicas, divulgando, sempre, as diferentes interpretações relativas aos fatos noticiados.
§ 3º Qualquer cidadão da comunidade beneficiada terá direito a emitir opiniões sobre quaisquer assuntos abordados na programação da emissora, bem como manifestar idéias, propostas, sugestões, reclamações ou reivindicações, devendo observar apenas o momento adequado da programação para fazê-lo, mediante pedido encaminhado à Direção responsável pela Rádio Comunitária.

Com a promulgação da lei, o novo momento que se estabelece provoca diferentes reações tanto entre as emissoras quanto entre as entidades representativas dessas experiências. Tereza Matos (2006) lembra ainda que a lei, ao mesmo tempo em que reconhece o direito de existência e disciplina o funcionamento das emissoras comunitárias, torna legítimos os mecanismos de repressão para as rádios que não se adaptarem às regras.

O conhecimento da letra da lei vai desempenhar um papel ambíguo na relação intra-rádios comunitárias. Ora irá funcionar como um elemento de defesa do papel de uma radiocom, e nesse sentido, da própria Lei e da idéia de legalidade. Ora o papel de controle do Estado sobre a difusão é negado, abrindo espaço para uma série de interpretações da necessidade de subversão da legislação. (Cf. MATOS, 2006:123).

A causa para esta dupla interpretação está no fato de que, no Brasil – que já chegou a ser o único país da América do Sul onde não havia uma legislação para as rádios de baixa potência,, as discussões que resultaram na elaboração do projeto de lei 1.521, de dezembro de 1996, e na posterior aprovação da lei 9.612, em 1998, não consideraram uma série de reivindicações das emissoras. Este é o caso, por exemplo, da potência máxima permitida. Enquanto a lei afirma que ela não pode ultrapassar os 25 watts, com uma antena de no máximo 30 matos, as entidades reivindicam 50 watts (COELHO, 1998).

Há divergências também em relação ao número de emissoras por localidade, já que a Lei de Radiodifusão prevê apenas uma emissora por comunidade, e as rádios pedem que sejam entre duas e doze, dependendo do tamanho da localidade onde se pretende prestar o serviço. Outro exemplo é a obrigação de todas as emissoras operarem na mesma freqüência, o que poderia, no entendimento das associações representativas das radiocom, gerar interferências de sinais.

Finalmente, um ponto também não aceito pelas radiocom é a proibição das emissoras formarem rede. As associações afirmam que a determinação inviabiliza a plena realização do processo comunicativo e o direito de diversas comunidades terem acesso a programas de interesse comum – já que impossibilita a veiculação de campanhas de mobilização, por exemplo.

Apesar de reconhecer que a lei “representa um avanço no sentido de regulamentar um setor da radiodifusão de demanda crescente”, Cicília Peruzzo (1998) lembra que o Ministério das Comunicações vinha sendo pressionado por vários projetos de lei voltados para a legalização do serviço de radiodifusão comunitária.

No entanto, o aprovado na Câmara Federal foi aquele que teve a participação direta da Abert, o que ajuda a entender o porquê dos limites impostos. A mesma associação, através de seu lobby também conseguiu fazer recuar o Ministro das Comunicações, Sérgio Mota, inicialmente acenando com a possibilidade de autorizar a instalação de até dez mil emissoras comunitárias no Brasil. A pressão da associação patronal também surtiu efeitos no recrudescimento a perseguição às emissoras. (Cf. PERUZZO, 1998:121).

Nesse texto em particular vamos destacar a experiência da rádio comunitária Santo Dias, localizada no bairro do Conjunto Palmeiras em Fortaleza que mesmo informalmente cumprindo grande parte os requisitos da Lei 9.612, e tendo mais de 15 anos de história de comunicação voltada ao interesse popular, foi drasticamente fechada em 2004 respaldada inclusive pela lei de radiodifusão comunitária.

A maior ambigüidade da lei foi que esta legalizou para o Estado brasileiro o fechamento de experiências históricas e significativas para a sociedade brasileira. Somente no Ceará. Vamos tomar unicamente a trajetória da rádio Santo Dias e exemplificar o que perdemos em termos de comunicação popular em virtude de uma legislação e de uma política de comunicação que executa normas legais centralizadoras e desconhece o contexto cultural das experientes de comunicação comunitária e popular no país.

Como a maioria das rádios comunitárias que passaram a existir no Brasil na década de 90, a rádio comunitária Santo Dias iniciou sua trajetória como radiadora comunitária ainda nos anos 80. Na rádio comunitária Santo Dias, os alto falantes soavam para os moradores do conjunto Palmeiras, um bairro de periferia, distante 18 quilômetros do centro de Fortaleza e situado numa região desprovida de infra-estrutura.

Criado em 1974 pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, o Conjunto Palmeiras era um loteamento sem nenhuma política de urbanização: água, energia, moradia, transporte. Para o terreno, foram trazidos os desabrigados da enchente do Rio Cocó, moradores da favela do Lagamar e pessoas provenientes dos conflitos em terrenos públicos e particulares na Aldeota, Poço da Draga, Arraial Moura Brasil, Morro das Placas e Favela Verdes Mares.

O Conjunto Palmeiras, que de conjunto com suas casas alinhadas e iguais não tem nada, possui aproximadamente cinco mil moradias e uma população de quarenta mil habitantes . As casas, na sua maioria, seguem o estilo tradicional de quarto, sala, cozinha. Nas ocupações que se transformaram em favelas no interior do Conjunto, as residências são de tijolo sem reboco ou de taipa e não possuem banheiro.

Este é o contexto em que moram os ouvintes e os comunicadores da Rádio Santo Dias, uma população que apresenta um alto índice de desempregados e subempregados. É para este bairro de origem humilde, carente de condições materiais para a sobrevivência (emprego, moradia, saneamento) e de opções de entretenimento, que falam os alto-falantes da rádio comunitária Santo Dias.

2. A conquista do direito à palavra

É importante considerar que, neste bairro, a Igreja tem uma presença marcante nas mobilizações coletivas, principalmente através das CEBs, Pastorais do Menor, da Mulher e Operária. O Palmeiras também vai ser conhecido como bairro de intensa mobilização. Atualmente é reconhecido mundialmente pela experiência do Banco Palmas, o banco do Povo, uma experiência de economia solidária importante para o bairro. [2]

Foi no meio da Pastoral da Comunicação que surgiu a rádio comunitária Santo Dias, e mais especificamente em 1988, quando as CEBs se preparavam para a Campanha da Fraternidade de 1989.

No final de 1986, chegaram ao Conjunto Palmeiras os Padres Francisco Moser e Luis Fornasier, ambos italianos como passagem em São Paulo, onde presenciaram a emergência das primeiras discussões sobre comunicação popular do interior das mobilizações sociais (nos sindicatos), a organização dos Clubes de Mães e do Movimento do Custo de Vida. Os padres tinham acompanhado ainda o surgimento das rádios comunitárias em São Miguel Paulista. Estas radiadoras surgiram a partir de 1983 nas favelas deste bairro através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

No Conjunto Palmeiras, o movimento popular sempre utilizou formas de comunicação para incentivar as mobilizações (abaixo assinados, boletins, mosquitinhos, megafones), mas a experiência da rádio surgiu no espaço das CEBs e se vinculou com a associação de moradores apenas através da veiculação de pequenos avisos, divulgação de eventos ou por intermédio de alguns comunicadores que participam do movimento popular. Na realidade, não existe um espaço do movimento popular na programação da Rádio Santo Dias.

As primeiras discussões para a criação de um meio de comunicação nas CEBs na a Messsejana se iniciaram com o objetivo de criar um jornal. Este instrumento objetivava fazer a interligação das comunidades de base da Área Metropolitana III onde atuavam os padres Chico e Luís. Foi criado, então, o Jornal Antena das Comunidades, um periódico mensal elaborados por moradores do Palmeiras, João Paulo II e Jangurussu. O jornal nunca circulou mensalmente e saia sempre atrasado.

Do Jornal Antena, a proposta de comunicação se expandiu para a criação da OCA – Oficina de Comunicação Alternativa, que tinha a finalidade de formar uma rede de comunicação alternativa para as comunidades de base da área de Messejana. No processo de organização da OCA, foi criada a rádio comunitária Santo Dias que recebeu este nome em homenagem ao operário metalúrgico Santo Dias que morava e São Paulo e lutava pela questão operária e foi assassinado.

Esta é a versão conhecida pela comunidade a respeito da morte de Santo Dias. Além da rádio comunitária do Conjunto Palmeiras a peregrinação de padre Chico na área de comunicação incentivou a criação de outras rádios comunitárias no João Paulo II, Pedra, Jaboti, Curva do “S” e outras comunidades de base. Mas nas outras comunidades, as radiadoras não tiveram o mesmo desempenho da rádio Santo Dias, apenas existem e funcionam precariamente, conforme ressaltam os depoimentos:

O meio de comunicação da rádio comunitária, ele consegue se firmar de uma forma assim mais ampla e em alguns lugares está permanecendo. A experiência teve dificuldades, de equipamentos, é muito pesado (...). Em certos lugares com mais sucesso, em outros com dificuldades, mas sempre está havendo grupinhos querendo treinamento. (Depoimento do Pe. Francisco Moser, Conjunto Palmeiras, 1992).

Na primeira etapa de criação da rádio, predominou o processo de reflexão sobre comunicação de massa. Este discurso era comum em todos os movimentos de comunicação popular que surgiram a partir da década de 70 e 80, dentro e fora da Igreja. No caso específico da rádio comunitária Santo Dias, esses debates surgiram no meio das CEBs e constituíram aquilo que os comunicadores chamavam de comunicação “verdadeira”: 

Nós começamos a pensar o próprio sentido que as rádios comerciais, televisão, jornal, dão ao povo, é limitado, quase nenhum, é só interesse próprio, colocando só o que eles acham que deve ser apresentado. A gente começou esse tipo de comunicação para que a gente pudesse ter um tipo de comunicação mais verdadeira, aprofundar mais os fatos, analisar mais os programas das rádios comerciais.(Depoimento de Weyne Tiago da Silva Araújo, Comunicador Popular, Rádio Santo Dias, Conjunto Palmeiras, 1992).

Ancorada sobre essa proposta de comunicação alternativa, contraposta à comunicação de massa, voltada para a conscientização e empenhada em apoiar as campanhas e os movimentos da CEBs, a rádio iniciou sua programação.
Montada na sacristia onde funcionou até 1993, quando o padre Chico mandou construir um estúdio para a rádio no andar superior da igreja, a Rádio Santo Dias iniciou sua programação em 1988, divulgando unicamente a Campanha da Fraternidade, salmos, leituras bíblicas e comentários que destacavam os problemas cotidianos à luz do evangelho.

Francisco José Justino, carinhosamente conhecido como FJ, técnico e locutor da rádio Santo Dias, historiciza os primeiros momentos de funcionamento da rádio Santo Dias:

A rádio, eu me lembro bem, quando a rádio começou com uma função. Todas as tardes tentava colocar uma leitura e daquela leitura partilhar com duas ou três pessoas. Eu não me lembro bem, mas eu lembro que a rádio começou com uma coisa que não era diretamente no ar, mas, de vez em quando, ela estava no ar com uma leitura tentando mostrar uma mensagem dessa leitura. (Depoimento de Francisco José Justino, Comunicador Popular, Rádio Santo Dias, Conjunto Palmeiras, 1992).

Na rádio predominava este momento de reflexão que, mais tarde veio a ser concentrado num programa específico, que recebeu exatamente este nome “Momento de Reflexão”, um dos cinco programas que a radiadora veiculava em 1992 e o mais identificado com a proposta evangelizadora.

No começo da experiência a presença das CEBs era hegemônica. A programação se resumia aos momentos de reflexão, à veiculação de músicas exclusivas da campanha da fraternidade e canções das CEBs e da Igreja. Os primeiros comunicadores da rádio foram convidados pelo vigário que articulou a primeira equipe de apresentadores. Entretanto, à medida que a radiadora se estruturava, os comunicadores se engajavam das mais diversas maneiras através de convites de amigos, influência dos namorados, curiosidade em conhecer a rádio.

Em 1993 a radiadora tinha uma equipe com aproximadamente 15 pessoas, entre membros das CEBs e de outros grupos, no quadro de comunicadores que compuseram a equipe da rádio. É importante ressaltar apenas, que muitos dos comunicadores tinham múltiplas ações na comunidade. Alguns eram membros das CEBs e militavam no movimento popular, participava do grupo de teatro, grupo de jovens, da serigrafia. No processo de organização das rádios comunitárias, esses detalhes são fundamentais na configuração da proposta de comunicação popular.

Da programação original que divulgava a Campanha da Fraternidade, Salmos, mensagens da Bíblia; a rádio comunitária vivenciou processo de ampliação da sua programação. Iniciaram-se as abordagens de problemas sociais contidos simultaneamente na ação das CEBs: o menor, a moradia, a saúde, a mulher, a violência, a “conscientização”, dentre outras temáticas. Estes temas passaram a ser abordados continuamente através de comentários e notícias.

As músicas religiosas cederam espaço também para a Música Popular Brasileira (Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros). Outras modificações aproximaram a rádio de problemas mais imediatos: achar crianças perdidas, promover campanhas para enterros dentre outros serviços de utilidade pública. O forró, a chamada música “brega” e a música romântica passaram a conviver com a proposta crítica e evangelizadora da rádio.

Essas mudanças estão relacionadas à realidade sócio-cultural do bairro e à atuação de seus comunicadores que desempenham um papel fundamental na experiência de comunicação. Começaram a chegar à rádio muitos pedidos de utilidade pública, mensagens de aniversário, documentos perdidos. Esta foi à utilização que os moradores atribuíram ao sistema de alto-falantes. O estúdio da rádio, localizado na sacristia da igreja, recebia freqüentemente mães, pedindo ajuda para comprar remédios, conseguir alimentos, achar seus filhos que se perdiam no bairro.

Gradativamente, as solicitações levaram a rádio a modificar sua programação. Essa relação não significou um processo forçado, muitos comunicadores se gratificam ao prestar esses serviços às pessoas:

Na parte da rádio comunitária, até uns três meses, eu ainda não achava nada, eu achava que muitas pessoas achavam uma besteira. Começa de manhãzinha, acordando o pessoal, à noite ninguém podia ver a novela. Mas, depois, eu fui vendo que, cada vez que a gente ajudava uma pessoa, achava criança perdida, cada vez que uma pessoa perdia um documento, precisava de remédio, precisava de alimentação, a gente ajudava. Eu acho que assim em mim dava certa valorização em mim mesmo. Às vezes, penso nos outros, às vezes em mim, não sei nem o que penso direto “. (Depoimento de Francisco Alexandre Martins da Silva, Comunicador Popular, Rádio Santo Dias, Conjunto Palmeiras, 1992).

Os comunicadores avaliavam se a proposta de comunicação alternativa não iria repetir os vícios assistencialistas de políticos eleitoreiros e das rádios comerciais. Neste momento, entrava em conflito a proposta de comunicação alternativa participativa e crítica e a prestação de utilidade pública. Por mais confusas que parecessem, os comunicadores adotaram o quadro de utilidade pública em todos os programas da rádio, inclusive no “Momento de Reflexão”, o mais voltado para a evangelização.

A partir dessa demanda social, a comunicação popular, na rádio comunitária Santo Dias, assumiu características culturais que antes não eram pensadas no processo de comunicação. A rádio permaneceu incentivando a evangelização e valorizando a proposta “participativa” e “crítica” de comunicação através de comentários, mas apareciam na programação elementos da realidade social do bairro, assumindo um lugar estratégico na comunicação.

Quando a rádio ampliou sua programação, abrindo espaços para avisos e serviços de utilidade pública, teve início a integração da proposta de comunicação com o bairro. A proposta que ressaltava as abordagens “educativas”, “participativas” e “críticas” se expressará nos comentários. A dimensão religiosa permaneceu no programa “Momento de Reflexão”, leituras bíblicas e no espaço privilegiado que os avisos da igreja ocupam na programação, mas as dinâmicas da vida diárias, o movimento do bairro, passaram a fazer parte crescente da proposta da rádio.

A dimensão lúdica e mais “solta” da rádio aparece nos programas “Show de Domingo” e “Novo Tempo”, ambos apresentando quadros que ultrapassam a proposta meramente crítica. No “Show de Domingo”, vamos encontrar piadas, repentistas, cantores de forró. Aos sábados, o “Novo Tempo” apresenta o quadro de “recadinhos do coração”, onde os jovens da comunidade revelam sua vida amorosa ou enviam mensagens para seus amigos. Estas conquistas são importantes, principalmente porque, até 1989, a rádio comunitária Santo Dias, apoiava a proposta de comunicação popular educativa e participativa que se isolava dessa dimensão cultural dos ouvintes.

É importante ressaltar que, enquanto viveu a trajetória de radiadora, a radio Santo Dias teve várias paralisações que ocorriam sempre que os equipamentos apresentavam algum problema técnico. O funcionamento do sistema de alto-falante ocupava somente horários que não comprometessem o cotidiano da comunidade, uma vez que ligada a radiadora todos eram obrigados a ouvi-la. Nesse caso, a experiência tinha que dividir seu horário de programação com o funcionamento da escola, o horário das novelas, o descanso dos moradores, dentre outros fatores socioculturais da comunidade. .

3. Em tempo de silenciar para a Santo Dias

Somente em 2001, a rádio Santo Dias resolveu adotar o sistema de transmissão em FM, teve início aí uma nova luta que apesar do aprendizado culminará no fechamento da prática comunicativa. Precisamente há 24 de novembro de 2000, o grupo de comunicadores populares decidiu trocar sistema de alto-falantes pela Freqüência Modulada e disputar o dial com as emissoras comerciais.

Com um equipamento adequado, amparada por uma liminar judicial e sustentada por uma equipe que colocava no ar, de segunda a domingo, 13 horas diárias de programação, a rádio comunitária Santo Dias FM começava a ampliar o espaço antes alcançado pela radiadora.

De acordo com Wayne Tiago, um dos primeiros comunicadores populares do Conjunto Palmeiras, o grupo que se responsabilizava pelo funcionamento da emissora era formado por uma média de 35 pessoas - cerca de 20 a mais que na época dos alto-falantes. Entretanto, no dia 10 de maio de 2001, uma quarta-feira, a emissora recebeu pela primeira vez os técnicos na Anatel solicitando seu fechamento. Segundo Weyne Tiago, a programação teve início sem qualquer problema, às sete da manhã.

O programa veiculado até as oito horas foi o Reze a Vida Salmo a Salmo – Viva a Vida Palmo a Palmo. A apresentação ficava a cargo do Padre Francisco Moser. Após esse programa se seguiram outros três, de acordo com a grade regular da rádio. Às nove da manhã começou a ser veiculado o Fala Povo, apresentado por Wayne Tiago.

O programa havia sido trazido da radiadora, e teve o seu horário ampliado quando a rádio passou a operar em FM. A transmissão começava as nove e prosseguia até o meio dia, mas não chegaria ao fim naquela quinta. Enquanto fazia a locução, Wayne foi interrompido por dois funcionários da Anatel. Eles exigiram a interrupção do programa e anunciaram que lacrariam os equipamentos da rádio porque a liminar que autorizava o funcionamento da emissora havia sido cassada.

Aí então eles chegaram, e eu não atendi enquanto eu não terminei o que eu tava fazendo na locução. Até porque chegou o outro rapaz [FJ] e começou a conversar com eles... Depois que eu terminei todo o programa, que eles disseram que tinha que tirar do ar, aquela coisa toda. [...] Mas eu tinha que dar uma satisfação à comunidade. Eu não poderia sair simplesmente, sem dizer à comunidade o porquê de a gente estar saindo do ar. [...] Aí eles disseram que a liminar tinha sido cassada e ele [FJ] foi lá, conversou, entregou os documentos, e a rádio foi lacrada. (Depoimento de Weyne Tiago da Silva Araújo, comunicador popular da Rádio Santo Dias, Conjunto Palmeiras, 2006). 

Tanto para Wayne quanto para os demais participantes da rádio, o lacre dos equipamentos representou uma derrota inesperada. Como estavam respaldados por uma liminar judicial e não tinham maiores conhecimentos a respeito da legislação que regula o funcionamento das emissoras de baixa potência, não houve, por parte de nenhum integrante da Santo Dias, até aquele momento, a preocupação de buscar um meio mais seguro de assegurar a continuidade do trabalho feito na rádio. Esse caminho seria a tentativa de obter uma outorga de funcionamento com base na Lei Federal 9.612, sancionada em fevereiro de 1998.

Depois de lacrar os equipamentos, os funcionários da Anatel exigiram que alguém se responsabilizasse pela operação da rádio, e assinasse os documentos que comprovam a ação. Entre os presentes, o único que concordou em assumir a responsabilidade foi FJ, por conta também do cargo que ocupava na coordenação da Santo Dias. No momento da assinatura, ele foi informado de que seria chamado para prestar esclarecimentos e, “possivelmente”, responder a um processo pela operação que os representantes da Agência afirmavam que vinha sendo feita ilegalmente, desde a cassação da liminar (em uma data que, segundo os comunicadores populares consultados, também não foi informada).

A partir deste episódio, a visão que os comunicadores do Conjunto Palmeiras tinham da atividade de radiodifusão se modificou. Como será mostrado a seguir, a chegada inesperada dos funcionários da Anatel introduz preocupações até então distantes dos comunicadores populares da Santo Dias. Uma das preocupações foi o receio quanto à fiscalização da Anatel. Nesse sentido, passa a haver o empenho por parte do grupo em conseguir um meio mais seguro para continuar com a rádio.

A partir de agosto de 2001. Sem poder operar por conta do lacre dos equipamentos feito pela Anatel, e os comunicadores descobriram que outras emissoras haviam voltado a funcionar apesar de terem sofrido as mesmas punições. Diante da descoberta decidiram avaliar os riscos de retomar o trabalho mesmo sem autorização.

O assunto foi posto em votação durante uma reunião realizada entre boa parte dos integrantes da rádio, no dia 29 de setembro. O clima foi tenso, e por pouco não houve empate. Temendo novas ameaças dos órgãos de fiscalização e repressão, parte do grupo defendeu que aquele não era o momento de voltar a funcionar, e que o correto seria buscar primeiro uma garantia judicial que protegesse a emissora e os comunicadores de outras punições.

Mas como os padres Chico e Luís se mantiveram neutros e a maioria estava decidida a recolocar a rádio no ar. A rádio Santo Dias voltou a transmitir sua programação ainda no mês de setembro, dessa vez cercada por um esquema que tinha o objetivo de evitar novas repressões.

De acordo com Wayne Tiago, os lacres foram retirados dos equipamentos logo após o término do encontro que decidiu pela reabertura da rádio.

Aí nós voltamos a funcionar naquele clima, de que a qualquer momento poderia vir [a Polícia] Federal, vir Anatel... Vir perseguição... Alguém ficava sempre atento, alerta. E nós avisamos à comunidade que estávamos voltando, mas correndo o risco de a qualquer momento... Porque a gente tava no ar, e ia encarar o que pudesse acontecer. (Depoimento de Weyne Tiago da Silva Araújo, Comunicador Popular da Rádio Santo Dias, Conjunto Palmeiras, 2006).

Mesmo sem a orientação de um advogado (profissional que só um pouco mais tarde seria procurado pelos comunicadores), os integrantes da Santo Dias estavam conscientes do risco que assumiram. Como declarou Wayne, depois que a rádio voltou a operar sem autorização todos os responsáveis por algum tipo de atividade na emissora foram orientados a proteger o estúdio em caso de novas fiscalizações.

A intenção era impedir que funcionários da Anatel viessem acompanhados de policiais federais e apreendessem todo o material da rádio.

Também após a decisão de retomar as atividades, os comunicadores constituem uma nova coordenação para a Santo Dias. Esse grupo vai ter a sua atuação marcada pela tentativa de evitar novas ameaças, através da possível obtenção de uma licença de funcionamento junto ao Ministério das Comunicações, nos termos da Lei Federal de Radiodifusão. Depois de nomeados, e enquanto a rádio dava continuidade à sua programação normalmente, os coordenadores se empenharam em procurar orientações sobre as atitudes que deveriam ser tomadas para legalizar a emissora.

Após o episódio procuraram imediatamente um advogado que lhes forneceu orientações sobre as exigências da legislação Segundo FJ, neste mesmo ano a rádio envia, também ao Ministério das Comunicações, toda a documentação necessária para a solicitação da outorga. Ou mesmo de uma autorização temporária de funcionamento para a Santo Dias FM.

Mais do que a preocupação de operar em conformidade com a legislação, portanto, pesou sobre os comunicadores populares do Conjunto Palmeiras a pressão feita constantemente pela Anatel. Amedrontados pela possibilidade de sofrer outro lacre, ou de terem os equipamentos do estúdio apreendidos, essas pessoas buscaram todas as alternativas que se apresentaram, enfrentando dificuldades econômicas e, sobretudo, falta de informação.

De acordo com os próprios comunicadores, foi fundamental para a continuação dos trabalhos na rádio à colaboração dos Padres Chico e Luís, que atuaram não só na resistência às fiscalizações da Anatel, mas principalmente na manutenção dos comunicadores populares unidos em torno de um objetivo comum.

Desde o lacre dos equipamentos, em maio de 2001, os integrantes da Santo Dias adquiriram a consciência de que teriam de lutar contra o tempo, e contra um inimigo bem mais poderoso. Mas como a unidade que mantiveram e as decisões tomadas sempre coletivamente não resultaram em nenhum mecanismo legal para assegurar o funcionamento da rádio, ela continuou operando ilegalmente até o momento em que a Anatel voltou a agir, desta vez amparada judicialmente.

Ao lembrar os acontecimentos relatados a partir de agora, os integrantes da rádio Santo Dias avaliam: "O que veio depois foi o pior". Esse pior viria mesmo só no final de 2004, mas seria precedido por uma série de fatos desagradáveis não só aos integrantes da FM, mas aos moradores do Conjunto Palmeiras como um todo.

Em um intervalo de apenas dez meses, as pessoas que mantinham algum tipo de ligação com a rádio – fosse fazendo ou ouvindo a programação - viram uma história construída ao longo de 15 anos na área de comunicação comunitária quase desaparecer, enfraquecida por um contexto permeado de acontecimentos mais ou menos inesperados.

A primeira perda foi sofrida bem no início de 2004, com o anúncio de que os padres Chico e Luís deixariam o Conjunto Palmeiras, onde moravam desde 1986. Os dois haviam sido transferidos para o Timor Leste, país asiático próximo à Indonésia. Sua proposta emancipatória das classes mais populares.

Na rádio Santo Dias FM, a partida de dois dos seus maiores colaboradores entristeceu os participantes, mas não interrompeu os trabalhos. Amparada pelas medidas de segurança que continuavam a ser tomadas desde o lacre dos equipamentos em 2001, a programação continuou a ser transmitida normalmente, pois nessa época os comunicadores já haviam organizado mecanismos próprios de sustentação – além de rifas e bingos realizados esporadicamente, eles contavam com o dinheiro dos apoios culturais, recebido de comerciantes da região em troca de anúncios na rádio.

Outra fonte de recursos era garantida pelas contribuições mensais dos locutores, que estabeleciam valores fixos em carnês de sociedade com a rádio.

Em 2004, porém no dia 10 de março, uma quarta-feira, menos de um mês depois da saída dos padres Chico e Luís, uma nova investida da Anatel contra a Santo Dias marcaria o início de uma crise inédita para os comunicadores da emissora. À tarde, alguns funcionários da agência chegam para mais uma fiscalização.

Do terreno que dá acesso ao estúdio e à Igreja, alguém liga para a rádio, onde estava sendo transmitido o programa O Mundo e a Criança, apresentado por três pré-adolescentes. Quem estava na operação técnica era a comunicadora Marinez Chavez. Avisada da presença dos agentes, ela interrompe o programa, tira a rádio do ar e fecha a porta que dá acesso ao estúdio, onde permanece com os apresentadores.

Mas aquela não seria apenas uma fiscalização como a que os comunicadores já estavam acostumados, por conta de um mandato judicial apresentado pelos agentes de fiscalização. O documento – segundo argumentou depois um dos coordenadores da rádio, que conversou com os representantes da Agência naquela tarde [3] – dava aos funcionários da Anatel o direito de lacrar novamente os equipamentos da Santo Dias. Ao contrário das ocasiões que haviam se repetido nos últimos dois anos, a resistência que os funcionários da Agência enfrentaram para conseguir ter acesso ao estúdio, dessa vez, não foi suficiente. É o que relata Wayne Tiago .

Eles [funcionários da Anatel] pegaram de surpresa [...]. Não tinha no momento, digamos assim, uma pessoa à altura pra combater. Aí quando eles chegaram, o rapaz que estava aqui e que tinha sido orientado pra não dar acesso, pra não deixar, que estava sabendo de todo o esquema da equipe... Não sabemos o porquê, não entendemos até hoje... Se esse cara teve medo, o que foi que passou por esse cara, porque ele, altamente entendido da lei e dos esquemas da rádio, juntamente com a gente pra não permitir o acesso, simplesmente pegou e deu o acesso ao pessoal da Anatel nesse dia, deixou subir ao estúdio... Aí lá se vai novamente lacrar, fechar tudo. (Depoimento de Weyne Tiago da Silva Araújo, comunicador popular da Rádio Santo Dias, Conjunto Palmeiras, 2006)·.

Além de lacrar, como em 2001, todos os equipamentos que vinham sendo usados normalmente apesar da proibição, a Anatel aplica uma multa de R$1.858 a Santo Dias, devido à operação ilegal do serviço de radiodifusão. Esse recurso, de acordo com o dossiê intitulado Querem calar a voz do povo, começou a ser utilizado pela Agência em 2004, apesar de não estar respaldado por nenhuma determinação legal.

Os valores foram aplicados a bel prazer dos fiscais, uma vez que o Serviço de Radiodifusão Comunitária, estabelecido pela lei 9.612/98, o Decreto 2.615/98 e Norma Operacional 01/04, não define tais valores. Não há nem mesmo uma portaria ou resolução específica da Anatel definindo os valores. (Depoimento de Weyne Tiago da Silva Araújo, comunicador popular da Rádio Santo Dias, Conjunto Palmeiras, 2006).

Mas foi com os equipamentos novamente lacrados e tendo que lidar com a questão da multa que os comunicadores da Santo Dias se reuniram na igreja, ainda na noite da mesma quarta, para tentar chegar a um acordo sobre a nova situação. Acabaram não chegando a resolução nenhuma. Abalado pelos acontecimentos da tarde e pela primeira vez sem a presença de Padre Chico, o grupo trocou acusações e lamentou que um dos coordenadores tivesse acatado os argumentos dos funcionários da Agência, permitindo que eles subissem até o estúdio.

Neste encontro, pelo menos duas pessoas decidiram se afastar da rádio, enquanto as demais se prontificaram a buscar alguma solução para que a emissora pudesse voltar a funcionar. A primeira medida que tomam é a elaboração de uma Carta aberta às Comunidades, e divulgada em nome de toda a área pastoral do Conjunto Palmeiras. No texto, os comunicadores se dizem conscientes da injustiça sofrida e afirmam, ao se referirem ao fechamento da rádio: “É imprudente e injusto nos calarmos diante de tão grande afronto”.

Mas com o passar dos dias e sem o apoio de um advogado, a situação da rádio piora ainda mais. Fechada, a emissora perdeu o dinheiro proveniente dos apoios culturais, e as contas de energia e telefone deixaram de ser pagas. Com a coordenação desfalcada por conta da saída de alguns comunicadores, o pagamento da multa aplicada pela Anatel se transforma em um problema de solução impossível.

Ao contrário do que aconteceu na época do primeiro lacre, quando os comunicadores estavam inseridos em um contexto de mobilização permanente por conta da série de atividades realizadas na paróquia, a segunda punição veio em um momento delicado de transição.

Sem a colaboração dos padres Chico e Luís, a manutenção das atividades da rádio ficou a cargo dos seus integrantes, que provavelmente teriam conseguido dar continuidade ao trabalho sem maiores problemas, não fosse a nova intervenção da Anatel. Quando lacra os equipamentos pela segunda vez, a agência pune uma comunidade que em pouco tempo se tornaria visivelmente diferente daquela encontrada em 2001.

Marinez Chavez, comunicadora popular, que estava no estúdio no momento do segundo lacre, lembra que essa seria a disposição comum dos comunicadores, não fosse ausência do Padre Chico.

Eu sabia que a gente ia abrir de novo. A gente abria mesmo. A gente se reunia. Porque a gente tinha um padre que brigava pela comunidade, que brigava pela rádio, [...] que dava força à gente. [...] Dessa vez não foi assim. A gente só viu desânimo mesmo, e a própria turma da rádio, a gente via mesmo que, de repente. (Depoimento de Marinez Chavez, comunicadora popular da Rádio Santo Dias, Conjunto Palmeiras, 2006).

O último golpe sofrido pela Santo Dias no ano de 2004 chegou há três de dezembro, funcionários da Anatel chegam a Santo Dias para mais uma ação de surpresa. Vêm acompanhados de policiais federais e imediatamente chamam a atenção dos moradores que estavam próximos à igreja, por conta principalmente da quantidade de carros que deixam estacionados. A quem os recebe, os agentes informam que estão respaldados por uma autorização que lhes permite apreender todos os equipamentos da emissora.

A permissão de antecipação de tutela apresentada pelos funcionários da Anatel havia sido solicitada no mês de novembro pela Agência, sob sigilo, e foi concedida para aplicação em outras seis emissoras além da Santo Dias.
No documento em que solicita a antecipação de tutela, a Agência afirma que “não é suficiente a simples aplicação de multa administrativa contra as infratoras”, por considerar que a penalidade não é suficiente para “inibir o funcionamento indevido do serviço, o que implica em persistir o risco à coletividade”.

Logo após identificar as entidades para as quais solicita a tutela dos equipamentos, a Agência apresenta os fatos que justificam o pedido, relatando uma série de acontecimentos que não correspondem aos depoimentos apresentados pelos comunicadores da Santo Dias durante a realização desta pesquisa.

No caso da rádio do Conjunto Palmeiras, além de não terem sido impedidos de ingressar no estúdio, os fiscais da Anatel haviam lacrado os equipamentos e aplicado uma multa cujo valor se mostrou totalmente fora do poder aquisitivo dos responsáveis pela emissora. Ao voltarem para levar os equipamentos que permaneceram sem qualquer utilização, os agentes utilizam o termo tutela antecipada ao invés de apreensão. Quem explica a troca das denominações é a própria Agência, ainda no documento em solicitou a permissão para retirar os equipamentos do estúdio da Santo Dias.

Como não havia nenhum comunicador no estúdio da rádio ou mesmo no salão paroquial no momento, as pessoas estavam por perto argumentaram, sem sucesso, que a rádio estava fechada desde o lacre, e que os agentes poderiam comprovar a informação sem qualquer dificuldade. Determinados a levar os equipamentos de qualquer maneira, no entanto, os policiais federais avisam que vão arrombar o portão que dá acesso ao estúdio em caso de resistência.

Diante da ameaça, uma moradora se prontifica a ir procurar Marinez Chavez, a comunicadora que estava com a chave da rádio. Mas quando fica sabendo da chegada dos agentes, Marinez se recusa a facilitar o acesso do grupo, e se nega a ir até a rádio. A resistência, segundo ela, se deveu ao fato de os comunicadores estarem com todas as atividades da rádio paradas desde o segundo lacre, e em conformidade, portanto, com a determinação da própria Anatel.

É que foi uma coisa tão difícil de conseguir, né? E acabar assim. (Depoimento de Marinez Chavez, comunicadora popular da Rádio Santo Dias, Conjunto Palmeiras, 2006).

Mesmo que tivesse ido, Marinez não teria chegado a tempo. Conforme o relato dos comunicadores, os policiais não esperaram a volta da pessoa que havia ido procurá-la. Ao verem que o número de moradores em volta da igreja e já dentro do terreno que dá acesso a radia ia aumentando, os policiais federais desistem da espera e arrombaram o portão de ferro e subiram até o estúdio, onde voltam a usar a força para abrir duas portas que estava fechada.

Rapidamente eles recolhem o que encontram no local. Na lista que os comunicadores fizeram depois do material apreendido estão até mesmo dois microfones utilizados apenas durante as missas.

Alguns comunicadores ainda chegam a tempo de ver os equipamentos sendo levados, mas nada conseguem fazer. Mais tarde, Marinez e outras pessoas vão até o estúdio, onde encontram apenas o que os policiais não quiseram levar. Em meio à desordem, a comunicadora lembra ter pensado que a rádio havia chegado ao fim.

Quando eles vieram e levaram todos os equipamentos, pra mim a rádio tinha acabado. E hoje eu to assim, muito desacreditada. [...] A minha esperança, ela não acabou totalmente não. Mas cada dia que passa, que eu vejo que nada é feito... Que a gente depende de uma concessão que eu não boto muita fé, porque as coisas são sempre difíceis. (Depoimento de Marinez Ghavez, comunicadora popular da Rádio Santo Dias, Conjunto Palmeiras, 2006).

Como a rádio Santo Dias muitas experiências de comunicação comunitária no Brasil, apesar de contribuir para um processo de mobilização, de descoberta do direito à palavra, foram fechadas pela Anatel que agia respaldada pela lei 9.612 e pala política de concessão de emissoras de rádio no Brasil.

NOTAS

[1] Esse artigo é uma integração de duas pesquisas realizadas em tempos diferenciados na mesma comunidade. Catarina T. F. Oliveira realizou pesquisa na década de 90, período áureo da rádio Santo Dias. Katharine Magalhães retornou à comunidade em 2006 e processou sua investigação.

[2] Essa experiência tem sido analisada por pesquisadores; ver mais sobre o Banco Palmas em Rodrigues (2002).

[3] Optamos por não mencionar o nome desta pessoa por não ter sido possível ouvi-la para a produção deste trabalho. Como se verá logo adiante, ela acabou se afastando da rádio depois do segundo lacre, devido à troca de acusações entre os comunicadores que não se conformavam com o desfecho da fiscalização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PERUZZO, C. M. K. A comunicação nos movimentos populares: participação na construção da cidadania. Petrópolis: Vozes, 1998.

______________. “Participação nas rádios comunitárias no Brasil”. XXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, GT de Cultura e Comunicação Popular, set. 1998.

RODRIGUES, F. “A socioeconômica solidária, conjunto palmeiras”. In: MATTOS, G. A.; PALMEIRA, M. G. S. Op. Cit.

*Catarina Tereza Farias de Oliveira é professora adjunta da Universidade Estadual do Ceará. Katharine de Sousa Marques Magalhães é jornalista graduada pela Universidade Federal do Ceará.


Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]