Nº 11 - Fev. 2009
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO VI
 

 

Expediente
Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 



DOSSIÊ
- Mídia Digital II - Cenários
 

As tecnologias da hipermídia e seus impactos no webjornalismo

Por Mauro de Souza Ventura*

Reprodução

RESUMO

O texto estuda os impactos das tecnologias da hipermídia e do hipertexto sobre os elementos fundamentais do trabalho jornalístico em mídias digitais. Os mecanismos de construção e o processo de produção da notícia digital são analisadas a partir dos referenciais teóricos desenvolvidos por Deleuze e Guattari, Jean Clément e Lúcia Leão. Por fim, conclui-se que ocorre uma disjunção entre prática hipertextual e critérios de noticiabilidade e pergunta-se sobre a possibilidade de se criar novos expedientes discursivos a partir do conceito de complexidade.

PALAVRAS-CHAVE: Hipermídia / Narrativa Jornalística / Critérios de Noticiabilidade

1. Introdução

Qualquer abordagem sobre as particularidades da narrativa hipertextual pressupõe uma referência, ainda que breve, aos elementos que tornam possível esta escrita cujas principais características são a não-linearidade, a multiplicidade de lexias e a capacidade de interconectar diferentes documentos digitais. Também não é possível discorrer sobre o hipertexto sem referir-se ao conceito correlato de hipermídia, dispositivo tecnológico que ativa os recursos hipertextuais para se estruturar em suportes marcados pela multimidialidade.

As tecnologias da hipermídia e do hipertexto são elementos inseparáveis, que viabilizam a construção de um texto fragmentado, atomizado em seus elementos constitutivos, ou seja, as lexias. Conforme Landow, “essas unidades legíveis passam a ter vida própria ao se tornarem menos dependentes do que vem antes ou depois na sucessão linear”.

Assim, é a tecnologia hipertextual que permite que a web seja uma teia, uma malha de informações interconectadas, numa sucessão de links que conduzem o usuário a diferentes pontos do sistema (Apud Leão, 2001, p. 29).

Outra característica fundamental da não-linearidade do hipertexto está no surgimento de uma seqüência arbitrária de links, o que conduz o problema para o conceito de complexidade, entendido aqui como algo que é tecido em conjunto, traço maior da hipermídia.

No caso da hipermídia, o que define a trama do tecido complexus é que este se forma através de um jogo circular onde os binômios ordem/desordem, acaso/determinação, interação/retroação se conjugam de forma infinita e simultânea (Cf. Leão, 2001, p. 64).

Esta organização policêntrica dos sistemas hipermidiáticos altera o sentido de texto principal e texto secundário. Como relata Landow (Apud Leão, 2001, p. 73), “o hipertexto redefine o central ao recusar dar garantia de centralidade a qualquer coisa, a qualquer lexia, por mais tempo que um olhar repouse sobre ela”. Assim, se cada site representa um centro, estamos na verdade diante de um sistema acentrado. Ao mesmo tempo, cumpre assinalar que a natureza desta escrita topográfica é móvel; logo, a arquitetura da informação deve ser concebida como algo mutável e flexível.

2. A linguagem no hipertexto: rizoma

A estrutura aberta da escrita hipertextual remete-nos ao conceito de rizoma, desenvolvido por Deleuze e Guattari num contexto de crítica aos procedimentos dicotômicos da razão ocidental. Para os autores, o sistema rizomático opõe-se ao modelo arborescente de pensamento e caracteriza-se pelos princípios de conexão, heterogeneidade e multiplicidade.

Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. A árvore lingüística à maneira de Chomsky começa ainda num ponto S e procede por dicotomia. Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço lingüístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas” (Cf. Deleuze; Guattari, 1995, p. 10).

A multiplicidade é dada pela própria natureza da Web, rede cujo crescimento e vitalidade “não se encontram localizados em um ponto central e específico” (Cf. Leão, 2001, p. 24).

Nesse aspecto, é preciso assinalar que o conceito de hipertexto está sendo pensado em sua íntima relação com o conceito de hipermídia, potencializados pela noção de rede e de computador. Conforme Lúcia Leão:

(...) o que faz da Web uma teia, uma rede na qual uma complexa malha de informações se interligam é a própria tecnologia hipertextual, que permite os elos entre os pontos diversos. Cada página, cada site, traz em si o potencial de se intercomunicar com todos os outros pontos da rede (Cf. Leão, 2001, p. 24).

Ao mesmo tempo em que aumentam as conexões, a própria morfologia da rede vai se transformando numa teia de multiplicidades cuja palavra síntese é o rizoma. “Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz”, escrevem Deleuze e Guattari (Cf. 1995, p. 11). Estamos diante de um sistema organizado de forma policêntrica, em que as noções de interior e exterior, central e periférico, principal e secundário deixam de fazer sentido quando se trabalha com o conceito de rizoma. “Pode-se dizer que, na Internet, o centro está em toda parte e em lugar nenhum, o que nos leva à definição de um sistema acentrado”, define Leão (Cf. 2001, p. 71).

Esta estrutura dinâmica propiciada pela tecnologia da hipermídia produz um documento que pode ser acessado de diversas maneiras. Heylighen (Apud Leão, 2001, p. 16) denomina esta navegação por caminhos diversos de um documento de “hipermídia distribuída”, por agregar três elementos: hotlinks, informações oriundas de qualquer mídia e distributividade, numa referência ao fato de que “os documentos conectados podem estar situados em várias partes do mundo, mantidos por equipes diferentes” (Cf. Leão, 2001, p. 16).

Por sua natureza não-linear, descentralizada, rizomática e multivocal, a escrita hipertextual tem sido comparada ao funcionamento da mente humana que, numa seqüência infinita de associações, levaria a um estado de anarquia labiríntica (Cordeiro, 23 mar. 2007; Aquino, 21 fev. 2007).

Leão, por sua vez, considera que a arquitetura de um hiperdocumento baseada na multiplicidade de lexias cria no usuário uma percepção fragmentada, o que pode explicar o aparente caos da metáfora do labirinto:

Quanto mais elos um documento oferecer, mais mobilidade é potencialmente possível. Porém, esse tipo de amarração tem gerado um outro problema: uma construção baseada em uma multiplicidade de lexias. A exploração do espaço computacional mediante fragmentos atomizados cria uma percepção também fragmentada (Cf. Leão, 2001, p. 111).

Com efeito, a escrita topográfica do hipertexto rivaliza e rompe com a hierarquização do conteúdo. Como afirma Bolter,

Em lugar de hierarquias, nós temos uma escrita que não é apenas tópica: nós podemos chamá-la também de ‘topográfica’. (...) Não é a escrita de um lugar, mas, mais propriamente, uma escrita com lugares, com tópicos concebidos espacialmente (Apud Leão, 2001, p. 112).

A passagem acima permite que se reflita sobre as conseqüências para a prática jornalística de uma escritura multidimensional, fragmentada em blocos atomizados.

Interessa indagar sobre o funcionamento dos elementos básicos do trabalho jornalístico, como a hierarquização e a organização do conteúdo, diante dessa escrita rizomática, que se conecta em múltiplas direções e está sempre aberta a modificações.

Como atestam Deleuze e Guattari, o hipertexto tem a marca do rizoma, que é como uma cartografia, “um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga” (Cf. Deleuze; Guattari, 1995, p. 19).

3. Implicações do hipertexto no webjornalismo

Essa escrita nômade e rizomática instaura um novo conceito de texto, não mais amparado na tradição do códice impresso e da escrita fonética. Ao mesmo tempo em que conduz ao aparecimento de novos gêneros textuais, o hipertexto nos coloca diante de questões ligadas à teoria do texto. Como escreve Andréia Cordeiro, a textualidade digital contribui para instaurar novas práticas de leitura e de escrita.

“Autor e leitor são dois conceitos que sofrem uma grande mudança, diluindo-se. Assim sendo, quem escreve e quem lê passam a ser duas faces de uma mesma moeda” (Cordeiro, 23 mar. 2007). Com o jornalismo colaborativo, por exemplo, o leitor deixa de ser apenas consumidor da notícia para constituir-se também em produtor.

Os dispositivos hipertextuais parecem levar às últimas conseqüências o processo de artificialização da leitura, a tal ponto que realizam um descentramento do texto.

Nesse sentido, do ponto de vista do leitor, até mesmo uma nota de rodapé, secundária diante do texto principal, assume uma autonomia relativa, na medida em que pode se constituir em ponto de entrada para o documento. Estamos diante de um conceito de texto aberto, em que o usuário, em sua prática de leitura, realiza seu próprio percurso.

Como anota Cordeiro, “a virtualidade deste modelo hipertextual veio tornar ambígua e quase inexistente a relação de hierarquia que o texto mantinha com o autor” (Cordeiro, 23 mar. 2007).

Ora, do ponto de vista jornalístico, a arquitetura da informação tem trabalhado a organização de uma página a partir do fundamento básico do jornalismo, que é a hierarquização do conteúdo. A não-linearidade e o multicentramento, duas das principais características do dispositivo hipertextual, podem conduzir o leitor para uma situação de desorientação ou de caos.

Outra implicação significativa no fazer jornalístico provocada pelo surgimento da narrativa hipertextual está na interatividade. Mais e mais a participação do leitor tem sido considerada nas rotinas jornalísticas, seja em fóruns, chats, enquetes ou até mesmo na criação de conselhos de leitores. Este tipo de participação já tem sido objeto de estudo. Interessa-nos, aqui, examinar as implicações do hipertexto cooperativo na prática jornalística.

Cordeiro, por sua vez, argumenta que não é possível considerar a prática hipertextual da Internet de hoje como verdadeiramente interativa, já que o usuário, como observa Aquino, “não interage totalmente nas páginas, porque não possui total liberdade e flexibilidade de se manifestar” (Aquino, 21 fev. 2007).

Na medida em que o usuário se torna co-desenvolvedor de uma página informativa, por exemplo, a primeira conseqüência é o desaparecimento da escrita individual. A segunda e, a meu ver, mais radical conseqüência, está na transformação do cidadão em potencial jornalista. Assistimos, já há uma década, pelo menos, esse processo de fragmentação da instância da mídia, proporcionada pela miniaturização dos equipamentos de captação de imagens e pela rapidez de transmissão gerada por uma sociedade em rede.

Com efeito, poderíamos perguntar, como o faz Ignácio Ramonet, sobre o que acontecerá com o jornalismo se todos puderem ser jornalistas? Longe de levar a discussão para questões corporativistas, ou de defesa da profissão em si, o que se pretende questionar é os limites e possibilidades da aplicação da tecnologia do hipertexto na atividade jornalística em sua especificidade.

Também as novas tecnologias favorecem o desaparecimento da especificidade do jornalismo. Ao mesmo tempo em que as tecnologias da comunicação se desenvolvem, o número de grupos ou de indivíduos que comunicam é maior. Assim, a Internet permite a qualquer pessoa não sé ser efetivamente, à sua maneira, jornalista, mas até encontrar-se à frente de uma mídia de alcance planetário (Cf. Ramonet, 1999, p. 56).

Para Ramonet, esta questão está no âmago das discussões sobre a crise da mídia na atualidade. Com a narrativa hipertextual, as categorias de autor e leitor fundem-se numa só instância, na medida em que os recursos de hipermídia instauram uma nova prática de recepção: ao percorrer um hiperdocumento, o internauta cria um outro documento virtual, constituído pelas escolhas que faz no interior da Web. Nesse sentido, o leitor é também um construtor de narrativa, um leitor-editor.

O risco de perda da especificidade jornalística, apontado por Ramonet, decorre de um uso cada vez mais freqüente de ferramentas que permitem a participação ativa do usuário na construção coletiva da informação. As potencialidades da escrita hipertextual colocam em questão preceitos básicos do jornalismo, principalmente o suposto papel da mídia de organizar o caos da informação, selecionando e hierarquizando os fatos do dia ou da semana para o leitor, segundo interesses pré-estabelecidos pelos emissores das mensagens jornalísticas.

A questão passa evidentemente por uma política de acesso e de criação de links, que ocupa posição central na tecnologia do hipertexto. Se, além de reescrever o texto, o leitor puder também exercer a função de editor, controlando assim o processo de produção da notícia, não seria a própria instância da mídia que correria o risco de desaparecer? É lícito e exeqüível pedir que todos os cidadãos se transformem em jornalistas? Talvez seja mais sensato pensar que a emergência do jornalismo colaborativo possa contribuir para uma maior horizontalidade do processo de difusão da informação, que tem permanecido por tempo demais nas mãos de uns poucos.

Se hoje se discute o futuro e o papel das mídias tradicionais frente ao avanço inevitável e necessário das mídias digitais, é porque estamos diante de uma demanda histórica por maior democratização do acesso à informação e, não menos, pela necessidade de se modificar alguns padrões e rotinas inerentes ao processo de produção jornalística. E, nesse caso, parece não haver dúvida de que a narrativa hipertextual está ao lado do receptor.

4. Textualidade digital e discurso jornalístico

Vê-se, assim, que o preço a pagar pela estruturação da escrita hipertextual segundo os critérios do discurso jornalístico é o colapso de alguns dos fundamentos do trabalho jornalístico. Neste ponto, torna-se necessário buscar uma redefinição do conceito de texto jornalístico a partir do impacto desses novos paradigmas. Antes, porém, convém examinar o campo semântico que recobre o próprio conceito de texto.

A primeira dessas implicações está na relação entre texto e livro. Na história das tecnologias do escrito, o texto existe em função de seu suporte material, no caso, o livro. A textualidade digital instaura uma nova relação entre esses elementos. Veja-se o caso dos processos de digitalização. Quando se digitaliza um texto no modo “somente texto”, por exemplo, este torna-se manipulável eletronicamente. Como assinala Jean Clément (2004), é o próprio livro enquanto objeto que desaparece, juntamente com as referências de paginação e os instrumentos de leitura. Estamos diante de uma alteração nos modos clássicos de leitura.

“Nessa perspectiva, o texto não é mais lido de maneira linear em seu eixo sintagmático, é sondado em seu eixo paradigmático”, escreve Clément (Cf. 2004, p. 31). Para além do texto eletrônico, é a técnica do hipertexto que aprofunda a mudança epistemológica em curso, passagem para uma visão mais complexa e menos fechada do conceito de texto.

Em outras palavras, passagem do livro ao texto. Como assinala Barthes (Cf. 1988, 74), texto enquanto passagem, travessia, disseminação. A textualidade digital e a noção de rede instauram, assim, um novo conceito de texto, desligado do livro enquanto objeto. “O texto não passa de um fluxo imaterial cujo suporte é inacessível ao leitor”, escreve Clément (Cf. 2004, p. 35). As conseqüências do desaparecimento da idéia de suporte são profundas também no que se refere aos conceitos de autor e leitor.

Uma relação dialética agora permeia as funções clássicas da textualidade. No ciberespaço, o livro enquanto objeto desaparece e o texto assume sua materialidade.

Como observa Nunes, “os utilizadores da Net são igualmente obreiros que assumem a construção de uma narrativa baseada na interactividade permanente” (Cf. Nunes, 2007, p. 4). Ainda que o usuário realize operações pré-estabelecidas pelo seu navegador (browser), é certo que os percursos são dados não mais pelo autor e sim pelas escolhas do leitor no interior da arquitetura da informação. Nesse sentido, navegar pelo labirinto da hipermídia é já produzir sentido, o que transforma o leitor de hipertexto também num autor.

Isso sem falar na multiplicidade de autores possibilitada pela rede, fato que provoca uma desvalorização da noção de autoria. “Com o apagamento da figura do autor, o texto perde o que sustenta, em parte, sua autoridade. Sua publicação em rede completa essa desestabilização” (Cf. Clément, 2004, p. 34).

Cabe destacar que o dispositivo hipertextual questiona a textualidade em três atributos essenciais: a fixação do escrito, sua linearidade e, principalmente, o caráter finito imposto pelo livro-objeto. Conforme Babo, os traços do hipertexto são:

O abandono da fixidez pela maleabilidade ou mutabilidade constante, o abandono da linearidade pela natureza reticular, assim como a abertura às remissões inter e intratextuais, o que provoca um descentramento quer da linearidade, quer do próprio núcleo textual, para além do consequente descentramento do nó-da-intriga e da unidade de ação, no caso dos textos narrativos (Cf. Babo, 2004, p. 108).

 A passagem acima é importante para se pensar a narrativa jornalística. Ora, quais as implicações deste descentramento do núcleo textual e da unidade de ação para os elementos do discurso jornalístico?

5. Critérios de noticiabilidade

A pergunta nos conduz a um problema central no processo de produção jornalística, que é o dos valores-notícia, ou também denominados critérios de noticiabilidade. Como assinala Traquina (2005), os valores-notícia são elementos centrais da cultura jornalística, pois são eles que determinam “se um acontecimento ou assunto é susceptível de se tornar notícia, isto é, de ser julgado como merecedor de ser transformado em matéria noticiável e, por isso, possuindo valor notícia” (Cf. 2005, p. 63).

Não está no escopo deste artigo efetuar um estudo sobre os critérios de noticiabilidade em si, mas destacar aqueles fatores que podem estar sujeitos a implicações resultantes da aplicação da tecnologia hipermídia no âmbito jornalístico.

Assim, cabe investigar como operam os valores-notícia e que sentido adquirem no interior do discurso jornalístico em suporte digital. De acordo com Ericson, Baranek e Chan (Apud Traquina, 2005) são seis os valores-notícia de construção: simplificação, amplificação, relevância, personalização, dramatização e consonância. Destes, abordaremos três – a simplificação, a dramatização e a consonância – por entendermos que sofrem modificações quando inseridos no processo de produção da notícia digital.

O primeiro critério de noticiabilidade é, como dissemos, a simplificação e pressupõe que o potencial de compreensão de uma notícia pelo leitor seja inversamente proporcional ao grau de ambigüidade e de complexidade. A esse respeito, escreve Traquina:

Uma notícia facilmente compreensível é preferível a uma outra cheia de ambigüidade. (...) Os jornalistas têm obrigação de escrever de uma forma fácil de compreender; por simplificação, portanto, entendemos tornar a notícia menos ambígua, reduzir a natureza polissêmica do acontecimento (Cf. Traquina, 2005, p. 91).

O processo de constituição do discurso jornalístico, que se verifica no decorrer do século XIX, se faz através da incorporação de expedientes narrativos – como a legibilidade e a descrição – que contribuem para estruturar a reportagem enquanto gênero específico do jornalismo.

A legibilidade é o mecanismo pelo qual um enunciado adquire eficácia para transmitir uma informação. De acordo com Philippe Hamon (1972), o discurso legível é aquele que se estrutura a partir de constantes reapresentações, em determinadas partes do texto, de informações já referidas anteriormente. Esta característica torna o texto informativo tautológico e está associada a um desejo pedagógico de transmitir uma informação e evitar ao máximo todos os ruídos que possam interferir no bom recebimento de uma mensagem. Em outras palavras, trata-se, como diz Traquina, de evitar a ambigüidade.

Ora, a escrita hipertextual coloca em questão exatamente a pertinência deste paradigma da simplificação, buscando repensar o fenômeno do crescimento avassalador da informação a partir do campo epistemológico da complexidade. Conforme Clement (1998), o hipertexto pode ser considerado uma resposta apropriada a este novo paradigma da complexidade. Nesse sentido, ao reduzir a natureza polissêmica do acontecimento, o jornalismo exclui do âmbito jornalístico a diversidade, figura capital da complexidade.

L’ypertexte instrumentalise la complexité. En d’autres termes, l’emergence de l1ypertexte, qui est contemporaine de celle de la notion épistemologique de complexité, apparaît à certains égards comme une réponse à la difficulté posée par lirruption de la complexité dans le champ de la pensée et du discours (Cf. Clément, 1998, p. 39-40).

Inserido no paradigma da simplificação, o critério de noticiabilidade em questão segue os padrões do determinismo científico, bem aquém da complexidade e da ruptura possível quando se trabalha com o conceito de hipertexto.

A ambigüidade e o ruído são concebidos enquanto fatores de perturbação numa dada situação de comunicação. Do ponto de vista da complexidade, esses fatores que geram desordem no sistema passam a ser concebidos como elementos cuja presença é não apenas inevitável como necessária. A desordem e o caos não são somente resíduos que permanecem após a operação de organização dos sistemas. Pelas palavras de Clément:

Le désorde n’est plus seulement le résidu de nos tentatives pour comprendre le monde, il est irrémédiablement inscrit au coeur de l’univers conçu comme um système complexe. Nous vivons et pensons désormais sous le paradigma de la complexité (Cf. Clément, 1998, p. 41).

O segundo valor-notícia a ser afetado pelas implicações do hipertexto é a continuidade, e seu correlato, consonância. Segundo Traquina, um “acontecimento específico é mais noticiável se for contínuo a acontecimentos prévios, no sentido em que o repórter é capaz de o colocar num enquadramento saliente” (Cf. 2005, p. 74).

Dito de outro modo, e ecoando as observações de Ericson, Baranek e Chan (Apud Traquina, 2005), a noticiabilidade está ligada a um encadeamento prévio de fatos, em que o acontecimento “novo” precisa ser inserido numa narrativa já estabelecida. “A noticiabilidade implica o estabelecimento de um fluxo de notícias em termos de estruturas para os visualizar”, escreve Traquina (Cf. 2005, p. 74). 

O novo, por si só, não tem valor-notícia; é preciso ainda que ele esteja inserido num enquadramento familiar, ou seja, é necessário que haja uma regularidade, uma consonância.

Com efeito, este critério entra em conflito direto com um dos atributos essenciais do hipertexto, que é a descontinuidade. Alguns autores (Koch, 2007; Salaverría, 2005) preferem o uso do termo não-linearidade para caracterizar a estrutura reticular e não-seqüencial do hipertexto. Cumpre assinalar, porém, que, como argumenta Clément, a não-linearidade não implica obrigatoriamente descontinuidade textual: “la non linéarité doit être define du point de vue du dispositif et non pas du point de vue discours” (Cf. 1995, p. 3).

É, pois, o percurso de leitura/escrita arborescente que está em questão. Até mesmo textos multilineares podem derivar de dispositivos que não se inserem no paradigma da complexidade. Salaverría (Cf. 2005, p. 105) classifica as estruturas discursivas axiais ou lineares em unilineares e multilineares, que, por sua vez, subdividem-se em arborescentes e paralelas.

Para que uma estrutura hipertextual seja reticular são necessários pelo menos três nós. Se a mesma apresentar apenas dois nós será classificada de axial, já que estabelece apenas um único roteiro de ida e volta. Do ponto de vista do dispositivo tecnológico já se poderia concluir que o valor-notícia da continuidade não faz sentido na escrita verdadeiramente hipertextual.

Mas vejamos a questão do ponto de vista narrativo. Uma das figuras do discurso fundamentais para se compreender o funcionamento do hipertexto é o assíndeto, que ocorre sempre que há uma disjunção ou supressão dos termos de ligação entre duas sentenças. O efeito é um deslocamento da linguagem ocasionado pela ausência de termos de ligação. Ruptura, surpresa e desorientação são os efeitos do assíndeto no discurso. Escreve a esse respeito Clément:

Dans l’hypertexte informatif, explicatif ou argumentatif, l’asyndète est moins biens supportée par le lecteur, qui a besoin qu’on lui fournisse une justification intellectuelle aux sauts de la pensée et deteste passer du coq à l’âne (Cf. Clément, 1995, p. 7).

Enquanto, por exemplo, a ficção hipertextual pode transformar esta figura de linguagem num modo narrativo, o webjornalismo impõe limites, já que a desconstrução da linguagem pode comprometer o aspecto cognitivo.

O terceiro valor-notícia que destacamos é a dramatização. Aqui estamos diante de uma ênfase para os aspectos emocionais e conflituais do acontecimento, questão que nos remete à função narrativa do discurso jornalístico. Conforme Sodré e Ferrari (1986), os expedientes discursivos típicos da narrativa sustentam-se na ação e no detalhamento dos fatos, transformando o leitor em testemunha do ocorrido.

[A narrativa] traz os fatos para um enunciado, isto é, exprime a manifestação desses fatos através de um discurso que se oculta como discurso: não se percebe que há alguém narrando; mais parece que os acontecimentos têm vida própria e se exibem diante do leitor (Cf. 1986, p. 21).

Este efeito de que a história parece contar-se sozinha não é outra coisa senão o efeito de real provocado pela ausência de signos do enunciante. Isto fica evidente quando se examinam os recursos utilizados pela narrativa jornalística, principalmente no que se refere à descrição espacial da ação, à preferência pela humanização do relato e pelo enfoque dos modos de vida e dos valores culturais. Em texto hoje clássico, Barthes denomina esse fenômeno de ilusão referencial e ocorre sempre que o enunciador deixa “o referente falar por si só” (Cf. Barthes, 1988, p. 149).

Nesse sentido, a dramatização é o fio condutor da narrativa, que desdobra as clássicas perguntas do lead e faz com que os elementos da história sejam conduzidos pelo autor (no caso, o repórter) sem que este se confunda com qualquer das personagens.

Estamos no plano das narrativas oniscientes e lineares, base sobre as quais se constitui o discurso do jornalismo. A pergunta necessária aqui é: pode a escrita hipertextual suplantar o discurso onisciente da mídia? É o que procuraremos responder a seguir.

6. Estratégias discursivas no hipertexto

A disjunção entre prática hipertextual e critérios de noticiabilidade no jornalismo que procurou-se delimitar neste artigo conduz agora a discussão para a busca de possibilidades discursivas no jornalismo on-line. Como dissemos há pouco, Salaverría (Cf. 2005, p. 101-108) estabelece duas grandes estruturas narrativas para a notícia digital: as axiais e as reticulares. Como o próprio autor esclarece, não se trata de modelos, mas de tentativas de descrição das possibilidades discursivas na web.

Somente um trabalho de observação empírica poderia confirmar tais possibilidades ou descrever as variações de construção hoje empregadas pelos principais sites de webjornalismo.

Outra questão de relevância está no uso das potencialidades do hipertexto, que requer a elaboração de um itinerário de leitura que ultrapasse a simples inserção de links nas reportagens. A esse respeito, anota Salaverría:

Para elaborar textos periodísticos realmente hipertextuales, el periodista debe aprender a construir estructuras discursivas compuestas mediante la articulación de fragmentos textuales o incluso multimedia (Cf. Salaverría, 2005, p. 101).

 A construção de sentidos no hipertexto inclui a forma e a ordem na qual este discurso se estrutura, ou seja, o itinerário seguido pelo leitor no interior do documento. Deste modo, o hipertexto somente se constitui em figura da complexidade na medida em que se estrutura de forma reticular, o que implica, como dissemos anteriormente, a existência de pelo menos três nós, permitindo assim mais de um itinerário de ida e volta.

Estamos diante de um sistema acentrado e não-hierarquizado, em que os elementos são todos intercambiáveis. Num contexto maior, este raciocínio conduz à teoria das organizações acentradas. Ocorre que pensar num jornalismo que não esteja estruturado a partir de um centro organizador pode parecer inviável. No entanto, é preciso pensar em termos de pares categoriais, como ordem/desordem, simples/complexo, determinação/acaso, seqüencial/não-seqüencial.

Como escreve Leão, “só há ordem complexa nos sistemas hipermidiáticos se existir a conjunção entre desordem e ordem” (Cf. 2001, p. 65). Se estamos defendendo a possibilidade de uma práxis jornalística no âmbito da complexidade, esta somente se viabiliza sobre o território da simplicidade, do seqüencial e da ordem. A organização da complexidade se faz, assim, no plano de uma estrutura policêntrica.

Levada ao extremo, a estrutura reticular do hipertexto influi na própria organização do material noticioso, na medida em que a narrativa jornalística opera num registro essencialmente linear. Como observa Salaverría, “recurrir a uma estructura reticular no es, por tanto, la mejor alternativa para narrar relatos” (Cf. 2005, p. 106). Somente aquelas informações que não necessitam de um eixo podem ser estruturadas reticularmente, como é o caso de elementos como datas, cifras, indicadores, infografias, listas, tópicos etc.

No webjornalismo, a linearidade narrativa ainda permanece intocada e é de se perguntar sobre a possibilidade de introdução de novos expedientes discursivos construídos a partir dessas potencialidades trazidas pela tecnologia hipermidiádica.

As limitações não são poucas, haja vista que pressupor um jornalismo sem hierarquização de conteúdo equivale a praticar um jornalismo sem capa e sem manchetes, ou seja, sem primeira página. Acreditamos que uma das possibilidades seria a ampliação do uso de recursos do tipo slide show, que permitiria um rodízio permanente do conteúdo na home-page.

Os critérios de edição no webjornalismo ainda estão baseados na lincagem do tipo matéria principal – conteúdo relacionado, e distantes, portanto, de produzir estruturas reticulares, acentradas, desprovidas dos critérios de seleção do material noticioso, que sempre são, em alguma medida, arbitrários.

Algumas alternativas começam a surgir com a emergência de narrativas híbridas cuja organização interna lembra uma encenação dramatúrgica, o que conduziu Lévy a compreender a escrita hipertextual como uma montagem de espetáculo, cujo processo de construção já não pode ser enquadrado no modelo clássico da escrita jornalística. No entanto, é apenas um começo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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*Mauro de Souza Ventura é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru).


Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]