Opiniões
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Selva
das redações
Por
Pedro
J. Bondaczuk*
As
redações de muitos jornais brasileiros (e desconfio
que também dos Estados Unidos e da Europa), são
verdadeiras "selvas", em que o jornalista (principalmente
o repórter) tem que fazer malabarismos e agir com extrema
cautela e inteligência para sobreviver. Muitos editores,
despreparados não só para essa função,
como para qualquer outra que envolva relacionamentos, se transformam
em verdadeiros ditadores e extrapolam, via de regra impunemente,
de suas funções.
Claro
que não se pode generalizar (até porque, como
afirmou o saudoso Nelson Rodrigues, "toda generalização
é burra"). Há "casos" e casos.
E sequer tenho a intenção de malhar os editores,
até porque, é a função que exerço
e que exerci em praticamente toda a carreira, de 42 anos de
estrada, com raras incursões pela reportagem, e assim
mesmo de forma espontânea, quando tinha um bom assunto
a explorar e fontes absolutamente confiáveis (o que é
enorme raridade, convenhamos).
As
atividades de editorialista, de articulista e de cronista as
exerci paralelamente à edição, o que, inclusive,
constava em contrato, em quase todos os jornais que tive a oportunidade
de trabalhar. Mas o tema que vou abordar não se refere
à minha trajetória profissional, mas à
maneira como repórteres novatos, jocosamente (muitos
juram que carinhosamente) classificados de "focas",
são tratados. Ou seja, como são aqueles animaizinhos
dóceis, que equilibram uma bola na ponta do focinho,
sempre que o treinador lhes ordena.Muito garoto, egresso das
faculdades de jornalismo, com inegável talento e justificada
ambição, já ficou pelo caminho, após
a primeira passagem por uma redação de jornal
(ou de revista, não importa). Desistiu da profissão
ou acabou simplesmente "queimado".
Isto,
fora aquelas brincadeiras normais, bastante comuns com os calouros
em quase todas as redações, como mandá-los
buscar a "calandra" (isso em tempos idos, antes que
as maravilhas tecnológicas atuais chegassem aos jornais
brasileiros), ou trazer "pó de retícula",
como ainda ocorre hoje em dia, ou coisas muito piores. Vários
repórteres novatos são submetidos a grandes vexames
e inconcebíveis humilhações, somente para
satisfazer a megalomania de alguns colegas veteranos.
Meu
objetivo não é, claro, comprar briga com ninguém,
por isso me reservo o direito de não "dar nome aos
bois". Se alguém achar ruim, que vá se queixar
com o bispo. Presenciei, todavia, incidentes revoltantes, de
ostensiva falta de coleguismo e de maucaratismo explícito,
envolvendo editores e seus subordinados.
Quando
os redatores ainda não contavam com computadores para
redigir seus textos, vi muito editor rasgar, na maior cara dura,
sem sequer ler, laudas e mais laudas redigidas por assustados
e inseguros calouros, que lhes valeram horas e mais horas de
pesquisa, de deslocamentos não raro abrindo mão
do almoço ou do jantar (quando não de ambos) e
de redação, em máquinas de escrever em
geral velhas e com defeito, com o entusiasmo de quem escrevia
uma reportagem digna do Prêmio Esso. E por quê?
Somente como infantil demonstração de poder! Rasgavam
na maior cara dura e diziam: "Não gostei! Escreva
outra vez!".
E
ai do repórter que se queixasse para a chefia! Se eventualmente
o fizesse, estaria com os dias contados no jornal. Muitos dos
que me lêem agora, certamente, têm experiências
como essa, senão piores, para relatar.
Houve,
por exemplo, o caso de um repórter novato, designado
para a cobertura de determinada enchente, após um toró
digno do dilúvio bíblico que desabou sobre a cidade.
Ralou como quê. Coube-lhe a pior tarefa, como seria de
se supor, de toda a equipe envolvida para cobrir o acontecimento.
Com água até os joelhos, o garoto acompanhou atentamente
o trabalho dos bombeiros para tentar salvar um motorista, que
havia caído, com seu carro, em um córrego que
tinha transbordado.
No
afã de colher as melhores informações,
nosso personagem chegou, em alguns momentos, até a arriscar
a vida, sendo advertido, inclusive, por membros da equipe de
resgate. Depois de umas duas horas de indagações
e de observação, retornou à redação,
com fotos espetaculares da operação de salvamento,
tiradas pelo fotógrafo que o acompanhou. Molhado, tiritando
de frio, redigiu a matéria, assoviando, feliz como uma
cotovia, ciente do dever cumprido.
No
dia seguinte, decepção! Seu texto havia sido omitido
da cobertura, sob a alegação de "falta de
espaço". Mentira! O editor contou com quatro páginas,
sem anúncios, para cobrir a enchente! Tímido,
o repórter foi questionar, respeitosamente, o tal editor,
para saber a razão do seu texto não ter sido aproveitado.
Ao que este respondeu, com azedume e má educação:
"Você é pago para fazer a matéria e
não para ver esta ser publicada!". Não deixa
de ser verdade. Mas ele não precisava dizer isso.
Entre
as coisas que mais me enchem de orgulho, ao longo da carreira,
destaco o meu relacionamento com repórteres, em especial
os novatos. Raros eram os contratados nessas circunstâncias,
nos jornais que trabalhei, que não passavam por minhas
mãos. A alegação da chefia era: "O
Pedrão tem paciência bovina com os focas".
Felizmente, tinha mesmo.
Com
isso, tenho a satisfação íntima de ver,
hoje, muito profissional bem-sucedido, atuando nos maiores jornais
e revistas dos grandes centros do País, que enfrentaram
o seu noviciado sob minha batuta. Nem preciso mencionar nomes.
Eles próprios, volta e meia, se manifestam, de forma
espontânea, aqui no Comunique-se. E eu nem fazia isso
para ser simpático com quem quer que fosse e muito menos
por algum eventual sentimento de compaixão. Agia por
interesse próprio.
Sempre
que pegava matéria (o que era praticamente rotina), com
o lead errado, geralmente no pé ou no miolo da reportagem,
chamava discretamente o companheiro para "tomar um café".
E, sem que ninguém percebesse, lhe mostrava a falha,
explicava a forma correta de escrever a matéria e lhe
pedia para corrigir. Isso, às vezes, chegava a durar
um mês ou mais.
Contudo,
assim que o repórter "pegava no breu", deslanchava
e em pouco tempo despertava a atenção de outros
editores, que invariavelmente requisitavam os seus serviços.
E minha editoria primava pela qualidade. Não por minha
causa, evidentemente, mas em decorrência da garra, do
empenho e da lealdade dos meus subordinados. Portanto, o maior
beneficiado pela "paciência" era eu, e não
o repórter. Com o lead correto, por exemplo, o título,
a linha-fina e o olho da matéria ficavam até óbvios,
livrando-me de incômodos e vexatórios equívocos.
E olhem que sequer tenho um temperamento fácil. Sou polêmico,
gosto de me envolver em uma discussão e não tolero
burrice. Isto, porém, nos meus relacionamentos pessoais.
Na redação de um jornal (ou revista, não
importa), assumo, via de regra, postura de causar inveja a Jó,
o patriarca bíblico tido e havido por paciente, a ponto
de se tornar paradigma de paciência. Sinto-me orgulhoso
de exercer o papel de um Pigmalião, a formar dezenas,
quiçá centenas, de magníficas Galatéias.
Ou,
se quiserem, de feliz minerador de talentos, ciente de que a
reportagem, embora desvalorizada por muitos boçais, é
a alma e a vida do verdadeiro jornalismo. O resto... é
apenas complemento.
*Pedro
J. Bondaczuk é jornalista e escritor.
Fonte:
Comunique-se, 23/01/2004.
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