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Quarta
revolução, a das fontes
Por
Carlos Chaparro*
"O
XIS DA QUESTÃO As fontes adquiriram a capacidade
de produzir conteúdos noticiosos, embutidos em ações
e falas recheadas de ingredientes jornalísticos. Incorporaram
a notícia ao acontecimento que produzem. E pela notícia,
de forma cada vez mais eficaz, os sujeitos institucionais exercem
o sagrado direito de dizer. Será isso prejudicial à
democracia? Seria preferível uma sociedade em que o poder
de dizer pertencesse apenas aos jornalistas?
A
discussão não está feita. Mas talvez possa
começar por aí.
1.
Samba do crioulo doido
Assim
como é fácil, no jornalismo do dia-a-dia, encontrar
notícias rigorosamente iguais em jornais diferentes,
também encontramos, para um mesmo fato, relatos antagônicos,
que se desmentem reciprocamente. E começo por um caso
desses. No início da semana, em dias sucessivos, o ministro
José Dirceu reuniu-se duas vezes com a cúpula
do PMDB, em Brasília: a primeira na noite de domingo,
11 de janeiro, em jantar na casa do senador José Sarney;
a segunda, dia 12, em almoço no restaurante Piantella.
No menu das conversas, como prato único, a difícil
negociação de espaços ministeriais para
o PMDB.
Nas
edições de terça-feira, dia 12, as editorias
de política centraram foco nessa briga pelo poder. E
informando, desinformaram. Os dois principais jornais de São
Paulo, por exemplo, ofereceram relatos divergentes do acontecido.
Para a Folha de S. Paulo, o PMDB acertou com José Dirceu
e vai ganhar duas pastas verticalizadas. Já
o Estadão, garantia aos seus leitores que o PMDB
quer mais espaço e negociação emperra.
Em
qual dos jornais acreditar? Qual deles oferecia a versão
veraz?
Aproveito
esse recorte para colocar uma questão que vale a pena
discutir: se os fatos são os fatos, tal como se deram,
e se a eles se deve ater a notícia, como explicar versões
tão antagônicas em relatos de um mesmo acontecimento?
Para
quem é do ramo, a resposta sempre terá carga maior
ou menor de obviedade. Todos sabemos que isso pode acontecer
e acontece com freqüência, em especial na
informação da política - quando os jornalistas
ficam impedidos da observação direta do que se
passa. E jornalista não mete o bico em almoços
e jantares onde se fazem acertos políticos em tramas
de tal magnitude. No máximo, abre-se uma janela para
a fotografia comprobatória, como aconteceu no almoço
do Piantella. Assim, o relato jornalístico de fatos que
o jornalista não pôde ver depende inteiramente
do que as fontes revelam aos repórteres. Cada uma das
partes diz ou deixa de dizer o que lhe convém, tendo
em vista os desdobramentos desejados. E quanto mais complexo
é o fato ou o conjunto de fatos, mais as fontes aumentam
o poder de dizer.
No
caso especifico aqui referido, a Folha optou, claramente, pelo
off da informação palaciana, para
elaborar o cenário da nova divisão de espaços
delineado na perspectiva petista. O Estadão, ao contrário,
decidiu valorizar o ainda não decidido, preferindo
fontes pelas quais o PMDB fala ou silencia - também em
off, naturalmente. Só que nenhum dos dois
jornais explicou aos leitores as escolhas feitas, menos, ainda,
as razões por que tais escolhas foram feitas.
Quem
apenas leu um dos dois jornais, viajou no embalo da respectiva
versão oferecida. E ficou desinformado. Quem pôde
ler os dois jornais, e fez comparações, talvez
se tenha divertido com o samba do crioulo doido em que resulta
a soma das duas coberturas.
2.
O poder das fontes
O
que temos aí é apenas um exemplo corriqueiro do
enorme poder de interferência que as fontes detêm
e exercem, nos processos jornalísticos. Um poder que
se manifesta de forma assombrosa no espaço e no tempo
das áreas jornalísticas responsáveis pela
pauta, em todos os meios. Quem duvidar que arranje jeito de
acompanhar de perto um dia de trabalho de qualquer pauteiro.
Já fiz isso, algumas vezes e em redações
diferentes.
Ao
contrário do que alguns pensam, a força das fontes
não está na quantidade de press-releases distribuídos
nem na freqüência de entrevistas coletivas que organizam.
O poder das fontes está na capacidade adquirida de produzir
conteúdos noticiosos, embutidos em acontecimentos recheados
de ingredientes jornalísticos. Se preferirem, é
o poder de gerar e alimentar conflitos cujo sucesso interessa
ao relato jornalístico e só no relato jornalístico
se realiza.
Uma
das variáveis que explicam essa capacidade é a
estimativa, que levantamentos recentes autorizam a fazer, de
que pelo menos 40% dos jornalistas profissionais trabalham em
assessorias de imprensa ou de comunicação, dentro
de instituições ou a serviço delas. Não
precisamos ir longe para sentir o peso dessa realidade: entre
os que freqüentam os espaços do Comunique-se, a
proporção deve estar reproduzida.
As
áreas de comunicação detêm hoje um
poder próprio, e crescente, dentro das organizações
da mais poderosa multinacional à mais atrevida
ou criativa Ong. Que papel lhes cabe? São muitas as respostas
possíveis. Mas se olharmos a dinâmica democrática
dos nossos dias, não é difícil perceber
que vivemos em sociedades cada vez mais falantes, nas quais
pela notícia as instituições agem e interagem
no mundo.
3.
Uma revolução
Os
que conservam no imaginário e nas crenças, ainda
que em forma de saudade, a idéia do jornalismo romântico,
aventureiro e libertário, assentado no poder mítico
das redações, não escondem a perplexidade
diante do novo cenário. É a perplexidade manifestada
por Ana Maria Bahiana. Em sua coluna da semana passada, escrevia
ela: A frase do ano, que me perseguiria como o fantasma
do conto natalino de Charles Dickens, foi dita primeiro como
piada, mas (...) virou a mais pura constatação:
existem hoje, no Brasil, mais jornalistas empregados por assessorias
de imprensa do que por veículos de comunicação.
(...) Não há o que avaliar em termos de bom
e mau. É um fato da vida a profissão
de jornalista, como eu e minha geração conhecemos,
está em extinção.
Na
mesma semana, também aqui no Comunique-se, Eduardo Ribeiro
anunciava notícias alvissareiras no mercado
de trabalho. E mais da metade do seu texto referia-se à
ampliação ou ocupação de espaços
profissionais nas áreas da hoje chamada comunicação
institucional.
O
que aconteceu?
Aconteceu
que as fontes fizeram uma revolução nos processos
jornalísticos. Estudo o assunto há duas décadas,
e estou convencido que o jornalismo vive agora a sua quarta
grande revolução, cada uma delas vinculada a um
determinado momento tecnológico ou político-cultural
da civilização moderna: a revolução
da notícia, que o telégrafo viabilizou; a revolução
das tiragens, na fase da industrialização, com
a rotativa, a linotipo e a zincogravura; a revolução
da reportagem literária, nos ventos democráticos
do pós-guerra; e, agora, a revolução das
fontes, sob o impulso das tecnologias de difusão (as
tais que criaram a possibilidade da notícia em tempo
real, com instantaneidade universal) e da acelerada institucionalização
das sociedades.
Apesar
de desprezadas pela cultura arrogante dos manuais de redação,
as fontes se organizaram, adquiriram competência, poder
e querer, transformando o jornalismo no espaço público
das suas ações discursivas. Ou seja: incorporaram
a notícia ao acontecimento que produzem.
Até
sob o ponto de vista teórico, esta é uma enorme
perturbação. Não podemos mais ignorar que
a revolução das fontes alterou a fisionomia e
a lógica do jornalismo. Há problemas novos, que
ainda não compreendemos, como o do esvaziamento das antigas
funções e dos antigos poderes das redações.
Por tudo isso, estamos perplexos.
Os
novos formatos e papéis do jornalismo, quaisquer que
sejam, terão de fazer parte do mundo novo em mutação.
Um mundo no qual, pela notícia, os sujeitos da atualidade
do mais poderoso pai da pátria à tribo
indígena mais distante - exercem, de forma cada vez mais
eficaz, o sagrado direito de dizer. Será isso prejudicial
à democracia? Seria preferível uma sociedade em
que o poder de dizer pertencesse apenas aos jornalistas?
A
discussão não está feita. Mas talvez possa
começar por aí.
NOTA
DE RODAPÉ
Aprendi
a respeitar as idéias alheias, a deter-me diante do segredo
de cada consciência, a compreender antes de discutir,
a discutir antes de condenar.
Norberto
Bobbio"
*Carlos
Chaparro é professor de jornalismo na Universidade de
São Paulo.
Artigo
publicado no Portal Comunique-se, 16/01/2004.
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