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A
canetada e a tesourada
Por Maurício Tuffani
Há
poucos dias, o jurista Miguel Reale Jr. trouxe a este espaço
uma importante contribuição ao debate sobre o
projeto de lei de criação do CFJ (Conselho Federal
de Jornalismo), em seu artigo "Liberdade e disciplina"
(17/ 8).
Apesar
de se declarar favorável à iniciativa, o ilustre
professor fez objeções relevantes a ela, que foi
concebida originalmente pela Fenaj (Federação
Nacional de Jornalistas Profissionais). Duas dessas objeções
dizem respeito a duas alterações significativas
feitas por essa entidade em parceria com o governo quando da
elaboração dessa proposta, ainda na fase de anteprojeto.
Começo
pela última objeção de Reale, que para
ele, com razão, "causa estranheza". Ela se
refere à "canetada" que o anteprojeto sofreu
na Casa Civil da Presidência da República, antes
de ser enviado ao Congresso Nacional, como demonstrei no site
"Observatório da Imprensa" (10/08). Entre as
atribuições previstas para o CFJ no anteprojeto
consta a de "disciplinar e fiscalizar o exercício
da profissão de jornalista".
A
Casa Civil acrescentou a esse trecho algumas palavras, mudando-o
para "disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão
de jornalista e da atividade de jornalismo".
é mistificador o argumento de que a proposta do CFJ é
fruto de ampla discussão entre os jornalistas
Essas
modificações abririam espaço para o CFJ
ser criado com atribuições relativas ao controle
da profissão de jornalista e das atividades dos veículos
de comunicação, na medida em que o dispositivo
prevê também a competência do novo órgão
para decidir sobre tudo o que não estiver previsto em
lei, como bem ressaltou Reale.
Vale
ressaltar o troco que, ironicamente, essa "canetada"
ainda pode levar nas discussões do Legislativo. Uma vez
que a proposta passou a prever explicitamente também
o controle da atividade de jornalismo, os legisladores poderão
entender que os proprietários de veículos de comunicação
também devem ter assento no CFJ e nos seus conselhos
estaduais.
Às
perguntas da imprensa sobre as razões dessas modificações,
o governo só deu respostas evasivas. Entre elas, a de
que no Congresso o texto estará aberto à discussão
dos jornalistas e de toda a sociedade. Essa resposta, surpreendentemente,
passou a ser dada também pela diretoria da Fenaj.
No
dia em que o texto foi enviado ao Legislativo (4/8) -que, por
coincidência, acabou acontecendo durante o 31º Congresso
Nacional dos Jornalistas, em João Pessoa (PB)-, dirigentes
dessa entidade repetiram e registraram em seus websites, em
clima de vitória, o que já vinham dizendo: "Precisamos
de um movimento nacional de todos os jornalistas a fim de pressionar
os parlamentares para que o projeto possa ser rapidamente aprovado,
sem emendas".
Outra
objeção relevante de Reale se refere ao fato de
que a iniciativa da Fenaj secundada pelo governo não
inclui um código de ética. No entanto, o texto
aprovado em outubro do ano passado em Florianópolis,
em sessão plenária do 30º Congresso Nacional
de Jornalistas, tinha como anexo os 17 artigos do Código
de ética do Jornalista. Portanto nem só da "canetada"
o projeto de lei foi fruto, mas também de uma "tesourada"
naquilo que foi votado em plenário.
É,
portanto, mistificador o argumento de que a proposta do CFJ
é fruto de ampla discussão entre os jornalistas.
Isso não seria verdadeiro mesmo que desconsiderássemos
o fato de que as diretorias da entidade têm sido eleitas
em processos com inexpressiva participação de
profissionais.
Diferentemente
das leis de outros países em que a profissão é
regulamentada, como França, Itália, Bélgica
e outros, o projeto de lei do CFJ foge ao tema da definição
das condições de acesso à carreira. E isso
é estranho em um país como o nosso, em que as
leis são muito detalhistas. No entanto esse tema havia
sido considerado na primeira proposta de anteprojeto, de setembro
de 2002, no 29º Congresso Nacional de Jornalismo, mas a
entidade deliberou, no evento de 2003, pela sua retirada do
texto.
Com
essa outra "tesourada", a Fenaj relegou a definição
das condições para ingresso na profissão
a um incômodo esqueleto em seu armário: o infame
decreto-lei 972, de 1969, que não foi votado por nenhum
parlamentar nem sancionado por nenhum presidente, mas somente
outorgado pelos três ministros militares que governaram
o país com o Congresso fechado.
E
esse dispositivo estabelece a obrigatoriedade da formação
superior em jornalismo para o exercício da profissão
-que temporariamente está suspensa pela Justiça-,
o que não ocorre nos três países acima citados
nem na Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria,
Estados Unidos, Finlândia, Grécia, Holanda, Japão,
Suécia, Suíça e outros.
Apesar
de o tema do acesso à profissão de jornalista
ter sido excluído da proposta de criação
do CFJ, ele permanece implicitamente em outro projeto de lei,
que tem caminhado a passos largos por diversas comissões
do Legislativo, curiosamente quase "sem emendas",
como antes propunham nossos sindicalistas.
Trata-se
do projeto de lei 708, de 2003, de autoria do deputado Pastor
Amarildo (PSB-TO), que tem como relator o deputado Antonio Carlos
Biscaia (PT-RJ), que atualiza a definição das
áreas de atuação dos jornalistas e suas
funções no entulho preservado pelo decreto-lei
da Junta Militar. Infelizmente, temas como esse têm sido
ofuscados na atual agitação da mídia em
torno do projeto do CFJ.
Fonte:
Folha de S.Paulo, 24.08.2004.
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