Destaques
Eu,
o Velho Chico
Por
Cremilda Medina*
Ajudei
os sertanistas
Já
me chamaram "rio sem história", depois reconheceram
que sou importante na unidade e na integração
nacional. Coisas da civilização moderna, porque
desde tempos não registrados, sou o caminho das águas
para os andarilhos de terras de Santa Cruz. Ficaram para sempre
aqui, no meu primeiro trecho navegável, as marcas dos
índios que habitaram nas minhas margens: Pirapora, de
origem tupi, conjuga pira (peixe) e poré (salto). A cachoeira
onde o peixe salta. Isso me faz lembrar guerras antigas. Os
índios cariris, aqui abrigados das lutas na costa atlântica,
atacaram os bandeirantes em 1687. A bandeira de Fernão
Dias Paes Leme desceu o Rio das Velhas e, na batalha que se
travou na altura das cachoeiras de Pirapora, os nativos venceram
os invasores.
Do
tempo das capitanias, das sesmarias, das entradas e bandeiras,
do século 16 ao século 18, o grande sertão
em que corro sofreu embates de que sou testemunha. Que seria
dos exploradores do interior do continente sem os leitos dos
rios? Quando, no século 18, trilhas e picadas abrem caminhos
para o ciclo do gado e o ciclo do ouro, muito servi aos sertanistas
que percorriam o Brasil. Agradeço à imaginação
poética dos historiadores que me respeitam e escrevem:
"(...)
nos primeiros séculos do descobrimento do Brasil, os
principais componentes do nosso Grande Sertão: branco,
negro, índio, terra, ouro e gado. E, abraçando
a todos, o rio São Francisco. Imponente, o grande rio
fazia rolar as águas, ora cristalinas, ora turvas, às
vezes serenas, às vezes intrépidas". [do
livro "Pirapora, Um Porto na História de Minas",
2000]
Será
que minha grandeza de rio e minha generosidade em peixes estão
ameaçadas no século 21? Quem chega a Pirapora
percebe, de repente, a paz do leito, o ímpeto das águas
e das cachoeiras cessa. Convido então o visitante a navegar.
Mas os barcos ou suas carcaças estão à
margem, abandonados à ferrugem. De fato, só um
resiste, o Benjamin Guimarães, de heróica memória.
Sinto falta dos turistas que vinham afagar meu leito. Tomara
que no próximo ano eles voltem, deslumbrados, jovens,
crianças, gentes de todas as idades, apaixonadas pelo
Velho, sô. Os 50 mil habitantes de Pirapora, mais as gentes
de Buritizeiro, na outra margem, ligados pela velha ponte Marechal
Hermes que me atravessa (morro de susto quando os carros miram
os trilhos e rangem as madeiras), lutam para manter a minha
e a vida deles.
Procurem
meu amigo
Está
certo que na primeira metade do século 19 eu tinha a
companhia de umas setenta almas que moravam em quinze casinhas.
Na segunda metade, 150 pessoas construíram mais 30, 35
habitações. Como cresceu esse Brasil no século
20. O município, criado em 1911, não respeitou
a origem indígena: esquecera que aqui o peixe salta,
e passou a se chamar São Gonçalo das Tabocas.
Invencionices de políticos. Foi só em 1923 que
retomaram o nome original da cidade, Pirapora. Ainda bem que
corrigiram. Não dá para imaginar a história
antes do século 16, em que o território era habitado
no litoral e no interior por alguns milhões de índios,
meus ancestrais navegantes.
Mas
no século 20, os brasileiros se multiplicam e capricham
na ocupação do presente e na construção
do futuro. Você conhece dona Maria Eugênia? Se encontrar
com ela, ouça só: aos 75 anos, firme e alegre,
mulher de forte presença como muitas que você vai
encontrar no interior de Minas, Goiás, Bahia, Rio Grande
do Norte, enfim, nessas terras longe das águas atlânticas,
conta os vinte e três filhos, nove, infelizmente, já
morreram, mas aí estão onze mulheres e três
homens para contar a história.
Dona
Maria Eugênia, matriarca do povoamento contemporâneo
do sertão, ainda criou mais 28 meninos, seus afilhados,
que vieram da roça com a roupa do corpo, muitas vezes
sem sapatos. A sua casa, irrigada pelas minhas águas,
deu teto, comida e roupa lavada para todos os necessitados.
O pai disciplinava o batalhão no tabefe. E não
é preciso, sô? Na fazenda da família ou
na casa em Pirapora, a filharada podia ir a festa ou o que fosse,
mas estava em pé às 6 horas, na marra (ou melhor,
no bofetão). E mais: todos precisavam estudar. Muito
ouvi da sabedoria popular: ofício é benefício.
Sonhei, como dona Eugênia, com a vida e o crescimento.
Além de me usarem para transporte fluvial, tive esperança
na companhia dos trilhos dos trens. Parecia que, no início
do século 20, a coisa ia engrenar, seríamos companheiros
do progresso e bem-estar dos que por aqui habitam. Mas tudo
desandou em frustração.
Olhe
ali o prédio da antiga Estação Ferroviária,
construído em 1910, que fazia parte de uma rede para
transportar mercadorias e passageiros. De 1979 a 1996, com a
privatização da Rede Ferroviária Federal,
a linda estaçãozinha ficou como ponto de apoio
da Ferrovia Centro-Atlântica e em 1996 deu os últimos
suspiros. No ano seguinte, veja só, o esforço
heróico da comunidade e dos políticos da terra
conseguiu salvar minha companheira. Havíamos casado -
o porto e a estação - em comunhão de bens
com o Brasil grande, e águas e transportes fartos. Hoje
o visitante se alegra porque salvaram a estação
e ela abriga os livros da Biblioteca e a Secretaria Municipal
de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer. Se tiver qualquer dificuldade
para pesquisar minha história, é só procurar
meu amigo, Marco Aurélio Oliveira de Almeida na Secretaria
de Cultura. Ele tem raízes na terra e paixão pela
viagem ao patrimônio de Pirapora.
Leito
manso, vapor de guerra
Se
dá licença, continuo com a palavra. Imagine você
que, no meu leito manso, fui sulcado por um vapor que levava
homens sertanejos para as lides da guerra. Esse barco que se
avista aí aportado em Pirapora, o único pintadinho,
quase pronto para voltar a navegar, sabia que na Segunda Guerra
Mundial ele e eu servimos para deslocar tropas do exército
brasileiro? Os soldados iam do coração do País
para o litoral de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, faziam
o patrulhamento da costa brasileira e alguns até embarcariam
para a Itália, servir na Força Expedicionária.
Quem diria, esse barco de nome Benjamin Guimarães, um
verdadeiro cartão-postal de Pirapora.
Minha
história remonta a tempos planetários, mas já
podemos também cultivar um certo respeito pelo Velho
Benjamin. Afinal ele foi construído em 1913, nos Estados
Unidos, navegou em águas nobres (só porque são
do Norte) do Mississipi, depois andou por aí na Bacia
Amazônica. Na segunda metade da década de 20, a
empresa Júlio Guimarães comprou o barco e montou
no porto de Pirapora. O nome foi uma homenagem ao pai do proprietário.
A aquisição fazia parte do grande sonho das minhas
águas. Teria um futuro promissor para todos os tempos.
Assim, na década de 40 foi incorporado à Cia.
Indústria e Viação de Pirapora. Depois
da guerra, nos anos 1950 foi se juntar com as outras embarcações
ao Serviço de Navegação do São Francisco,
mais tarde passou para a Franave e a Prefeitura.
Há
16 anos as glórias do Velho Benjamin ficaram à
deriva. O último barco movido a lenha, dizem que o último
no mundo, não sei se é exagero, virou patrimônio
do município em 1997, mas a população ribeirinha
da região quase perdeu as esperanças: o vapor
seria restaurado? Foi uma longa luta, daquelas que, a gente
sabe, acontecem com os vestígios históricos. Por
fim, um convênio entre a Prefeitura Municipal e o Ministério
do Turismo e Esporte, no valor de R$ 325 mil, garantiu a recuperação
que começou em 2002 e agora está na última
etapa. Veja só o entusiasmo dos que trabalham nos últimos
retoques. O povo da terra, a administração de
Pirapora e os especialistas de arquitetura e restauração
que acompanharam o trabalho comungam o mesmo respeito pelo meu
companheiro singrador. A esperança que todos curtimos:
logo logo o barco estará no meu leito levando os turistas
de Pirapora a municípios vizinhos.
Eu
era temido
A
resistência dos velhos como eu e o Benjamin Guimarães
não se dá ao luxo das tristezas, apesar das frustrações.
Veja a meninada que cresce, vai para a escola, procura emprego
no sertão. Pirapora se orgulha de suas oito indústrias,
com destaque para o ferro silício, silício metálico
e têxteis. A vida urbana segue o rumo das modernidades,
a vida rural conta comigo para a irrigação. Os
frutos da terra - mamão, uva, melão, pinha, goiaba
-, além da produção em pequena escala de
milho, feijão, arroz, mandioca, tomate, alface e banana,
alimentam produtores e consumidores e minhas águas os
alimentam. Bom demais. E quem pode esquecer a pesca?
Toda
vez que a adversidade tolhe a alegria do interior da terra,
o povo se prepara para espantá-la. Para isso inventaram
as carrancas, para mandar embora os maus espíritos. Dizem
que a arte da carranca surgiu no fim do século 19 e atingiu
o apogeu no início do século passado. Pra que
procurar o dia inaugural do mito ou a sua evolução?
Os seres que navegaram ou nadaram em minhas águas sempre
criaram alternativas ao medo, aos perigos, ao caos da história.
O certo é que de repente alguns carranqueiros fizeram
nome. De Pirapora e dos barcos onde era o lugar dessa arte,
as carantonhas saíram para o mundo para espantar o mal.
Me contaram que você pode encontrar, por exemplo, um porteiro
de um edifício em São Paulo que, ao ganhar uma
miniatura de carranca, sabe de imediato o que fazer, olha, vou
pôr na frente da porta da entrada da minha casa, para
proteger minha avó que fica lá o dia todo.
A
Associação de Artesãos de Pirapora está
aí para mostrar essa arte viva que fez fama. Você
pode ver os artesãos esculpindo carrancas. Há
os puristas que as julgam distantes das inspirações
dos primeiros habitantes. Mas mais de cem carranqueiros, entre
homens e mulheres, têm todo o direito de assinar a arte
coletiva que nasceu da aventura humana no confronto com meu
leito desconhecido, muitas vezes assustador. Nesses tempos ancestrais,
eu era temido, usado, mas integrado à vida indígena.
Mais tarde viriam as apropriações devidas ou indevidas.
Não dialogaram mais comigo como as carrancas na proa
dos barcos.
Conversavam,
desafiavam, arreganhavam os dentes para mim. Lá pelo
fim do século 19 o divórcio se consumou. Os homens
passaram a planejar o progresso e eu, ou melhor, a natureza
toda virou objeto calculado de manipulação. Prova
disso é que querem, desde essa época, mexer com
o leito que Deus me deu.
Para
onde vou?
Isso
é pergunta que se faça? Para onde vou? Meu destino
está traçado e os cartógrafos já
resolveram meu desenho no corpo da natureza brasileira. Sinceramente,
sô, não entendo mais os homens desta terra. Me
convenceram de que seria parceiro da ferrovia, me aportaram
em Pirapora, começaram a construir uma linda ponte em
1912, chamaram de Marechal Hermes (que, por sinal, está
aí funcionando em condições precárias)
e planejaram a grande expansão de uma rede ferroviária
como única alternativa para aproximar as regiões
por mim banhadas. A intenção, claro, era aproveitar
ao máximo as riquezas naturais, como, aliás, aconteceu
nos dois séculos anteriores. Ainda no século 19,
no reinado do D. Pedro II, começaram a mexer com um projeto
que resolvesse a seca no Nordeste. Queriam desde então
mudar meu curso. Seria um desvio na divisa entre Pernambuco
e Bahia. A tecnologia da época não dava conta
dos obstáculos do caminho. Bem, agora, não falam
de outra coisa - a transposição das minhas águas.
Como
não me ouvem, porque estão de mim divorciadas
as cabeças modernas, delego a voz, nessa questão,
aos fóruns de direito e a todos que comigo quiserem praticar
a escuta profunda da natureza das águas dentro e fora
dos humanos. Me despeço com o desejo de que logo nos
encontremos, em Três Marias, perto das nascentes, em Pirapora
para passear a bordo do Benjamin ou em qualquer outra paragem
do velho traçado. Muito obrigado pela atenção.
Eu, Velho Chico.
Dois
textos-legendas
No
ocaso de Três Marias, o rio São Francisco exibe
a serenidade das águas ali represadas. Não muito
longe, na Serra da Canastra, no Chapadão da Zagaia, nasce
a bacia hidrográfica do coração do Brasil.
O Rio da Unidade Nacional, título que recebe pelo serviço
histórico e cultural prestado, sai de Minas Gerais, gera
afluentes vigorosos como o Rio das Velhas e o Paracatu ainda
no Estado das nascentes; outros menores como o Ipanema e o Moxotó
expandem a bacia em Alagoas e Pernambuco. O rumo norte se desenha
na Bahia, mas depois, teimoso, se volta para o leste onde se
entrega às águas salgadas do mar Atlântico,
entre Sergipe e Alagoas.
São
632 mil quilômetros quadrados, duas vezes o Estado do
Maranhão, de águas generosas, hoje mais do que
nunca cobiçadas pela civilização e pelos
habitantes do semi-árido. O viajante que chega a Pirapora,
no norte de Minas, se reencontra com a saga da posse do sertão
recôndito, em meio a cerrado, matas e terras quase desérticas.
Ali, onde o Velho Chico oferece seu leito à navegação,
o abandono do sistema das hidrovias e das ferrovias está
à vista: o último barco movido a lenha, o Benjamin
Guimarães, e a ponte Marechal Hermes resistem à
erosão, graças à consciência e paixão
de Pirapora.
Obrigado
por esperar
P.S.:
Atendendo ao pedido do Velho Chico, agradecemos sua inspiração
e caímos no cenário da realidade contemporânea.
Nos noticiários nacionais, nas infovias que levam ao
mundo pela Internet informações guardadas nos
portais (o do São Francisco é portentoso), verifica-se
que a transposição do rio ocupa o imaginário,
a política, a pesquisa científica e os saberes
locais com a força da polêmica não resolvida.
Se a vontade política que se expressa no Executivo, no
Legislativo e no Judiciário não chega a uma solução
unânime, que dizer dos diagnósticos especializados
como os da Fundação Joaquim Nabuco? Nos primeiros
anos de 1990, em um seminário sobre o semi-árido
organizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e
registrado no segundo volume da coleção Novo Pacto
da Ciência, Do Hemisfério Sol, ECA/USP, 1992),
a pesquisa interdisciplinar integrou à discussão
técnico-científica o saber local das populações
afetadas. Dessa forma, enquanto a polêmica aborda, no
âmbito político, aspectos parciais da realidade
física e social do rio São Francisco, os estudos
atualizados nas universidades e em fundações como
a Joaquim Nabuco buscam a compreensão da relação
existente entre solo, água, plantas e sua importância
para a população.
Cuidadosos
com a integração perdida no uso predatório
- ou às vezes bem-intencionado - da Bacia do São
Francisco, o que sobressai é o alerta às limitações
do rio. Para o atendimento à navegação,
a geração de energia, irrigação
e abastecimento das populações carentes do semi-árido,
torna-se emergente, segundo os diagnósticos, um planejamento
hidráulico de forma a calcular as subtrações
volumétricas pretendidas. João Suassuna, pesquisador
da Fundação Joaquim Nabuco, alerta para outro
dado: no rio São Francisco não existe excesso
de água. Muito pelo contrário. Em seus estudos,
lança o olhar para o século 21: "É
muito provável que a água passe a ser tão
preciosa para as populações do planeta como são
o ouro e o petróleo". O gerenciamento dos recursos
hídricos, de competência constitucional da União,
envolve regulações altamente complexas que fundamentam
a Política Nacional dos Recursos Hídricos (Lei
9433 de 1997), mas persiste a distância a ser percorrida
entre a letra da lei e a implementação de um projeto
de transposição de águas. Distância
mais arriscada do que os 2.660 quilômetros do Velho Chico.
Historiadores
como Brenno Álvares da Silva, Domingos Diniz e Ivan Passos
Bandeira da Mota, ao pesquisarem Pirapora, um porto na história
de Minas, publicação disponível na biblioteca
pública da cidade, contribuem para o entendimento da
ocupação ora sangrenta e predatória, ora
apaziguada e progressista do coração do Brasil.
Os artífices do futuro encontram nos ecos seculares estímulos
e advertências. Em agosto de 2003, o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva anunciou a primeira grande obra do plano de investimentos
do governo de 2004 a 2007: o projeto de transposição
das águas do rio São Francisco para irrigar zonas
semi-áridas do Nordeste. No discurso, que considerou
insuficiente o investimento de US$ 5,5 bilhões, Lula
lembrou de D. Pedro II e o primeiro projeto que se frustrou.
Talvez por falta de recursos, na avaliação do
presidente. O Velho Chico espera (pacientemente?) o que com
ele acontecerá.
*Cremilda
Medina é jornalista e escritora, pesquisadora e professora
da ECA/USP.
Fonte:
Publicada no "Jornal da USP" nº 666 em 17/11/2003.
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