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Um
Beau Geste para o Citizen Kane
Por
Jorge Claudio Ribeiro*
Lembro
vagamente de certa cena num filme sobre a legião estrangeira
que cai como uma luva para entendermos a histeria laudatória
em torno da morte de Roberto Marinho. O filme, um clássico,
se chama Beau Geste ("Belo gesto") e é do tempo
em que funcionava a mentira de que o colonialismo foi um empreendimento
heróico e aventureiro, e não um crime ignóbil.
A cena, lá pelo final, mostra uma fortaleza da França
em pleno deserto, coalhada de legionários mortos e com
apenas dois sobreviventes.
Lá
fora, hordas de tuaregues vestidos a caráter, montados
em seus cavalos e camelos e prestes a desfechar o ataque final.
Para camuflar sua inferioridade e adiar o inevitável,
os dois legionários aboletaram os cadáveres nas
ameias, com os fuzis atravessados debaixo dos corpos e corriam
de um lado para o outro disparando.
Me
recordei dessa cena quando, assistindo ao noticiário
a propósito do Cidadão Kane brasileiro, minhas
lombrigas jamesdeanianas (as rebeldes sem causa) e as nelsonrodrigueanas
("toda unanimidade é burra") agitaram minhas
vísceras, sussurrando coisas muito intrigantes. A primeira
foi a constatação de que o ilustre falecido era
mesmo mortal, embora habitasse os vetustos muros da Academia
Brasileira de Letras (aliás, você já leu
algum livro dele? Eu confesso que não).
O ácido folclore das redações de jornal
e TV inclusive atribuía a Roberto Marinho a autoria da
seguinte frase, uma verdadeira pérola: Se acaso algum
dia eu vier a lhes faltar... Ora, como ficou afinal provado,
se nem ele escapou, o mesmo vale para todos nós, meros
telespectadores e não há hipótese de escaparmos
do nosso destino comum. No entanto, a fortaleza-Globo resiste
em dar o braço a torcer e tenta conferir uma sobrevida
mítica a seu herói civilizador: sendo o existir-como-imagem
a forma suprema de viver na modernidade, é claro que
o "jornalista Marinho" continua vivinho da silva.
E atirando, como em Beau Geste.
Uma
lombriga filósofa me sussurra: "A Globo pode ser
o doutor Roberto, mas ele não pode ser sua emissora".
Faço uma careta. Ela explica: "Tolinho! É
claro que o império recebeu a marca do imperador, a ferro
e fogo, mas pessoalmente o soberano tem muito menos poder e
influência do que a máquina que ele colocou em
movimento" [além de alimentar a bicha, ainda sou
chamado de "tolinho"].
Se
é verdade que, como diz o metafísico, uma coisa
é uma coisa e outra coisa é outra coisa, então
não foi Roberto Marinho quem unificou o País (aliás,
que unificação esperta, hein?), não foi
ele que levou informação e entretenimento a 87%
dos lares brasileiros, não era ele quem controlava mais
de 50% de toda a publicidade nacional e, sobretudo, não
foi quem cavou uma dívida bilionária, impagável.
Ao
apresentar a parte como se fosse o todo, o noticiário
global e as cassandras públicas, que derramaram lágrimas
no vídeo, operaram uma maliciosa metonímia, conferindo
ao finado um poder que ele pessoalmente não tinha, não
teria, nem terá nunca mais. A esse fenômeno eu
denomino de "síndrome da perna-de-pau", doença
de profissionais como jornalistas, que acabam se apropriando
de uma altura e de um poder que lhes foram apenas emprestados
pela mídia em que atuam, mas que eles não possuem.
Das
vísceras me vem outro frêmito: "Quem disse
que o dono da Globo era mesmo jornalista?". Tecnicamente,
claro, ele era. "Mas eticamente, foi?" Um ministro
desta República achou que sim, e até atribuiu
ao "doutor Roberto" um papel fundamental na construção
da democracia brasileira. Uau! Será que sua excelência
esqueceu que a televisão e o jornal globais eram a menina
dos olhos da ditadura militar, o boneco civil sentado no colo
dos generais através do qual estes ventriloquavam suas
ordens do dia?
O
ministro não sabe que os fardados remuneraram esse serviço
fornecendo à emissora uma infra-estrutura técnica
e pesado apoio publicitário, aliás mantido até
hoje? Roberto Marinho teria agido como jornalista ao determinar
que seu império brigasse com a notícia negando
a Campanha das Diretas em 85, conspirando contra a vitória
de Brizola e manipulando o noticiário sobre o debate
entre Lula e Collor?
Já
imaginaram se suas maquinações tivessem dado certo?
A
sorte da nossa democracia, e do falecido, é que a História
(nós) contrariou essas veleidades - afinal, você
votou pra presidente, impichou o tresloucado alagoano e Lula
acabou vestindo a faixa presidencial. "O povo não
é bobo, fora Rede Globo" foi o refrão que
decorou os muros de todo o País.
Não
quero botar pimenta em funeral alheio (também não
desejo isso pra mim). "À nível de pessoa
física", Roberto Marinho deve ter sido mesmo um
cara legal, grande empresário, um pai para as artistas
de sua emissora e amante de nossa Pátria e nossas crianças.
Sei que não é o momento de separar o joio do trigo
e peço desculpa por ter-me apressado. Só que um
veredito sereno caberá ao tempo, senhor da razão,
e não à televisão, fábrica de ilusões.
Escute
aqui, Rede Globo: faça um belo gesto e retire rapidinho
nosso Cidadão Kane das suas ameias e deixe-o descansar
em paz. É o que também desejo para ele.
PS-
Recomendo o documentário Muito além do Cidadão
Kane.
*Jorge
Claudio Ribeiro é professor do Depto. Teologia e Ciências
da Religião/ PUC-SP.
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