...................................................................... pjbr@eca.usp.br

 







...
...

Opiniões - Comentários


Estatística não é coisa
com que se brinque

Por Carlos Chaparro*

O XIS DA QUESTÃO – Quando o noticiário se limita a reproduzir, sem questionamentos ou aferições, dados estatísticos oferecidos por fontes interessadas, ou o próprio jornalismo, por incompetência e/ou desonestidade, deturpa a significação dos dados, a sociedade é duplamente enganada, porque, à falsa ou distorcida informação estatística, se agrega o aval da pressuposta credibilidade jornalística.

1. Números que matam…

Em recente viagem, ocupei o tempo de vôo com a leitura da revista de bordo editada pela companhia aérea. E me demorei na primorosa ironia de uma crônica de Ruy Castro, um dos melhores escritores.

Para não trazer o benefício do talento alheio ao meu texto, evitarei transcrições dos requintes literários de Ruy Castro. Mas a essência do conteúdo da crônica por ele escrita pode ser resumida e contada. Trata-se de uma história assemelhada a tantas outras que os jornais veiculam por aí, nas quais certas fontes usam ou valorizam partes dos dados estatísticas, e os deformam na significação, para produzir efeitos que lhes convêm.

A reprodução jornalística empenhada apenas no aproveitamento de sentidos emocionais que os números adquirem, ou destituída de competência para a leitura correta dos dados, acaba por socializar e abonar a desonestidade dessa gente.

Ruy Castro tomava como ponto de partida revelações de um cientista britânico, um certo Graham Jackson, que em recente congresso de saúde sexual, realizado em Hamburgo, na Alemanha, sustentou, com números de uma investigação por ele realizada, que homens com idade acima dos 45 anos e amantes de aventuras extra-conjugais com meninas de vinte e poucos anos, têm 75% de probabilidades de sofrer um infarto em pleno deleite. Já se a parceira for a própria esposa, as chances de ocorrência de um ataque cardíaco se reduzem a 25% dos casos.

Mas, como salienta o cronista, a assustadora estatística tem atenuantes, um deles o fato de que apenas 1% das pessoas morrem durante o ato sexual. E daí se conclui que aqueles 75%, citados na primeira leitura da síntese estatística, pouco ou nada significam como probabilidade de risco. Trata-se, pois, de mera leitura especulativa, induzindo a falsas conclusões, ostensivamente valorizadas pelo cientista.

E, já agora, não custa acreditar que o tenha feito para navegar na crista do noticiário do congresso, por saber, talvez até por experiências anteriores, que a imprudência jornalística aproveitaria de imediato o impacto dramático e curioso da “revelação”. Assim foi.

2. Desonestidades

Dizem alguns que a estatística é uma das mais usadas espécies da mentira. Há também quem afirme isso de forma amena, qualificando a estatística como a mais importante e difundida ciência inexata. Claro que tais definições devem ser creditadas ao bom humor de alguns pensadores.

A estatística, em si, jamais promete verdades; apenas revela ou produz presunções (algo que pode ser acreditado), a partir de dados numéricos codificados a que o método chega, na observação de fenômenos de alguma forma mensuráveis.

Aliás, trata-se de um conjunto de métodos complicados, cuja aplicação, para ser confiável, exige alto grau de especialização e – mais do que isso – rigorosa honestidade intelectual. Se, no manejo de métodos estatísticos, imperar a ignorância ou a desonestidade, o resultado poderá até gerar benefícios transitórios a alguém, mas será certamente lesivo aos mecanismos do conhecimento e da cultura, bem como à tomada de decisões, tanto individuais quanto institucionais. Por isso, a boa estatística está sempre vinculada ao bom nome da fonte de onde provém, que, em favor da veracidade, jamais deve deixar de ser citada.

O que está sob ajuizamento, portanto, não é a estatística, mas o uso que dela se faz como base de razões argumentativas – posto que o dado estatístico é sempre e fundamentalmente um elemento argumentativo, com uso inevitavelmente orientado para a movimentação das mentes. As fontes, em especial as políticas e as econômicas, que se servem do jornalismo para difundir e sustentar os próprios interesses ou idéias, usam, freqüentemente, o argumento estatístico como “afirmação da verdade”, e não raro o fazem de forma desonesta.

Assim acontece, por exemplo, quando, para pintar cenários, impingir diagnóstico ou defender soluções convenientes, essas fontes ora inventam e manipulam dados, ora os distorcem por meio de leituras intencionalmente enviesadas. Nesses casos, nem de presunção se trata, mas de embuste.

Quando o noticiário se limita a reproduzir, sem questionamentos ou aferições, dados estatísticos oferecidos ou sugeridos oferecidos por fontes interessadas, o próprio jornalismo veste a roupagem da desonestidade e da irresponsabilidade, com prejuízos mais ou menos graves para a sociedade. Pior ainda quando o próprio jornalismo deforma índices e deles se aproveita, por motivos que nada têm a ver com a sua razão de ser.

Em qualquer das situações, a sociedade é duplamente enganada, porque, à falsa ou distorcida informação estatística, se agrega o aval da pressuposta credibilidade jornalística.

*Carlos Chaparro é professor de jornalismo na Universidade de São Paulo.

Artigo publicado no Portal Comunique-se, 22/5/2003.

Voltar

 

www.eca.usp.br/prof/josemarques