Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


ARTIGOS
   

Esboço para um diálogo:
História oral e jornalismo de grande extensão

Por Ricardo Santhiago*

Resumo
Este artigo pretende pontuar as interdições no diálogo entre História Oral e jornalismo, mostrando como e por que elas devem ser superadas. Desfazendo falsos mitos sobre a prática jornalística, busca estimular a instauração de uma relação disciplinar profícua e eficaz. Nessa direção, mostra como o Novo Jornalismo serve-se de técnicas da História Oral - e como os oralistas podem se valer de recursos do jornalismo literário para aperfeiçoar seus trabalhos.

Palavras-chave
[História oral / Novo jornalismo / Relações disciplinares]


Introdução

Enquanto caminha rumo à sua afirmação como disciplina, a História Oral brasileira consolida-se como um lócus essencialmente interdisciplinar, para onde convergem ferramentas de muitos domínios das ciências humanas.

Desde que deixou de ser apenas uma técnica para a documentação de depoimentos orais, ela tem aceitado o aporte teórico e instrumental de disciplinas como Antropologia, Sociologia e Lingüística, dentre outras, em seus vários momentos de realização. Ao mesmo tempo, tem insistido em salientar suas especificidades e em distinguir-se de saberes vizinhos.

Um de seus processos fundamentais, a título de exemplo, é a transcriação, que, na transposição do código oral para o escrito, busca garantir a inteligibilidade do texto, ao mesmo tempo restituindo-lhe as emoções do momento da entrevista e preservando certas marcas da oralidade (Cf. Caldas, 1999; Gattaz, 1996; Meihy, 2005). O conceito - que se aproxima de uma franca tradução - e seu nome foram tomados de empréstimo ao poeta, tradutor e ensaísta Haroldo de Campos, que desenvolveu a transcriação no campo da Lingüística. Ele, por sua vez, é adaptado e radicalizado pela História Oral - e aqui falamos da corrente inspirada pela obra de José Carlos Sebe Bom Meihy -, adquirindo três dimensões: textual, processual e política.

Assumindo e incorporando elementos de tantas disciplinas, a História Oral, a um tempo, mantém interdito o diálogo possível, necessário e postergado com o jornalismo. Prefere suspender seu veio comum - a entrevista, central em ambas as práticas - e ressaltar as diferenças entre suas finalidades e procedimentos, que efetivamente são muitas.

A resistência à aproximação com o jornalismo é justificável - e passa primordialmente pelo compromisso justo dos oralistas em resguardar a legitimidade e exclusividade de sua prática. Há comunicólogos (bem como profissionais de outras áreas) que reclamam ao seu trabalho a alcunha de História Oral; sem conhecer sua metodologia, buscam beneficiar-se de sua credibilidade. Por isso, em artigos, livros, aulas e palestras, costuma-se reiterar que não se deve confundir a História Oral com o momento da entrevista (Cf. Meihy, 2005:179), esgotando no registro eletrônico a tarefa do pesquisador. "História Oral é (...) um procedimento mais específico e, sobretudo, programado; é o resultado de entrevistas indicadas em projetos previamente existentes e elaborados para atender a algum objetivo" (Cf. Meihy, 2005:21).

Indistinção análoga, entretanto, tem acometido os oralistas em suas críticas ao jornalismo - ou, em melhores termos, a uma de suas modalidades. Na maior parte das vezes, eles se referem ao jornalismo diário, onde "a notícia deve ser recente, inédita, verdadeira, objetiva e de interesse público" (Cf. Erbolato, 200:55) e "a entrevista obedece a uma técnica que a torna apta a produzir notícia para o consumo de massa" (Op. Cit., p. 158).

Nesse sentido, os juízos são pertinentes. Para além da violação de preceitos éticos, razoavelmente cometida por órgãos de imprensa - como a publicação de materiais não-autorizados ou a gravação de conversas sem o conhecimento do interlocutor -, História Oral e jornalismo diário resguardam diferenças de procedimentos ainda mais palpáveis e indiscutíveis. Entre elas, estão a existência de um projeto orientador do trabalho (adotado apenas pelos oralistas); o tipo de entrevista executada (para a História Oral, subjetiva; para o jornalismo, informativa); e o objetivo do trabalho (reflexivo e reintegrador, na academia; noticioso e fragmentário, na imprensa).

Mesmo a esse respeito, há posições divergentes. Herschmann & Pereira, por exemplo, expõem que o papel da mídia não seria apenas fragmentador e atomizador, pois facilita experiências reintegradoras e reconstituições identitárias simbólicas, inclusive à longa distância, que de outra maneira não seriam possíveis: "(...) revistas de fofoca, reality shows, talkshows, enfim, o farto material biográfico veiculado na mídia passa a ter grande importância, porque constrói a sensação de que fazemos parte de uma grande coletividade, isto é, nos sentimos parte de uma 'família estendida', parte da 'nação'". (Cf. Herschmann & Pereira, 2002:148).

Essas ressalvas - que não são poucas nem desprezíveis - acabam por impedir diálogos lícitos e profícuos entre História Oral e jornalismo, obstando a troca de experiências que poderiam contribuir para o progresso das duas práticas, injetando-lhes frescor e renovado entusiasmo. Instrumentos de comunicação, com forte vocação e virtude política, que têm como premissa e fim a democracia e a liberdade, encontram-se no apreço pela palavra. A arte do oralista e a arte do jornalista não podem, portanto, ver marginalizados seus canais de interlocução.

História oral e jornalismo: apropriações

Argumentando em favor da incorruptibilidade da História Oral - por vezes sem ter clareza sobre como se daria o mau emprego de suas técnicas -, os oralistas renunciam ao diálogo com os profissionais da comunicação. Certos grupos mais conservadores e exasperados da academia chegam a se manifestar depreciativamente sobre o que (não) conhecem do jornalismo.

Para eles, a pergunta imperfeita é designada como "pergunta de jornalista".

Qualquer deslize em uma entrevista - seja na preparação, execução ou tratamento - atribui a ela o conceito insultuoso de "entrevista jornalística".

Por sorte, eles não recebem tratamento equivalente. Sem prescindir do arcabouço teórico e instrumental de sua própria disciplina - que existe, queiram ou não os acadêmicos ortodoxos -, o jornalismo procura reabastecer-se com os conhecimentos soldados pelas outras ciências humanas e sociais. Postura curiosa para uma categoria profissional geralmente celebrada como arrogante e onipotente, que poderia conformar-se com exclusividade aos manuais de sua área.

O resultado é um aporte unilateral que leva ao estudo e à prática do jornalismo alguns dos métodos empregados pela História Oral - sobretudo aquele que pode se aplicar com mais eficiência à etapa de captação de notícias: a entrevista. A contenda, entretanto, não se encerra por aí. Em seus laboratórios e núcleos de pesquisa, os oralistas se ressentem: reclamam, surpreendentemente, que o conhecimento produzido por eles esteja sendo utilizado.

A quadrilha, mesmo assim, cresce. Na Universidade Federal de Santa Maria, o Grupo de Estudos de Jornalismo desenvolve, dentro da linha de pesquisa Jornalismo e História Oral, a proposta de verificar a aplicabilidade da História Oral como instrumento de captação de notícias. A Academia Brasileira de Jornalismo Literário, localizada em Campinas, oferece regularmente o curso livre "História Oral - Conexões e trocas (com o Jornalismo Literário)", para grupos em diversas cidades. Outros pesquisadores também têm discutido essa conexão, sob diferentes ângulos, mas quase sempre no âmbito das comunicações.

Um dos trabalhos mais antigos, nesse sentido, é "História Oral e jornalismo: limites e possibilidades", de Cristina Barroso Alves, preparado em 1994 como trabalho de conclusão de curso. "Ouvir o outro: Entrevista na História Oral e no jornalismo", foi o trabalho de Joëlle Rouchou para o XXVI Intercom, de 2003. Suely Maciel apresentou o trabalho "O estatuto da História Oral e as fronteiras com o jornalismo: possibilidade metodológica e proposta de um novo fazer" no 4º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, de 2006.

É claro que em favor da postura inflexível de certos acadêmicos existem, mais do que argumentos, fatos. O uso da entrevista pelo oralista é quase que diametralmente oposto ao uso do jornalista - o que pressupõe, inclusive, modos de apreensão e tratamento ajustados às respectivas finalidades. No primeiro caso, o depoimento oral forma o núcleo documental do trabalho. As indagações, ilações, possibilidades de reflexão emergem da fala do entrevistado, que aparece antes e acima de categorias, conceitos e hipóteses apriorísticas. O próprio compromisso de pensar conceitualmente sobre o resultado da entrevista os diferencia (como também distingue, entre si, grupos de História Oral; alguns vêem na documentação o seu único fim).

O jornalista, por sua vez, utiliza a entrevista para ilustrar uma notícia ou reportagem: recorta a fala do entrevistado com a intenção de complementar o texto e, em alguns casos, de autenticar o que já foi exposto. Na maior parte das vezes, todas as informações captadas pelo jornalista provêm de fontes orais - testemunhas que presenciaram certo evento. Se a reprodução de sua fala, porém, parece desnecessária, é oportuno lembrar que faz parte da própria natureza do jornalismo a assimilação de excertos daquilo que se chama "a voz do povo". Até mesmo como estratégia simultaneamente política, discursiva e mercadológica - em tudo legítima - de evidenciar que alguém está sendo ouvido.

Sendo esta uma das críticas mais recorrentes que a História Oral faz ao jornalismo, é de se perguntar: se outras ciências (como a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia) lançam mão de procedimento idêntico - selecionando arbitrariamente trechos de entrevistas, dispensando a colaboração e autorização do entrevistado - para confirmar suas hipóteses, ora, por que oralistas continuam dialogando com esses profissionais tão levianos? Mesmo dentro dos limites da História o questionamento é válido: "O império dos historiadores sobre as fontes orais, aliás, reproduz os maus tratos notados entre estes e os sociólogos, antropólogos e demais grupos useiros da oralidade como recurso para suas tarefas analíticas" (Cf. Meihy, 2006:447).

Talvez, então, o problema seja outro: a adaptação da técnica de entrevista desenvolvida pela História Oral para os procedimentos do jornalismo. Contra isso, entretanto, há pelo menos uma evidência forte e um argumento decisivo.

A evidência é que, embora haja trabalhos que mostrem a aplicabilidade da História Oral na captação de notícias (é o caso dos textos que já citamos), ela não tem sido efetivamente utilizada, sobretudo pelos repórteres da imprensa periódica. Isso graças às condições materiais objetivas que não permitem a elaboração detalhada de questionários, a execução de longas entrevistas, a conferência e autorização do material. São tarefas inteiramente inviáveis na facção ininterrupta de um produto diário, pelo menos sob as condições de trabalho oferecidas pelas empresas jornalísticas em nossos dias. O escape para as propostas de intercâmbio entre jornalismo e História Oral residiria, portanto, no jornalismo de grande extensão, que não sofre com a urgência e a inflexibilidade dos fechamentos.

O argumento, por sua vez, é muito mais simples. Em um primeiro momento, os oralistas insistem que sua prática - técnica, metodologia ou disciplina, como se queira chamar - não se reduz à entrevista. Em seguida, se melindram quando as técnicas de captação de depoimentos são instrumentalizadas por outros profissionais - dizem com presunção que "sua" História Oral está sendo deturpada. Mas, vejamos, "a" História Oral não era mais do que isso?

As longas durações

Uma chave para compreender a posição dos oralistas talvez seja trazer à lembrança o fato de que o espaço de realização da História Oral, por natureza, é a academia - mesmo que seu compromisso com a devolução às comunidades abordadas seja patente. Uma dissertação de mestrado custa a seu autor pelo menos um ano e meio de trabalho. Nas redações de jornais, os repórteres chegam a produzir mais de uma dezena de notícias diariamente. Mesmo as reportagens especiais - cada vez mais exíguas - não consomem mais que duas semanas.

Nesse aspecto, o gênero jornalístico que poderia ser comparado com mais justiça aos trabalhos acadêmicos é o livro-reportagem - que deriva desta vultuosa, mas minguante, tradição de grandes reportagens da imprensa. Depende da perspicácia do jornalista, a quem cabe eleger, dentro dos fatos passados, aquele que se desdobra em outros eventos, que segue repercutindo e é capaz de chamar a atenção do outro. A um só tempo, a boa reportagem informa, aprofunda e seduz esteticamente o leitor, oferecendo "todo um contexto embelezado pela dimensão humana, pela tradução viva do ambiente onde ocorrem os fatos, pela explicação de suas causas, pela indicação dos rumos que poderá tomar" (Cf. Lima, 1998:10).

O livro-reportagem, ampliando esse anseio, rompe com os padrões mais limitadores do jornalismo periódico: o afã pela atualidade, a opacidade da notícia, as explicações improvisadas, o compromisso com a periodicidade (por conta dos fechamentos apertados), as técnicas de escrita (desde a pirâmide invertida até as imposições e cerceamentos dos manuais de redação), a ocultação do narrador. Nesse sentido, "exerce função recicladora da prática jornalística, porque ousa incorporar contribuições conceituais e técnicas provenientes de áreas como a literatura e a história" (Cf. Lima, 1998:08).

Tratando do texto biográfico, Vilas Boas (2002) dá outra dimensão a esse intercâmbio. Considera a biografia como resultado do cruzamento entre o histórico, o jornalístico e o literário, "híbrida por natureza" (p. 15), sem filiações e cercaduras. "Acredito que a biografia pode emprestar e tomar emprestado ferramentais variados da História, da Sociologia, da Psicologia, do Jornalismo etc. Os campos complementam-se caso a caso.

Primeiramente, historiografia é uma das fontes indispensáveis para compreender o fazer biográfico, na medida em que contempla pesquisa, documentação, interpretação e recursos narrativos" (p. 19).

Em seus dois principais textos, Lima (1998, 2004) ainda não menciona a História Oral como recurso para o livro-reportagem. Entretanto, trabalha em diversos momentos com a idéia de história de vida, resultante de "entrevistas livres (...) desenvolvidas pelas ciências sociais, e sobretudo pela antropologia, poderoso recurso para a melhoria dos processos de captação dos jornalistas" (p. 93). Adiante, citando Buitoni (1986), diz que não há definições rigorosas do que seja a entrevista de história de vida, mas que ela privilegiaria as percepções e interpretações individuais do entrevistado.

Se esta história de vida vai ao encontro do que hoje conhecemos como a História Oral de vida de Meihy, praticada largamente no Núcleo de Estudos em História Oral da USP (NEHO-USP), é de se acreditar que ela só não foi citada porque seu primeiro texto é posterior à edição de estréia da obra de Lima, Páginas ampliadas, que data de 1993 (e está, em muitos aspectos, desatualizada). O Manual de História Oral, de Meihy, foi lançado em 1996, e embora outros livros de História Oral já existissem (Alberti, 1989, 1990), não davam destaque à História Oral de vida.

Vilas Boas, mais tarde (2002), dando prosseguimento ao trabalho de Lima, reconhece o potencial contributivo da História Oral. Partilha, inclusive, de nossa idéia movedora. "Apesar dos duelos acadêmicos (muitas vezes anódinos) acerca dos estatutos de suas disciplinas, os princípios e as técnicas da História Oral de vida assemelham-se muito aos do livro-reportagem elaborado com rigor" (p. 62). Acrescenta que a idéia cristalizada pela academia é que o jornalista "age no improviso" (p. 63) e seu fazer não é passível de sistematização. Opondo-se a estas noções, e sem ignorar as diferenças em seus processos de feitura, o autor expõe algumas das razões para a assimilação da História Oral de vida (e de sua variação, a narrativa biográfica, mais organizada cronologicamente) pelos jornalistas-biógrafos, discriminando fronteiras e salientando suas convergências.

O perfil jornalístico: uma chance de diálogo

Os trabalhos de História Oral, por sua estrutura, rompem com as normas acadêmicas convencionais em diversos aspectos: na preparação de um capítulo inicial, chamado "história do projeto", que explica a motivação pessoal do pesquisador em realizá-lo e registra o percurso e os percalços do trabalho; na publicação integral das histórias de vida, por vezes justificando tomos de grande extensão; em lampejos de ficcionalidade nas histórias narradas. Vamos nos ocupar desta última característica.

O oralista confecciona o documento escrito em três passos:

1) transcrição absoluta da entrevista, com o registro completo de ruídos, repetições e vícios de linguagem;

2) textualização, que suprime elementos desnecessários e incorpora as perguntas à fala do entrevistado, produzindo um texto unissonante; e

3) a transcriação. Esta última etapa recria plenamente o texto, tornando "uma malha de perguntas e respostas em um texto, um uma malha ficcional" (Cf. Caldas, 1999:73): lançando mão de recursos literários, devolve a ele o que as palavras meramente transcritas não dão conta de mostrar, como entonações, expressões irônicas e de duplo sentido; evidencia eventos significativos para a compreensão da entrevista, como o choro ou o riso; facilita a recepção do documento pelo público leitor, articulando blocos temáticos e padronizando variações lingüísticas.

Nesse momento, a interferência do oralista é clara, explicitada e assumida.

A crítica que detratores da História Oral fazem a essa técnica, entretanto, é desimportante: o texto final é legitimado pelo entrevistado na etapa seguinte, de conferência, negociação e autorização do documento. O depoente recebe seu texto trabalhado; pode indicar a necessidade de refacção ou exclusão de partes dele; e, reconhecendo-se no documento, autoriza seu uso público. Então, assume-se como colaborador - que efetivamente colaborou para o trabalho de um autor, o oralista.

De modo geral, o trabalho de transcriação é visto com muita curiosidade e interesse por profissionais que não o praticam. Mostrar as incidências, o grau de interferência do oralista sobre a fala do outro e as técnicas literárias utilizadas é tarefa que está por ser feita, mas que não é o objetivo deste artigo (para isso, aliás, talvez dois outros campos do conhecimento, a teoria literária e a crítica genética, possam cooperar). À guisa de exemplificação, podemos citar o habitual expediente de emular as lágrimas do colaborador por meio de frases como "eu até choro quando me lembro disso...".

Mesmo com o uso de recursos como este, há dois tipos de elementos que costumam escorrer do documento em seu processo de constituição. O primeiro é o núcleo informativo sobre o entrevistado, nem sempre contemplado na entrevista - sobretudo nas narrativas de vidas públicas, como de políticos, artistas e celebridades. Para a História Oral, o factual tem importância secundária. Além disso, é dispensável fazer perguntas sobre o que se pode conhecer por outras fontes, por mera formalidade. As condições da entrevista, arroladas no caderno de campo (instrumento que acompanha o oralista durante toda a pesquisa), também escapam ao texto final. São informações sobre a evolução do projeto; o caminho para se chegar aos entrevistados; as impressões do oralista a respeito do encontro; o registro de locais, datas e situações.

Os dois elementos têm participação relevante na elucidação de questões levantadas pelas entrevistas; por isso, devem ser integrados ao texto. Em alguns casos, entretanto, sua incorporação à entrevista parece resultar em um teatro da linguagem ineficiente. Como proceder, por exemplo, com a descrição do espaço da entrevista nos momentos em que eles pareçam fundamentais? Em alguns casos, o emprego de construções fraseológicas soaria exageradamente artificial. Por isso, aloca-se tais dados em textos de apresentação curtos (comumente chamados de "janelas") que costumam acompanhar, individualmente, cada história de vida.

Nesse fragmento, porém, o pendor explosivo, provocador e transformador da História Oral é matizado. Se na narrativa de vida - produzida pelo oralista, mas sempre atribuída ao outro - concorrem elementos históricos e literários, resultando em um texto criativo e germinal em sua essência, "feixe vivo de ficcionalidades", "intransitividade viva" (Cf. Caldas, 1999:75), os textos de apresentação quase sempre reproduzem os modelos burocráticos, enfadonhos e desgastados da redação acadêmica.

Nesse âmbito, o perfil jornalístico, gênero breve que interioriza os preceitos do livro-reportagem e da biografia, servindo-se também - entre tantas outras referências - da técnica de entrevista da História Oral, pode atuar com relevo. Vilas Boas (2003) enumera algumas características do perfil: é uma narrativa curta "tanto na extensão (tamanho do texto) quanto no tempo de validade de algumas informações e interpretações do repórter" (p. 13); autoral; focaliza frações da vida de uma pessoa; prevê envolvimento do repórter com ela; subverte o princípio da objetividade; lança mão de recursos literários e mistura "memória, conhecimento, imaginação, sínteses e sentimentos" (p. 13-14) no processo de criação.

A um tempo distinguindo-se e identificando-se com o jornalismo convencional, o perfil jornalístico-literário consolida atributos que vão ao encontro das necessidades dos textos de apresentação das histórias de vida. Condensa a informação essencial, que para grupos de leitores pode ser desconhecida; compõe descrições saborosas e concisas de paisagens, tempos e personagens; materializa índices expressivos da comunicação não-verbal; exibe a perspectiva objetiva e a impressão subjetiva do autor sobre a personagem tratada. Se assim é, e se a História Oral assimila e desloca tantas ferramentas disciplinares, por que não trazer o perfilar como trunfo para seu fim integrador?

Saberes que ambicionam a comunicação, a interpretação e a compreensão holística de um tempo, de uma personagem ou de um grupo, jornalismo de grande extensão e História Oral não podem se furtar a um colóquio franco e continuado que, em vez de separar pela diferença, una e some pela semelhança. A partir de sua microestrutura, o perfil - enobrecedor por si; embrionário por sua latência - pode denunciar convenientes similitudes entre oralistas e jornalistas que, doravante, são buscadas.

Referências bibliográficas

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*Ricardo Santhiago é graduado em Comunicação Social - Jornalismo (PUC-SP), pós-graduado em Jornalismo Científico (LabJor/Unicamp), mestrando em História Social (FFLCH/USP) e pesquisador do Núcleo de Estudos em História Oral da USP (NEHO-USP).


®Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]