Opiniões
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O
fator Hersh
Por
Cláudio
Julio Tognolli*
"Para
o tédio, receito o dedo médio" (O dedo, Tom
Zé).
Golpeados
pelos sóis das manchetes, volta e meia os leitores se
comprazem em ficar cegos pela luz da metonímia, vulgo
parte pelo todo. Há poucos meses, quando um menor participou
da morte de um casal de filhos da alta classe média paulistana,
as mesmas manchetes acrescidas pelas imagens das tevês
gritavam pela redução da idade penal. Seguiu-se
uma sórdida enfiada de bravatas editorializadas, rápidas
e plurais, que acabaram por fazer florescer uma campanha social
por tal redução.
Numa
inapreciável atitude de estancar tal hemorragia, coube
às estrelas do direito brasileiro, incluindo o ministro
da Justiça, brecar a sede de sangue expressa em tal campanha.
Não era para menos: nem o público cult, tão
afeito em ampliar os côvados da estalagem dos direitos
humanos, escapa de se render aos apelos da metonímia.
A saber: se um menor ajudou a matar, "todos" os menores
serão capazes do mesmo. Donc: reduza-se a idade penal
e adote-se o liberou geral para pensar que qualquer menino de
rua teria, nas mesmas condições de temperatura
e pressão, a mesma frieza e falta de escrúpulos
humanos, humanitários.
O
fator metonímia retomou seu claro roteiro no caso do
piloto da American Airlines Dale Robbin Hersh, preso ao mostrar
o dedo obsceno para a câmera da Polícia Federal,
no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Cumbica.
Por causa da inclemência do ato, acrescida da procedência
do piloto, a saga mental gerada pela metonímia foi inequívoca:
todo americano necessariamente agiria como o comandante Hersh.
Eis porque, na mídia, na semana passada, um incidente
localizado, paroquial, foi vendido com ares de crise geopolítica
sem precedentes.
Só
a Folha de Rondônia
Freudianamente,
o episódio ganhou destaque imerecido porque estávamos
numa semana de puro tédio jornalístico, com manchetes
tépidas prodigando rebotalhos do Ano Novo. A música
de Tom Zé, sucesso nos anos 70, intitulada O dedo, é
a epígrafe do episódio: "Menina, para o seu
tédio, receito meu dedo médio".
O
fatalismo luso, de que somos filhos tão pródigos,
requer essa metonimização, sempre. Somos doutos
nesses tipos de nimiedades. E editorialmente cai bem mostrar
que uma pequena parte pode ser representativa de vontades do
todo, que, como raramente pode ser abarcado pela mídia,
ganha materialidade, tendência, alma, nas expressões
de algumas gentes, como o nosso comandante Hersh. Ok, dirão:
o escritor russo já dizia que "quer ser universal,
fale de sua aldeia" portanto ao contarmos em detalhes
o episódio Hersh estaríamos entesourando boa parte
do que seriam os americanos médios.
Mas
o grande problema desse episódio é que ele mostra
a preguiça, ocultada pela teatralidade, da imprensa em
geral, que cada vez mais é menos capaz de pôr em
perspectiva fatos de suma importância, só porque
eles aconteceram fora das grandes capitais. O fato que se segue
ocorreu no mesmo dia em que o comandante Hersh foi preso. Este,
sim, é um episódio de magnitude geopolítica,
mas que só foi mancheteado pela Folha de Rondônia
in illo tempore:
Um
mês e três dias após o episódio da
violação do espaço aéreo brasileiro,
marines norte-americanos voltaram a se envolver em mais um ato,
se não de violação, pelo menos de pouso
não-autorizado, que pode render problemas diplomáticos.
No dia 9 de dezembro, três aeronaves de bandeira norte-americana
se envolveram num incidente em território rondoniense,
ao fazer o resgate de um helicóptero civil por dois helicópteros
militares numa região próxima a Abunã.
Anteontem,
às 21h40, um avião Hércules C-130, da Marinha
dos Estados Unidos, com 11 fuzileiros navais a bordo, pousou
no Aeroporto Internacional Governador Jorge Teixeira. As autoridades
aeroportuárias, incluindo Infraero, Aeronáutica
e Polícia federal, foram surpreendidas cinco minutos
antes do pouso, com a informação repassada pela
torre da presença da aeronave americana.
O
avião, um dos preferidos de unidades militares da maioria
dos países, geralmente usado em operações
de guerra, seja para o transporte de tropas ou resgate de grupos,
foi atração no aeroporto onde permaneceu por 11
horas. Pousou às 21h40 e só decolou ontem às
8h40, após diversos contatos do comandante, major Chris,
com a embaixada dos Estados Unidos em Brasília.
Apenas
o comandante do Hércules e o subcomandante desceram.
O restante da tripulação permaneceu no avião
e só saiu um pouco, por volta das 4 horas, quando já
não havia quase ninguém no aeroporto.
Autoridades
não se pronunciam
A
exemplo do que ocorreu com o helicóptero de bandeira
norte-americana N32TJ, que caiu um território rondoniense
no dia 9 de dezembro, as autoridades brasileiras, à exceção
do comandante em exercício da Aeronáutica, tenente-coronel
Machado, não se manifestaram. A Polícia Federal,
que intermediou toda a negociação para a permanência
e nova decolagem do avião, não emitiu uma linha
sequer sobre o assunto.
Da
mesma forma, a Infraero, o Sivam e o DAC nada disseram. O sargento
de serviço no escritório do DAC, ao ser procurado
pela reportagem da Folha para dar informações,
trancou a sala e disse que não podia dar nenhuma declaração.
O responsável da Infraero pelas operações
no aeroporto internacional, Remy Alves, desligou o celular e
sumiu durante todo o dia de ontem.
Comandante
combateu no Iraque
Passados
os momentos dos primeiros contatos com os agentes federais,
a tensão estampada no semblante do comandante do avião,
major Chris, deu lugar à descontração.
Nas conversas com os agentes, riu muito, mas não quis
fazer declarações à imprensa. A reportagem
pesquisou e descobriu, no site FreeRepublic, que Chris retornou
em novembro do Iraque, onde serviu na 1ª Divisão
do 1º Regimento Marinho. Como oficial das operações,
ajudou no ataque a Bagdá. Por atos de bravura, foi condecorado
com a Estrela de Bronze em seu retorno aos Estados Unidos. Chris
serviu na Somália em 1992 e no Haiti em 1995, mas no
Iraque teve sua primeira experiência como oficial de operações
em guerra. No retorno aos EUA, foi transferido para uma base
em Cleveland, Ohio
Ótima
frase
O
velho fatalismo luso nos levou a achar que o comandante Hersh
vocalizava um episódio maior. Já conhecemos este
truque, pelo menos desde os anos 70, quando o deputado Francelino
Pereira, ao fazer uma visita à Câmara Municipal
de São Paulo, reclamara, na frente de um punhado de repórteres,
que o elevador não chegava nunca. E disparou um "que
país é este?", devidamente convertido, dia
seguinte, pelos jornais, na clássica frase interrogativa
que imprecava contra a brasilidade em geral e acabou
virando o bordão da banda Legião Urbana.
Um
elevador falou pelo estado geral da nação. Eis
a metonímia novamente.
Volta
e meia jornalistas, sobretudo, ainda usam o bordão "O
Brasil não é um país sério",
devidamente atribuído ao presidente De Gaulle. A frase
foi disparada durante a chamada Guerra das Lagostas, quando
disputávamos com a França o direito de pesca no
litoral. E é de autoria do embaixador Alves de Souza,
conforme relata em suas memórias, dita por ele numa visita
ao Quai dOrsay, onde, aturdido pelas orientações
geopolíticas caleidoscópicas recebidas do Itamarati,
desabafou "Decididamente o Brasil não é um
país sério".
Seria
uma ótima frase na boca do comandante Hersh.
*Cláudio
Julio Tognolli é jornalista, autor de Falácia
genética: a ideologia do DNA na imprensa (380 pp., Editora
Escrituras, São Paulo).
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