Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


ARTIGOS
   

O menino-aranha:
Uma história de notícia

Por Marconi Oliveira da Silva*

Resumo
Este artigo analisa a história de uma criança/notícia - É a história de Tiago João da Silva que escalava prédios para roubar e que, por isso, foi presa várias vezes e realizou inúmeras fugas das instituições de ressocialização. Durante 9 anos, jornais, rádios e televisões alimentaram as fantasias dos leitores com as peripécias de Tiago João da Silva até a sua morte por assassinato. A notícia só é cerrada com a eliminação do que foi denominado menino-aranha. O estudo é dividido em três partes: I - A notícia se relaciona com as violações do mundo institucional. O mundo objetivo é o mundo institucional. A história de cada indivíduo está intimamente ligada às instituições; II - que é rematada com sua morte e enterro solitário; III - Apresentação de quatro hipóteses ou pressupostos para tentar explicar a importância dessa narrativa jornalística.

Palavras-chave
[Instituições / Notícia / Criança / Abstração / Realidade]


Não desprezando as teorias e conceitos em moda sobre valores-notícia e critérios de noticiabilidade dos fatos, o jornalismo existe para narrar as violações do mundo institucional. Na narrativa jornalística estão implícitos e quase sempre explícitos todos os elementos interativos e iterativos dos fatos institucionais, assim como os atos de fala, os personagens e os objetos que os compõem. O jornalismo, no entanto, no momento mesmo em que realça a transgressão no mundo institucional objetivo, reforça e corrobora seus valores e sua aparente estabilidade. Em outros termos, o jornalismo está sempre reproduzindo discursivamente as estruturas e formas de controle social inerentes às instituições sob o aspecto da desagregação de indivíduos do convívio social.

Arnold Gehler (1984:97-101) lembra que na criação de instituições são estabelecidas relações mútuas e formas de comportamento tipificadas ou figuradas que estereotipam moldes para regimes legislativos, familiares e governamentais. Com isso, as instituições tornam possível a regulamentação e segurança recíproca do comportamento. Diz ainda que cada cultura seleciona determinados comportamentos entre muitos e os

"erige em modelos de comportamento socialmente sancionados, que são compromissos para todos os membros do grupo. Esses modelos de comportamento, ou instituições, aliviam o indivíduo da sobrecarga de decisões e orientam-no através das impressões e estímulos que inundam seu ser aberto ao mundo. Esta é, pode-se dizer, a lei de nossa vida: estreitamento das possibilidades, mas apoio mútuo; desencargo para ter mais liberdade de movimentação, mas dentro de uma estrutura limitada." (Cf. Gehler, 1984: 96).

Assim, o homem, como um ser aberto para o mundo, tem uma identidade e é livre ao se reconhecer dentro de um contexto e ao aceitar a ordem, a direção e a estabilidade das instituições. Mas como o homem é um ser instável entre a violência (Hobbes) e o ethos da reciprocidade, as instituições surgem, por um lado, como "empresas" com tarefas nas áreas vitais como alimentação e procriação que exigem colaboração constante e ordenada e, por outro lado, apresentam-se como forças e formas estabilizadoras de decisões e comportamentos futuros.

Esse desencargo aumenta a produtividade da ação e do convívio humano, pois instituições, como o casamento, a família, o trabalho, o direito, as ciências, a escola, a igreja etc., trazem no seu interior formas de conduta que "causam um automático 'já estar entendido'". Gehler (1984:101) chega a dizer que "o homem não sabe o que ele é; por isso, não pode realizar-se de maneira direta, tem que deixar que as instituições o conduzam a si mesmo". Assim, por um lado, os objetivos de vida do indivíduo são tratados coletivamente nessas instituições, e, por outro lado, os homens orientam seus sentimentos e atuações pela lógica das regulamentações institucionais evitando desgastes emocionais nas decisões básicas.

Do nascimento à morte o sujeito é conduzido pelas instituições. Só o surgimento de uma disfunção ou inadequação entre indivíduos e instituições, dependendo da maior ou menor extensão ou do grau de intensidade, provocará um fato institucional com possibilidade de tornar-se fato noticioso / jornalístico.

Dentro do que se concebe como ethos das instituições as autonomias dentro de esferas sem relação com o todo, enfraquece o sentido da existência individual, por que fora ou marginal do sentido superior dado pelas instituições, restando aos indivíduos, nesse contexto, voltar ao seio da esfera privada ou familiar onde deverá encontrar convívio de mútua tolerância.

As instâncias culturais, segundo Gehler (1984:165), oferecem a esses indivíduos a satisfação de sua autovaloração, como os jornais, as revistas, as emissoras de rádio de televisão que "realizam uma considerável mobilidade nessas esferas culturais em que o aspecto substitutivo e quase de paródia desse treinamento expressa bem o caráter desviado". Enfim, o ethos das instituições significa "a submissão às limitações de toda ordem em que se refletem as leis das coisas, do mesmo modo que as experiências de sua colaboração e uso. Cada uma das virtudes de competência institucional deixa-se compreender a partir de seu objetivo". Portanto, "o caminho para a dignidade aberto a cada um, seria deixar-se consumir pelas instituições: em suma: servir e dever."

Os mecanismos e processos sociais produzem o sujeito que só pode ser compreendido dentro do contexto social em que foi formado. E sua relação com os outros se realiza não apenas entre um sujeito poder coexistir com um outro, porque o outro não reflete imediatamente suas próprias ações, mas também essa relação se efetua entre os outros e eu, entre eu e eu mesmo, como uma dobradiça, e a garantia disso é que pertencermos ao mesmo mundo. Na concepção de Merleau-Ponty (2003:124), pode se entender por instituição

"os acontecimentos de uma experiência dotada de dimensões duráveis, em relação à qual toda uma série de outras experiências terão sentido, formarão uma continuidade pensável ou uma história, - ou ainda os acontecimentos que depositam em mim um sentido, não a título de sobrevivência e de resíduo, mas como apelo a uma continuidade, exigência de um futuro".

A continuidade e a historicidade fazem das instituições uma realidade objetiva. Isto é, elas possuem realidade própria que o indivíduo desde o nascimento se defronta como diante de um fato exterior e coercitivo. Esta realidade objetiva, como o casamento, escola, família, profissão, é um modelo impessoal e já existente ao qual todos devem se encaixar.

Mesmo os desenvolvimentos humanos, digamos biológicos, tais como a puberdade, que são impregnados de conflitos, são mediados pelas instituições. Mesmo assim, podemos perceber dois fenômenos bastante distintos que são a história pessoal e a história pública. O jornalismo vai se posicionar entre esses dois modos de atividade e vai transformar os fatos que se destacaram na afirmação ou negação das condutas e realizações institucionais em notícias, reportagens e sentimentos.

A história pessoal de cada um de nós começa a delinear-se pela socialização que consiste em a criança aceitar o mundo como o seu mundo. Como isso se processa é explicado por Berger e Luckmann (2004:77-98) e que resumimos a seguir: Toda atividade humana que se torna hábito precede uma institucionalização, que por sua vez refletem tipificações que são partilhadas e acessíveis a todos os membros do grupo social. No passo seguinte cria-se uma historicidade e um controle de ações padronizadas previamente definidas de conduta. Nas fases iniciais de socialização a criança não distingue bem a objetividade dos fenômenos naturais e a objetividade dos fenômenos sociais.

Como os pais, pelo menos teoricamente, já são socializados, eles aumentam essa objetividade na socialização dos filhos.No entanto, no decorrer da formação infantil, a nova geração pode recusar a socialização, então a saída é a sanção. "As crianças devem aprender a comportar-se e, uma vez que tenha aprendido, precisam ser mantidas na linha".

A partir daí, os indivíduos executam ações separadas institucionalizadas no contexto de sua biografia / história pessoal. E qualquer desvio radical da ordem institucional toma caráter de um afastamento da realidade. "Este desvio pode ser designado como depravação moral, doença mental ou simplesmente ignorância crassa". A alienação da realidade ou o afastamento do mundo objetivo institucional é o que vamos mostrar narrando a história de uma notícia chamada menino-aranha.

A história de Tiago João da Silva [1] é a história de uma notícia que inicia em 1997 e termina em 2005. É a história de uma criança que cria fama e ganha uma perífrase de menino-aranha por escalar edifícios para roubar. Torna-se famoso pelas inúmeras fugas que realizou das várias instituições de amparo à criança e adolescente. E assim, a cada ano, a cada mês esse itinerário se repetiu. Mas, ao completar 18 anos foi assassinado. No seu enterro estavam o seu pai, três assistentes sociais e quatro curiosos. menino-aranha morreu como viveu: só.

1997 / 9 anos


Imagem 1. A única imagem conhecida pelos leitores é esta silhueta que tenta evocar o gesto de escalar prédios como um "menino-aranha". (Foto: Beto Figueiroa /JC Imagem).
 
 

Tiago nasceu no dia 3 de dezembro de 1988. Portanto, tinha 9 anos quando em agosto de 1997, a polícia registrou sua primeira ação: escalou o edifício Ticiana, na Madalena, zona oeste do Recife, de onde levou dinheiro e celulares. Começou assim a saga de Tiago João da Silva. E vieram mais edifícios escalados e mais roubos no bairro de Piedade em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife.

Nasceu, neste momento, a fama e a notoriedade do personagem menino-aranha Ao completar 10 nos tentou roubar a casa de um militar, mas foi detido e levado ao Conselho Tutelar de onde fugiu no mesmo dia. No final de dezembro, a tentativa de roubar eletrodomésticos da casa de uma promotora de Justiça no bairro de Candeias em Jaboatão dos Guararapes, novamente foi preso e encaminhado ao abrigo da Fundação de Amparo a criança e adolescente (Fundac) na cidade Vitória de Santo Antão, zona da mata do Estado de Pernambuco.

Após três dias preso, executou sua 5ª fuga do abrigo [2], porém foi recapturado no mesmo dia. Sua vida já estava delineada por roubos, prisões e fugas. Até a morte.

1998 / 10 anos

No ano seguinte (1998), TJS, que é assim nomeado como exige o Estatuto da Criança e do Adolescente por ser menor de 18 anos, já é conhecido pelos pernambucanos como menino-aranha, continuou a escalar prédios (edifícios Sobrado de Boa Vigem, Ipê, Costa do Mar e outros) e a roubar os apartamentos. Preso foi levado agora para Diretoria da Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA). [3] Em algumas de suas ações estava acompanhado do irmão mais novo AJS, 10 anos, que não subia nos prédios e ficava aguardando embaixo.

Quando foram presos, cheiravam cola de sapateiro e levavam R$ 7 nos bolsos. Ficaram apenas 3 horas no Conselho Tutelar e fugiram. No final de dezembro, era o irmão mais velho MJS, 13 anos, que estava com ele quando foi, mais uma vez, preso.

TJS era franzino e conversava pouco. Respondia às perguntas balançando a cabeça e olhando em outra direção. Não pára de roer unha. O pai, o amolador Antônio da Silva, 54 anos, chorava quando fala do filho: "É muita humilhação. Só queria que um juiz prendesse ele e só deixasse sair com 18 anos". Segundo o pai, TJS começou a dar trabalho após a morte da mãe, há sete anos. Já nas palavras do José Rufino, conselheiro tutelar, TJS quase sempre se comportava bem quando vinha para o Conselho Tutelar, mas às vezes ficava muito nervoso e já chegou a atirar pedras nas pessoas.

Acrescentou que TJS estava gostando de ser notícia e se sentia um herói.

Essa notoriedade aumentou depois que ele se especializou em fugir de abrigos e instituições destinadas à proteção de criança em situação de risco. O juiz Luiz Carlos temia "que tanta popularidade terminasse por decretar a sentença de morte desse garoto. Alguma medida precisava ser tomada, antes que ele aparecesse morto em algum terreno baldio".

No entanto, o juiz Bartolomeu Bueno tinha uma posição diferente quando sentenciava: "Esse menino-aranha não pode ser considerado inimputável. Ele tem potencial de periculosidade real e subjetivo que precisa ser considerado". A promotora Laíse Queiroz apareceu com uma terceira posição sobre TJS, quando afirmava que o problema estava na ausência de políticas preventivas que conseguissem evitar realidades tão cruéis como a do menino-aranha. "A sociedade falhou por não ter conseguido garantir a esta criança condições mínimas de sobrevivência. Esse garoto foi adotado pelas ruas e seus atos são conseqüência desse abandono".

Em todos esses anos, TJS quase não foi ouvido e nunca entrevistado pelos repórteres, mesmo assim algumas de suas declarações, dadas enquanto estava sob custódia do Estado, foram publicadas ainda em 1998. Na sua primeira declaração, TJS eliminou qualquer dúvida quanto ao inicio de sua carreira e declarou que invade apartamentos desde os 9 anos. Todavia, a polícia não acreditou nisso e mandou fazer um exame da arcada dentária dele. TJS gostava de alardear suas façanhas e parecia sentir prazer com isso. Ele contava que no início era preso porque perdia a hora da invasão e os moradores já estavam acordando. "Geralmente subo nos prédios por volta das 4 horas da madrugada. Nesse horário, todo mundo está dormindo.

Para subir no edifício uso o pára-raios e aproveito para entrar quando vejo uma janela aberta e, depois, saio pela porta da frente, descendo pelo elevador. Nessa hora, o porteiro está sempre cochilando. Acrescentou que tem coragem de matar, mas nunca matou ninguém. E deixou claro o que quer e qual a sua posição no mundo: Não quero sair das ruas, não quero parar de roubar e não quero estudar. Gosto de brinquedos e se pudesse ganhar um presente de natal queria uma bicicleta".

1999 / 11 anos

No início de janeiro TJS tentou roubar uma casa da Imbiribeira - bairro do Recife, mas foi preso e levado para o Batalhão Dias Cardoso, no bairro de San Martin, e no dia seguinte reconduzido para o Centro de Ressocialização Santa Luzia, no bairro da Iputinga. Ali, ele passou 11 meses e por ter demonstrado bom comportamento foi enviado, de volta, à sua família. Fugiu dias depois. TJS estava quase diariamente na mídia. Já havia comentário do tipo só tem jeito matando.

O magistrado Eduardo Guilliod Maranhão moderava quando dizia que "ele ainda não tem condições de escolher o que é melhor para sua vida". Por outro lado, a imprensa tentava ressaltar os sinais de recuperação de TJS em relação ao início da internação, como a participação no campeonato de natação, onde ganhou três medalhas. Recebia acompanhamento psicológico e costumava ir, de ônibus, a consultas médicas fora do centro, acompanhado apenas de um educador.

2000 / 12 anos

Agora (18 de janeiro) TJS voltou a freqüentar a Pracinha de Boa Viagem. Foi encontrado dormindo pelos moradores de rua, que chamaram a polícia.

Ao seu lado, foi localizado um tubo de cola. Em setembro assaltou edifícios em Piedade e Casa Forte. E como sempre acontece, foi preso e deve "sofrer nova medida sócio-educativa". Ficou no Casarão de Semi-Liberdade, no bairro da Várzea, onde deveria comparecer par dormir todas as noites, obrigatoriamente. Mas fugiu e estava desaparecido.

2001 / 13 anos

TJS ficou detido na Fundac na cidade de Abreu e Lima. Passou por um tratamento de desintoxicação no Centro Eulâmpio Cordeiro, no bairro do Cordeiro.

2002 / 14 anos

Quando saiu do Centro Eulâmpio Cordeiro, passou a viver nas ruas, dormindo em Peixinhos, Olinda, onde era alimentado por uma moradora. Foi preso quando tentava arrombar, com um canivete, um veículo para roubar o toca-fitas, no estacionamento do Conjunto Residencial João Paulo II, em Cajueiro, zona norte da capital. Com ele se encontrava um rapaz chamado "Pirro", de maior idade.

Novamente, foi recapturado quando se encontrava na garagem do Ed. Vivenda das Orquídeas, no bairro da Torre. TJS estava agora roubando residências e automóveis. "Parei de escalar prédios. Roubo, agora, apenas casas que costumo entrar à noite, quando as pessoas dormem. Muitas vezes entrei pelo basculante. Outras vezes passei pela varanda. Levava as bolsas para a sala e fugia sem ninguém me ver.

Só fui preso dessa vez porque os seguranças viram a gente tentando tirar o toca-fitas. TJS contou ainda que deixou de cheirar cola e passou a fumar maconha. Diz que mora com o pai, mas de vez em quando vai para a rua porque em casa "é ruim". Para Ivan Porto, presidente da Fundac, o problema de TJS é emocional. "Em outras oportunidades em que ele esteve na Fundac foi submetido a um exame psiquiátrico e o especialista verificou graves problemas emocionais. Ele começou a assaltar depois que a mãe morreu e o pai alcoólatra não estaria sabendo cuidar dele. Enquanto o menino não tiver acompanhamento de um especialista não irá se recuperar".

2003 / 15 anos

Carta de um leitor do Diário de Pernambuco: O menino-aranha, face às suas proezas em escalar edifícios e praticar roubos, já integra o folclore da nossa cidade.[...] Esse entre e sai do DPCA faz parte do processo de ressocialização, ou é por conta de suas inúmeras fugas? Por que, então, não deixar esse garoto vinte e quatro horas sob guarda daquele órgão, para tentar soerguê-lo com um trabalho mais efetivo, já que pelos seus atos, ele demonstra ser um perigo para nossa sociedade. (09.07.2003 - Luiz Guimarães Gomes de Sá).

2004 / 16 anos

(Não encontramos nenhum registro nos jornais locais).

2005 / 17 anos


 

 

 

Imagem 2. Tiago João da Silva só teve sua foto publicada depois do dia 03 de dezembro de 2005 quando completou 18 anos, quinze dias antes de ser assassinado. (Foto: Andréa Rego Barros / Folha de Pernambuco).

A invasão de quatro apartamentos em edifício no bairro de Boa Viagem fez a polícia acreditar que o autor seria o menino-aranha, já que ele fugiu no início de maio da Fundac que fica no bairro de Casa Amarela e por causa de denúncias anônimas que afirmavam ter visto o TJS no bairro de Prazeres, Jaboatão dos Guararapes, no grande Recife. Ressalve-se que até esse momento a polícia nem os jornais dispunham de foto do menino-aranha.

Contudo, em meados de maio, ele foi encontrado embaixo da cama do quarto de serviço abraçado com um aparelho de DVD, do apartamento 402 de um edifício na beira-mar de Piedade. Ele tinha escalado e invadido o prédio por volta das 1h30 da madrugada. Preso, foi enviado para a delegacia da GPCA e depois encaminhado para a Fundac de onde fugiu aproveitando uma rebelião que aconteceu no final do mês de novembro, e foi se esconder na casa de uma tia.

No limiar de completar 18 anos, entre 1 e 5 de dezembro, TJS escalou mais um edifício na zona sul do Recife. O delegado Luiz Andrey quis provar que o roubo se deu depois do dia 3 e sendo assim, já com 18 anos, Tiago João da Silva, cometeu não um ato infracional, mas um crime. O certo é que desta vez Tiago não foi preso.

Dias depois, deu entrada, com duas perfurações de bala, no Hospital da Restauração (HR), o principal Pronto Socorro da região metropolitana do Recife, com o nome falso de Rafael da Silva. Tiago disse que teve uma desavença com traficantes da favela do Veloso, no bairro de Boa Viagem, e na troca de tiros foi baleado na mão direita e na barriga. Acrescentou que foi comprar pedras de crack quando foi baleado pelo traficante por causa de uma rixa. No dia 9 de dezembro, Tiago foi recapturado pela polícia no hospital e levado para GPCA. Depois foi apresentado à Vara da Infância e Juventude para ser encaminhado a Fundac no Cabo de Santo Agostinho, grande Recife.

18 de dezembro - Última fuga

Nove dias após ser capturado, vamos encontrar Tiago internado no setor de traumatologia do HR, enfermeira 601, para se submeter a uma cirurgia. A operação precisava ser autorizada por um responsável e a Fundac localizou o pai de Tiago. João Antonio da Silva, o pai, foi levado ao HR para liberar a cirurgia, mas não pode decidir pelo filho porque chegou completamente bêbado ao hospital. Tiago estava achando que os médicos iam amputar a mão dele e não queria passar pela cirurgia da mão.

O pai não teve condição nenhuma de ajudar o filho.O certo é que na noite do dia 18, um dos policiais da vigilância faltou e o outro, durante a madrugada, algemou Tiago na maca e foi ao banheiro. Quando voltou o paciente não estava mais lá. O agente deu por falta de Tiago à 00h30 do domingo, mas só registrou a fuga dele no plantão da delegacia de Santo Amaro, às 10h22. Foi a 39ª fuga de Tiago João da Silva e também a última.

Às 3h foi visto numa gafieira. Às 4h30 o Plantão de Homicídios foi informado que havia um corpo com 14 perfurações de balas de pistolas calibre 380 e nove milímetros numa praça em Boa Viagem. Os tiros foram na cabeça, no tórax e nas mãos. Meninos de rua reconheceram o corpo como sendo de Tiago. A delegada Ivonete Silva, do Núcleo de Homicídios, contou que as características do assassinato sinalizavam a vontade de exterminá-lo.

"Queriam acabar com a fama dele. Contamos seis tiros numa mão", observou. Segundo testemunhas, no momento do crime, Tiago estava dormindo na praça junto com uma mulher (namorada?). Dois homens, em uma moto, teriam abordado-o e efetuado os disparos. O corpo de Tiago João da Silva foi levado às 7h para IML (Instituto de Medicina Legal) do Recife e foi identificado por uma assistente social da Fundac já que nenhum parente compareceu ao IML.

20 de dezembro / Enterro solitário

Tiago João da Silva, 18 anos, conhecido como menino-aranha, foi enterrado, ontem à tarde, numa cova rasa do Cemitério de Santo Amaro, na área central do Recife. Na morte, o mesmo abandono que teve na vida. Não houve velório, choro, reza e nem coroa de flores. Da família, apenas o pai, João Antônio da Silva, acompanhou o enterro. No cortejo solitário, recebeu abraços de alguns estranhos. Quando o caixão chegou ao cemitério, por volta das 13h, abriu o visor e fechou rapidamente após olhar o rosto do filho. Um pouco antes, ainda no Instituto de Medicina Legal (IML), desabafou. "Estou aliviado. O meu filho agora está guardado. Antes, ele estava preso mas não estava guardado. Estou sossegado." (Jornal do Commercio - Caderno Cidades, p. 03, 21.12.2005)

Um paletó azul vestia o corpo já sem vida de Tiago João da Silva, 18 anos. O anti-herói que escalou como uma aranha dezenas de prédios da Zona Sul do Recife desde a infância morreu como muita fama, mas sem qualquer admirador por perto. Na hora do seu enterro, ontem, no Cemitério de Santo Amaro, às 13h20, apenas o pai, o amolador de tesouras João Antônio da Silva, 62, três funcionários da Fundac, uma amiga e quatro curiosos que estavam no cemitério por acaso. [...] Tiago ou "menino-aranha" foi capa de jornal, noticiário de televisão e muito comentado entre as rodas da classe média e alta, a quem tanto incomodou com suas escaladas, mas não teve nem velório. Mais ainda, não teve oração para encomendar o corpo ou mesmo uma plaquinha ou flores em cima da cova rasa, na qual foi enterrado. (Diário de Pernambuco - Caderno Vida Urbana, p. B10, 21.12.2005).


 

 

 

 

Imagem 3. O pai, de chapéu, acompanha o solitário enterro do filho. (Foto: Miva Filho / Folha de Pernambuco).

De forma bastante melancólica, Tiago foi enterrado ontem, por volta das 13h30, na quadra 36 do Cemitério de Santo Amaro. Apenas o pai dele, João Antônio da Silva, 62, três assistentes sociais da Fundac e quatro curiosos acompanharam o pequeno cortejo. Quando estava perto da cova, João Antônio abriu o caixão e colocou um pequeno ramalhete de flores dentro dele. Bastante emocionadas, as assistentes sociais da Fundac acompanharam o sepultamento de longe. (Folha de Pernambuco, 21.12.2005).

Alguns comentários de leitores na Folha de Pernambuco Digital: Stock - Esse foi tarde demais, deixaram ele viver muito; Luiz Carlos - Graças a Deus. Já que a polícia não age, que assim seja o fim de todos os bandidos.

Isso seria nossa redenção; Mauro - Já vai tarde. A diretora da Fundac que lamentou sua morte deveria ter levado ele para sua casa e adotado o bichinho; Sérgio - É uma alma sebosa a menos... Joga o corpo dessa peste no lixo e toca fogo; Leonardo Chopp - Ainda bem que morreu, menos um para atormentar a nossa vida.

O que levaria jornais, rádios e televisões manterem por longos 9 anos uma história de um menino que escalava prédios para roubar e fugia sempre quando preso? Tentarei levantar algumas hipóteses e pressupostos para chegar a uma compreensão melhor do fenômeno.

1º - Como se viu anteriormente, as instituições existem para que o homem possa servi-las e com isso construir sua própria identidade que o habilita, no mundo institucional, a coexistência com o outro. Ora, parece ter havido, no caso em análise, um indivíduo de nome Tiago, que recusou os valores apresentados pela família, principalmente depois da morte da mãe, e não encontrou guarida em outras instituições responsáveis pela sua educação.

E o final trágico dessa história me faz supor que estamos convivendo e participando da degeneração do tecido social e até mesmo do apodrecimento das instituições do Estado.

Logo, como um percurso inevitável, Tiago foi "adotado pelas ruas", isto é, apresenta a configuração de um indivíduo que optou pela ruptura adotando comportamento anti-social. Esse seu modo de ser é explicado pr Searle (1995:96) como um "status" que não possui a função. O status de menino-aranha é puramente honorífico e carrega uma honra negativa. Esse status negativo da sua história pessoal, somado a ausência ou inexistência das instituições, realimentou o interesse do leitor até que uma das partes fosse eliminada.

2º - Tiago João da Silva, ou melhor, o menino-aranha, apareceu para a sociedade com um modo de ser totalmente diverso do que é esperado de uma criança. E o que se espera de uma criança? Merleau-Ponty, no curso Filosofia e Linguagem que deu na Sorbonne entre 1949-1952, (1990:97-118), traça um quadro da criança onde filósofos, pedagogos, historiadores e antropólogos apresentam suas teorias. Em resumo, é dito que a "criança é o que acreditamos que ela seja, o reflexo do que queremos que ela seja".

Ela aparece como nossa propriedade, continuação e encarregada de realizar nossas esperanças. A criança é livre, mas não tem o poder. A liberdade, portanto, não tem sentido para ela, pois nenhuma autonomia lhe é possível.

Ora, Tiago, ao sair do ninho familiar, aparece assumindo uma liberdade por conta de um "poder" marginal que o afasta de ser a esperança do adulto.

Outra questão colocada diz respeito à importância que tem a imagem especular para a criança. Merleau-Ponty (1990:101) explica o fascínio da imagem para a criança:

"A contemplação de sua imagem tem para a criança algo de fascinante. Ela experimenta o contraste entre a visão do seu corpo tal como é visto de fora, tal como o outro o vê, e a imagem que ela própria tem do corpo (o contraste entre eu como objeto e eu como consciência vivida)".

A recusa da socialização por parte de Tiago é compensada pela imagem especular de menino-aranha que escala altos prédios sem ser notado e que lhe traz fama e é objeto de notícias. Mesmo sendo um menino franzino de 1,60 m de altura, suas proezas lhe conferem uma estatura simbólica de herói ou anti-herói.

Na sua imagem refletida nos jornais e televisão ele se reconhece e sente uma correspondência entre as mudanças observadas na sua aparência visual e na sua auto-estima. Em todo caso, diz Merleau-Ponty (1990:118): "A imagem especular permite à criança confirmar sua posição no mundo, sua "paixão de ser homem", "essa loucura pela qual o homem se crê um homem"; ela limita e suprime na criança o elemento de superação de sua condição humana." No entanto, na sua jornada até a morte Tiago foi uma criança segregada do mundo.

Os poucos elos que o ligavam à família e à sociedade não lhe trouxeram apoio, apenas reafirmaram sua vida marginal. O pai, que é um elemento dos mais duráveis e dos mais fortes na vida de uma criança, podia ajudá-lo a posicionar-se no mundo, também falhou. Sua identificação com o pai não pode ser construída, já que a paternidade é um laço institucional criada pela vida comum. E Tiago não teve essa vida comum, nem João Antônio da Silva, por ser alcoólatra, foi capaz de lhe oferecer um caminho de uma realização humana. A ressonância da história de Tiago na emoção do leitor é muito grande, evoca na memória sentimentos relacionados à vida de cada um como pai ou como filho ou ambos.

3º -Seguindo o pensamento de Giambattista Vico (séc. 18), expresso na obra Princípios de (uma) ciência nova, o homem cria as instituições e estas retroagem sobre o homem que as criou. Por conseguinte, só é possível conhecer as instituições conhecendo os homens e vice-versa. Em outros termos, as decisões dos homens são determinadas pelo sistema de instituições. O caráter das instituições do homem determina assim a sua atividade social. Os produtos conceituais não são resultados dos indivíduos, mas da sociedade como um todo. Assim, um sistema dado será fecundo não por episódios particulares, mas pelo conjunto dos fatos de uma determinada época histórica com seus costumes, religiões, mitos e fábulas.

Ora, adotando esses princípios de Vico, poderei dizer que a história pessoal de Tiago, na verdade, é a história das instituições que lhe dizem respeito: família, escola, proteção do Estado etc. Portanto, o leitor estaria interessado em saber que suas instituições fracassaram e não apresentaram sinais de recuperação porque os homens refletem a realidade degenerativa da sociedade e se acobertam sob um véu retórico.

Mas, o dia-a-dia de violência e de desrespeito aos direitos mais elementares do homem empurra os leitores / cidadãos a adotarem posturas opostas de ethos como a pura e simples eliminação de bandidos. Esse comportamento é alimentado de forma indireta pela imprensa, pelo menos no caso específico da história de Tiago, quando em nove anos de cobertura, um mesmo texto é veiculado com pouquíssimas variações e nenhuma contextualização.

4º - Minha última constatação ou pressuposto é que a mídia apresentou e validou abstrações da história pessoal de Tiago, o que significou destruir a própria realidade. Em nenhum dos 45 textos pesquisados foi encontrado o que Adelmo Genro (1989:191) postula como "um equilíbrio entre a singularidade do fato, a particularidade que o contextualiza e, com base nessa relação, uma certa racionalidade intrínseca que estabelece se significado universal". O próprio fato da criação da perífrase menino-aranha levou a abstração para o grau máximo de fantasia enfraquecendo e debilitando o raciocínio.

E o espanto, diz Vico (§ 35) "é filho da ignorância; e quanto maior o efeito admirado, tanto mais, proporcionalmente, cresce o espanto". Então, tudo fica na esfera dos sentidos e da emoção. Durante todos esses 9 anos, foi a história pessoal do menino-aranha e não de Tiago João da Silva que prendeu a atenção dos leitores e espectadores e ajudou a criar uma insensibilidade diante do sofrimento humano e a sugerir soluções fora dos limites da moral institucional. É como bradou Sergio mais acima: É uma alma sebosa a menos... Joga o corpo dessa peste no lixo e toca fogo.

Notas

[1] A história de Tiago está baseada nas notícias publicadas nos seguintes endereços: Jornal do Commercio: <www.jc.com.br>. Diário de Pernambuco: <www.dpnet.com.br>. Folha de Pernambuco: <www.folha.pe.com.br>.

[2] Como os jornais não noticiaram todas as suas fugas e prisões, a soma delas é imprecisa; o que importa aqui é ressaltar a total falta de controle das instituições sobre o garoto.

[3] O DPCA mudou para GPCA, sendo G de Gerência.

Referências bibliográficas

BERGER, P. L. & LUCKMANN, T. A Construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2004. 24ª ed.

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*Marconi Oliveira da Silva é Mestre em Filosofia e Doutor em Lingüística pela Universidade Federal de Pernambuco e Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social / Jornalismo da UFPE. E-mail: filomarc@uol.com.br.

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®Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]