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Opiniões - Comentários


Jornalismo: predisposições e rituais

Por Jorge Claudio Ribeiro*

Introdução

Um ponto de apoio da presente reflexão é minha pesquisa para o doutorado sobre as condições e contradições do trabalho jornalístico. Outro ponto de apoio é o locus em que essa reflexão se dá: a docência no Curso de Jornalismo e as contribuições oriundas de nossa inserção em vários cursos.

Percebo um forte componente "vocacional" nos alunos que chegam o curso. Primeiro, porque a concorrência no vestibular é acirrada e supõe uma motivação pessoal e uma visão mais clara do que se deseja; outro fator é uma imagem bastante nítida elaborada pela sociedade (empresas, mídia, famílias) quanto ao que seja o jornalismo; terceiro, os jovens já trazem um conjunto de habilidades técnicas e de predisposições culturais e morais afins com essa atividade.

Esses fatores permitem ensaiar um perfil do "estudante de jornalismo" e que tende a coincidir com profundas demandas existenciais. O grande desafio é o Curso corresponder ao que dele esperam seus alunos.

Outro elemento importante é a presença do ritual na atividade jornalística. Sobre ele me estendo logo abaixo.

A mídia, lugar do sagrado

Hoje, o sagrado situa-se perante a mídia e esta perante aquele. Ao se espelharem, o sagrado revela algo à mídia e com ela aprende. O sagrado engloba toda e qualquer realidade humana, da mais sublime à mais torpe, passando pelo nosso cotidiano. Nada do que é humano é estranho ao sagrado: esta é uma intuição fundamental desenvolvida pelo cristianismo, a Encarnação.

Na contemporaneidade capitalista, a comunicação e suas mediações técnicas - uma das mais sólidas é o jornalismo - tornaram-se realidade onipresente na caminhada humana e a informação (sobretudo a especulação sobre o futuro) conquistou uma cotação econômica superior a qualquer outro insumo. Por sua importância, a mídia não deve passar despercebida ao estudo do sagrado; a mídia também deve refletir o sagrado, já que são caudalosas as manifestações de uma pós-moderna "chuva de deuses" e é preciso saber decodificar para o público essa precipitação, sob risco de se afogar nela.

Religião laica

Na cultura de redações de jornal, observei um sem-número de manifestações "laicas" de religiosidade. São rituais de lugar e tempo, de pessoas e postura corporal, de vestes e falas; rituais de ordem, de resistência, de passagem e de iniciação. Há algumas aproximações entre jornalismo e religião:

  • o jornal é, em si, um ritual. Ele exerce funções atribuídas às religiões: ao pôr em relação, com regularidade quase litúrgica, indivíduos e sociedade (e vice-versa); ao iluminar fatos do âmbito individual ou grupal e torná-los socialmente significativos e exemplares. "O jornal é a oração da manhã do homem moderno", comentava Hegel;

  • o jornalismo confere aura a fatos e pessoas singulares; segundo Benjamim, "aura é a única aparição de uma realidade longínqua por mais próxima que esteja". A realidade tornada próxima e íntima pela mídia é distante do cotidiano do público: nele não trafegam governantes, artistas, dirigentes, ricos. O jornalismo se apropria da aura dessas figuras únicas e as comercializa;

  • segundo Fernando Pessoa, "a religião e o jornalismo são as únicas forças verdadeiras... o jornalismo é um sacerdócio porque tem a influência religiosa dum sacerdote". E qual seria essa influência religiosa? Re-ligar e articular fatos entre si (numa mesma edição) e, no interior de um mesmo fato, com suas origens e desdobramentos (ao longo de uma série de edições). "Influência religiosa dum sacerdote" na medida em que estee se apresenta como mediador indiscutível entre o sagrado e os profanos; o mesmo acontece com o jornalista, freqüentador de esferas inacessíveis e revelador fidedigno de insuspeitados segredos (secreto-sagrado).

Articulado com essa dimensão ritual, o jornalismo dispõe de uma certa doutrina, corpo sacerdotal e mística característicos:

  • vigora nas redações uma onisciência peculiar, em que o jornal e seus repórteres pretendem saber tudo. Ressalva: "saber tudo" não em sentido absoluto mas seletivo, visto tratar-se de saber tudo-o-que-é-importante ("porque assim a empresa, ou nós, o consideramos"). Tamanho conhecimento deriva de uma onipresença, também seletiva: jornal/repórteres estão em todos os lugares "que interessam". A empresa de notícias é onipotente ao criar um mundo, através do verbo. Na verdade, o que ela faz é selecionar uma realidade, "expressão abreviada da vida coletiva, a maneira como uma sociedade se pensa". Para Vernant, esta é justamente a definição de religião; para Otávio Frias Filho, esta é justamente a definição de jornal;

  • coincidindo com as aproximações de sentido da palavra "religião", o jornalismo promove a releitura da realidade, religa situações e públicos distantes e viabiliza a reeleição do leitor a poderes que se lhe apresentam como superiores;
  • seus agentes estão investidos full-time da missão da verdade e da denúncia das injustiças. Carismáticos quanto possível e quando permitido, são separados dos ritmos normais e das relações cotidianas, vestindo-se e expressando-se segundo fórmulas semelhantes, tal como num mosteiro;
  • essa segregação baseia-se numa mística de vocação, dedicação e sofrimento que as empresas adoram alimentar. O jornalismo romântico desdenha salários, folgas e, mesmo sob a capa de uma independência corporativa, encobre uma submissão canina às hierarquias internas das redações.

Toda essa situação materializa uma contradição entre o imaginário consolidado da profissão e a mega-realidade de empresas de notícias; isso deixa o profissional dividido, angustiado. A psicanalista Maria Rita Kehl alerta: "O jornalista é estimulado o tempo todo para a onipotência e, ao mesmo tempo, sente uma impotência total. Ele se identifica com o jornal, mas este não é seu; identifica-se com a verdade mas em sua busca é cotidianamente ferido". A esse fenômeno denomino síndrome do bancário, em que o profissional maneja, às vezes num único dia, valores muito superiores ao que poderia juntar em toda sua vida, daí resultando uma auto-rejeição.

Tentação

É constante a tentação de oportunismo nas relações entre jornalismo e sagrado. Ela se concretiza sob as formas de sensacionalismo, de triunfalismo ou de síndrome da perna-de-pau (em que o profissional assume como próprio um poder ampliado que a empresa de comunicação apenas lhe emprestou). Essas situações fornecem base para elaboração de princípios éticos nas aulas.

Sensacionalismo é quando os meios de comunicação fazem uma cobertura impactante, abordando os eventos rotulados como religiosos a partir de sua face episódica ou quantitativa, reforçando preconceitos segundo os quais, por uma definição tautológica, o sagrado (substantivo) reside naqueles rituais, pessoas, tempos e escrituras tradicionalmente considerados sagrados (adjetivo). Tal abordagem pratica uma metonímia ao levar a entender que as partes esgotam o todo. Assim, reforça ritualismos sem atitude, moralismos sem ética e sectarismos sem solidariedade.

Triunfalismo ocorre quando as agências e profissionais do sagrado mimetizam os procedimentos mais comerciais e sensacionalistas da mídia e, de costas para a dura tarefa de sujar as mãos na humanização, alegremente abrem os braços para o fácil, o imediato ou o "espiritual gostosinho". "Minha missão está cumprida, o Ibope deu 30 pontos!", consola-se intimamente o atleta sacro, ao pendurar sua suada batina de microfibras, ungido pelo sucesso e, glória suprema, invejado pelos colegas.

Se sagrado e mídia são continuamente vencidos pela tentação do oportunismo sensacionalista e triunfalista é porque ambos, enquanto fenômeno humano, têm uma raiz ritual semelhante.

Companheiros no ritual e na tentação, sagrado e mídia se defrontam como competidores pelo domínio de corações e mentes do público. Nessa concorrência, já que ambos os fenômenos se transformam cada vez mais em empresas, um tende a adotar procedimentos da outra, o que termina por assemelhá-los. Contudo, um não pode dispensar a outra em sua diferença. Mídia e sagrado não se desconhecem e, embora concorram, poderiam ajudar-se a amadurecer na medida em que quebram os ídolos do espetáculo e do sucesso fácil (e os denunciam um na outra).

Sagrado e mídia encontrarão um fértil terreno comum na medida em que souberem tornar hegemônico um sentido e experiência de humanização, de tolerância e solidariedade. Então, poderão reconhecer-se humanos, demasiadamente humanos.

Enfim

À medida que nosso Grupo de Docência se reunia, fomos trabalhando sobre o fato óbvio de que predisposições e rituais estão presentes, de um modo peculiar, nos cursos em que damos aula. A partir desse "estudo de caso", propomos que se amplie a reflexão sobre os demais cursos. Sendo o campo simbólico uma de nossas "praias", a consideração desses fatores poderá capacitar nossa docência e pesquisa.

*Jorge Claudio Ribeiro é professor do Depto. Teologia e Ciências da Religião/ PUC-SP.

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