Esboço
para um diálogo:
História oral e jornalismo de grande
extensão
Por Ricardo
Santhiago*
Resumo
Este
artigo pretende pontuar as interdições
no diálogo entre História
Oral e jornalismo, mostrando como e por
que elas devem ser superadas. Desfazendo
falsos mitos sobre a prática jornalística,
busca estimular a instauração
de uma relação disciplinar
profícua e eficaz. Nessa direção,
mostra como o Novo Jornalismo serve-se de
técnicas da História Oral
- e como os oralistas podem se valer de
recursos do jornalismo literário
para aperfeiçoar seus trabalhos.
Palavras-chave
[História
oral / Novo jornalismo / Relações
disciplinares]
Introdução
Enquanto
caminha rumo à sua afirmação
como disciplina, a História Oral
brasileira consolida-se como um lócus
essencialmente interdisciplinar, para onde
convergem ferramentas de muitos domínios
das ciências humanas.
Desde
que deixou de ser apenas uma técnica
para a documentação de depoimentos
orais, ela tem aceitado o aporte teórico
e instrumental de disciplinas como Antropologia,
Sociologia e Lingüística, dentre
outras, em seus vários momentos de
realização. Ao mesmo tempo,
tem insistido em salientar suas especificidades
e em distinguir-se de saberes vizinhos.
Um
de seus processos fundamentais, a título
de exemplo, é a transcriação,
que, na transposição do código
oral para o escrito, busca garantir a inteligibilidade
do texto, ao mesmo tempo restituindo-lhe
as emoções do momento da entrevista
e preservando certas marcas da oralidade
(Cf. Caldas, 1999; Gattaz, 1996; Meihy,
2005). O conceito - que se aproxima de uma
franca tradução - e seu nome
foram tomados de empréstimo ao poeta,
tradutor e ensaísta Haroldo de Campos,
que desenvolveu a transcriação
no campo da Lingüística. Ele,
por sua vez, é adaptado e radicalizado
pela História Oral - e aqui falamos
da corrente inspirada pela obra de José
Carlos Sebe Bom Meihy -, adquirindo três
dimensões: textual, processual e
política.
Assumindo
e incorporando elementos de tantas disciplinas,
a História Oral, a um tempo, mantém
interdito o diálogo possível,
necessário e postergado com o jornalismo.
Prefere suspender seu veio comum - a entrevista,
central em ambas as práticas - e
ressaltar as diferenças entre suas
finalidades e procedimentos, que efetivamente
são muitas.
A
resistência à aproximação
com o jornalismo é justificável
- e passa primordialmente pelo compromisso
justo dos oralistas em resguardar a legitimidade
e exclusividade de sua prática. Há
comunicólogos (bem como profissionais
de outras áreas) que reclamam ao
seu trabalho a alcunha de História
Oral; sem conhecer sua metodologia, buscam
beneficiar-se de sua credibilidade. Por
isso, em artigos, livros, aulas e palestras,
costuma-se reiterar que não se deve
confundir a História Oral com o momento
da entrevista (Cf. Meihy, 2005:179), esgotando
no registro eletrônico a tarefa do
pesquisador. "História Oral
é (...) um procedimento mais específico
e, sobretudo, programado; é o resultado
de entrevistas indicadas em projetos previamente
existentes e elaborados para atender a algum
objetivo" (Cf. Meihy, 2005:21).
Indistinção
análoga, entretanto, tem acometido
os oralistas em suas críticas ao
jornalismo - ou, em melhores termos, a uma
de suas modalidades. Na maior parte das
vezes, eles se referem ao jornalismo diário,
onde "a notícia deve ser recente,
inédita, verdadeira, objetiva e de
interesse público" (Cf. Erbolato,
200:55) e "a entrevista obedece a uma
técnica que a torna apta a produzir
notícia para o consumo de massa"
(Op. Cit., p. 158).
Nesse
sentido, os juízos são pertinentes.
Para além da violação
de preceitos éticos, razoavelmente
cometida por órgãos de imprensa
- como a publicação de materiais
não-autorizados ou a gravação
de conversas sem o conhecimento do interlocutor
-, História Oral e jornalismo diário
resguardam diferenças de procedimentos
ainda mais palpáveis e indiscutíveis.
Entre elas, estão a existência
de um projeto orientador do trabalho (adotado
apenas pelos oralistas); o tipo de entrevista
executada (para a História Oral,
subjetiva; para o jornalismo, informativa);
e o objetivo do trabalho (reflexivo e reintegrador,
na academia; noticioso e fragmentário,
na imprensa).
Mesmo
a esse respeito, há posições
divergentes. Herschmann & Pereira, por
exemplo, expõem que o papel da mídia
não seria apenas fragmentador e atomizador,
pois facilita experiências reintegradoras
e reconstituições identitárias
simbólicas, inclusive à longa
distância, que de outra maneira não
seriam possíveis: "(...) revistas
de fofoca, reality shows, talkshows,
enfim, o farto material biográfico
veiculado na mídia passa a ter grande
importância, porque constrói
a sensação de que fazemos
parte de uma grande coletividade, isto é,
nos sentimos parte de uma 'família
estendida', parte da 'nação'".
(Cf. Herschmann & Pereira, 2002:148).
Essas
ressalvas - que não são poucas
nem desprezíveis - acabam por impedir
diálogos lícitos e profícuos
entre História Oral e jornalismo,
obstando a troca de experiências que
poderiam contribuir para o progresso das
duas práticas, injetando-lhes frescor
e renovado entusiasmo. Instrumentos de comunicação,
com forte vocação e virtude
política, que têm como premissa
e fim a democracia e a liberdade, encontram-se
no apreço pela palavra. A arte do
oralista e a arte do jornalista não
podem, portanto, ver marginalizados seus
canais de interlocução.
História
oral e jornalismo: apropriações
Argumentando
em favor da incorruptibilidade da História
Oral - por vezes sem ter clareza sobre como
se daria o mau emprego de suas técnicas
-, os oralistas renunciam ao diálogo
com os profissionais da comunicação.
Certos grupos mais conservadores e exasperados
da academia chegam a se manifestar depreciativamente
sobre o que (não) conhecem do jornalismo.
Para
eles, a pergunta imperfeita é designada
como "pergunta de jornalista".
Qualquer
deslize em uma entrevista - seja na preparação,
execução ou tratamento - atribui
a ela o conceito insultuoso de "entrevista
jornalística".
Por
sorte, eles não recebem tratamento
equivalente. Sem prescindir do arcabouço
teórico e instrumental de sua própria
disciplina - que existe, queiram ou não
os acadêmicos ortodoxos -, o jornalismo
procura reabastecer-se com os conhecimentos
soldados pelas outras ciências humanas
e sociais. Postura curiosa para uma categoria
profissional geralmente celebrada como arrogante
e onipotente, que poderia conformar-se com
exclusividade aos manuais de sua área.
O
resultado é um aporte unilateral
que leva ao estudo e à prática
do jornalismo alguns dos métodos
empregados pela História Oral - sobretudo
aquele que pode se aplicar com mais eficiência
à etapa de captação
de notícias: a entrevista. A contenda,
entretanto, não se encerra por aí.
Em seus laboratórios e núcleos
de pesquisa, os oralistas se ressentem:
reclamam, surpreendentemente, que o conhecimento
produzido por eles esteja sendo utilizado.
A
quadrilha, mesmo assim, cresce. Na Universidade
Federal de Santa Maria, o Grupo de Estudos
de Jornalismo desenvolve, dentro da linha
de pesquisa Jornalismo e História
Oral, a proposta de verificar a aplicabilidade
da História Oral como instrumento
de captação de notícias.
A Academia Brasileira de Jornalismo Literário,
localizada em Campinas, oferece regularmente
o curso livre "História Oral
- Conexões e trocas (com o Jornalismo
Literário)", para grupos em
diversas cidades. Outros pesquisadores também
têm discutido essa conexão,
sob diferentes ângulos, mas quase
sempre no âmbito das comunicações.
Um
dos trabalhos mais antigos, nesse sentido,
é "História Oral e jornalismo:
limites e possibilidades", de Cristina
Barroso Alves, preparado em 1994 como trabalho
de conclusão de curso. "Ouvir
o outro: Entrevista na História Oral
e no jornalismo", foi o trabalho de
Joëlle Rouchou para o XXVI Intercom,
de 2003. Suely Maciel apresentou o trabalho
"O estatuto da História Oral
e as fronteiras com o jornalismo: possibilidade
metodológica e proposta de um novo
fazer" no 4º Encontro Nacional
de Pesquisadores em Jornalismo, de 2006.
É
claro que em favor da postura inflexível
de certos acadêmicos existem, mais
do que argumentos, fatos. O uso da entrevista
pelo oralista é quase que diametralmente
oposto ao uso do jornalista - o que pressupõe,
inclusive, modos de apreensão e tratamento
ajustados às respectivas finalidades.
No primeiro caso, o depoimento oral forma
o núcleo documental do trabalho.
As indagações, ilações,
possibilidades de reflexão emergem
da fala do entrevistado, que aparece antes
e acima de categorias, conceitos e hipóteses
apriorísticas. O próprio compromisso
de pensar conceitualmente sobre o resultado
da entrevista os diferencia (como também
distingue, entre si, grupos de História
Oral; alguns vêem na documentação
o seu único fim).
O
jornalista, por sua vez, utiliza a entrevista
para ilustrar uma notícia ou reportagem:
recorta a fala do entrevistado com a intenção
de complementar o texto e, em alguns casos,
de autenticar o que já foi exposto.
Na maior parte das vezes, todas as informações
captadas pelo jornalista provêm de
fontes orais - testemunhas que presenciaram
certo evento. Se a reprodução
de sua fala, porém, parece desnecessária,
é oportuno lembrar que faz parte
da própria natureza do jornalismo
a assimilação de excertos
daquilo que se chama "a voz do povo".
Até mesmo como estratégia
simultaneamente política, discursiva
e mercadológica - em tudo legítima
- de evidenciar que alguém está
sendo ouvido.
Sendo
esta uma das críticas mais recorrentes
que a História Oral faz ao jornalismo,
é de se perguntar: se outras ciências
(como a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia)
lançam mão de procedimento
idêntico - selecionando arbitrariamente
trechos de entrevistas, dispensando a colaboração
e autorização do entrevistado
- para confirmar suas hipóteses,
ora, por que oralistas continuam dialogando
com esses profissionais tão levianos?
Mesmo dentro dos limites da História
o questionamento é válido:
"O império dos historiadores
sobre as fontes orais, aliás, reproduz
os maus tratos notados entre estes e os
sociólogos, antropólogos e
demais grupos useiros da oralidade como
recurso para suas tarefas analíticas"
(Cf. Meihy, 2006:447).
Talvez,
então, o problema seja outro: a adaptação
da técnica de entrevista desenvolvida
pela História Oral para os procedimentos
do jornalismo. Contra isso, entretanto,
há pelo menos uma evidência
forte e um argumento decisivo.
A
evidência é que, embora haja
trabalhos que mostrem a aplicabilidade da
História Oral na captação
de notícias (é o caso dos
textos que já citamos), ela não
tem sido efetivamente utilizada, sobretudo
pelos repórteres da imprensa periódica.
Isso graças às condições
materiais objetivas que não permitem
a elaboração detalhada de
questionários, a execução
de longas entrevistas, a conferência
e autorização do material.
São tarefas inteiramente inviáveis
na facção ininterrupta de
um produto diário, pelo menos sob
as condições de trabalho oferecidas
pelas empresas jornalísticas em nossos
dias. O escape para as propostas de intercâmbio
entre jornalismo e História Oral
residiria, portanto, no jornalismo de grande
extensão, que não sofre com
a urgência e a inflexibilidade dos
fechamentos.
O
argumento, por sua vez, é muito mais
simples. Em um primeiro momento, os oralistas
insistem que sua prática - técnica,
metodologia ou disciplina, como se queira
chamar - não se reduz à entrevista.
Em seguida, se melindram quando as técnicas
de captação de depoimentos
são instrumentalizadas por outros
profissionais - dizem com presunção
que "sua" História Oral
está sendo deturpada. Mas, vejamos,
"a" História Oral não
era mais do que isso?
As
longas durações
Uma
chave para compreender a posição
dos oralistas talvez seja trazer à
lembrança o fato de que o espaço
de realização da História
Oral, por natureza, é a academia
- mesmo que seu compromisso com a devolução
às comunidades abordadas seja patente.
Uma dissertação de mestrado
custa a seu autor pelo menos um ano e meio
de trabalho. Nas redações
de jornais, os repórteres chegam
a produzir mais de uma dezena de notícias
diariamente. Mesmo as reportagens especiais
- cada vez mais exíguas - não
consomem mais que duas semanas.
Nesse
aspecto, o gênero jornalístico
que poderia ser comparado com mais justiça
aos trabalhos acadêmicos é
o livro-reportagem - que deriva desta vultuosa,
mas minguante, tradição de
grandes reportagens da imprensa. Depende
da perspicácia do jornalista, a quem
cabe eleger, dentro dos fatos passados,
aquele que se desdobra em outros eventos,
que segue repercutindo e é capaz
de chamar a atenção do outro.
A um só tempo, a boa reportagem informa,
aprofunda e seduz esteticamente o leitor,
oferecendo "todo um contexto embelezado
pela dimensão humana, pela tradução
viva do ambiente onde ocorrem os fatos,
pela explicação de suas causas,
pela indicação dos rumos que
poderá tomar" (Cf. Lima, 1998:10).
O
livro-reportagem, ampliando esse anseio,
rompe com os padrões mais limitadores
do jornalismo periódico: o afã
pela atualidade, a opacidade da notícia,
as explicações improvisadas,
o compromisso com a periodicidade (por conta
dos fechamentos apertados), as técnicas
de escrita (desde a pirâmide invertida
até as imposições e
cerceamentos dos manuais de redação),
a ocultação do narrador. Nesse
sentido, "exerce função
recicladora da prática jornalística,
porque ousa incorporar contribuições
conceituais e técnicas provenientes
de áreas como a literatura e a história"
(Cf. Lima, 1998:08).
Tratando
do texto biográfico, Vilas Boas (2002)
dá outra dimensão a esse intercâmbio.
Considera a biografia como resultado do
cruzamento entre o histórico, o jornalístico
e o literário, "híbrida
por natureza" (p. 15), sem filiações
e cercaduras. "Acredito que a biografia
pode emprestar e tomar emprestado ferramentais
variados da História, da Sociologia,
da Psicologia, do Jornalismo etc. Os campos
complementam-se caso a caso.
Primeiramente,
historiografia é uma das fontes indispensáveis
para compreender o fazer biográfico,
na medida em que contempla pesquisa, documentação,
interpretação e recursos narrativos"
(p. 19).
Em
seus dois principais textos, Lima (1998,
2004) ainda não menciona a História
Oral como recurso para o livro-reportagem.
Entretanto, trabalha em diversos momentos
com a idéia de história de
vida, resultante de "entrevistas livres
(...) desenvolvidas pelas ciências
sociais, e sobretudo pela antropologia,
poderoso recurso para a melhoria dos processos
de captação dos jornalistas"
(p. 93). Adiante, citando Buitoni (1986),
diz que não há definições
rigorosas do que seja a entrevista de história
de vida, mas que ela privilegiaria as percepções
e interpretações individuais
do entrevistado.
Se
esta história de vida vai ao encontro
do que hoje conhecemos como a História
Oral de vida de Meihy, praticada largamente
no Núcleo de Estudos em História
Oral da USP (NEHO-USP), é de se acreditar
que ela só não foi citada
porque seu primeiro texto é posterior
à edição de estréia
da obra de Lima, Páginas ampliadas,
que data de 1993 (e está, em muitos
aspectos, desatualizada). O Manual de
História Oral, de Meihy, foi
lançado em 1996, e embora outros
livros de História Oral já
existissem (Alberti, 1989, 1990), não
davam destaque à História
Oral de vida.
Vilas
Boas, mais tarde (2002), dando prosseguimento
ao trabalho de Lima, reconhece o potencial
contributivo da História Oral. Partilha,
inclusive, de nossa idéia movedora.
"Apesar dos duelos acadêmicos
(muitas vezes anódinos) acerca dos
estatutos de suas disciplinas, os princípios
e as técnicas da História
Oral de vida assemelham-se muito aos do
livro-reportagem elaborado com rigor"
(p. 62). Acrescenta que a idéia cristalizada
pela academia é que o jornalista
"age no improviso" (p. 63) e seu
fazer não é passível
de sistematização. Opondo-se
a estas noções, e sem ignorar
as diferenças em seus processos de
feitura, o autor expõe algumas das
razões para a assimilação
da História Oral de vida (e de sua
variação, a narrativa biográfica,
mais organizada cronologicamente) pelos
jornalistas-biógrafos, discriminando
fronteiras e salientando suas convergências.
O
perfil jornalístico: uma chance de
diálogo
Os
trabalhos de História Oral, por sua
estrutura, rompem com as normas acadêmicas
convencionais em diversos aspectos: na preparação
de um capítulo inicial, chamado "história
do projeto", que explica a motivação
pessoal do pesquisador em realizá-lo
e registra o percurso e os percalços
do trabalho; na publicação
integral das histórias de vida, por
vezes justificando tomos de grande extensão;
em lampejos de ficcionalidade nas histórias
narradas. Vamos nos ocupar desta última
característica.
O
oralista confecciona o documento escrito
em três passos:
1)
transcrição absoluta da
entrevista, com o registro completo de
ruídos, repetições
e vícios de linguagem;
2)
textualização, que suprime
elementos desnecessários e incorpora
as perguntas à fala do entrevistado,
produzindo um texto unissonante; e
3)
a transcriação. Esta última
etapa recria plenamente o texto, tornando
"uma malha de perguntas e respostas
em um texto, um uma malha ficcional"
(Cf. Caldas, 1999:73): lançando
mão de recursos literários,
devolve a ele o que as palavras meramente
transcritas não dão conta
de mostrar, como entonações,
expressões irônicas e de
duplo sentido; evidencia eventos significativos
para a compreensão da entrevista,
como o choro ou o riso; facilita a recepção
do documento pelo público leitor,
articulando blocos temáticos e
padronizando variações lingüísticas.
Nesse
momento, a interferência do oralista
é clara, explicitada e assumida.
A
crítica que detratores da História
Oral fazem a essa técnica, entretanto,
é desimportante: o texto final é
legitimado pelo entrevistado na etapa seguinte,
de conferência, negociação
e autorização do documento.
O depoente recebe seu texto trabalhado;
pode indicar a necessidade de refacção
ou exclusão de partes dele; e, reconhecendo-se
no documento, autoriza seu uso público.
Então, assume-se como colaborador
- que efetivamente colaborou para o trabalho
de um autor, o oralista.
De
modo geral, o trabalho de transcriação
é visto com muita curiosidade e interesse
por profissionais que não o praticam.
Mostrar as incidências, o grau de
interferência do oralista sobre a
fala do outro e as técnicas literárias
utilizadas é tarefa que está
por ser feita, mas que não é
o objetivo deste artigo (para isso, aliás,
talvez dois outros campos do conhecimento,
a teoria literária e a crítica
genética, possam cooperar). À
guisa de exemplificação, podemos
citar o habitual expediente de emular as
lágrimas do colaborador por meio
de frases como "eu até choro
quando me lembro disso...".
Mesmo
com o uso de recursos como este, há
dois tipos de elementos que costumam escorrer
do documento em seu processo de constituição.
O primeiro é o núcleo informativo
sobre o entrevistado, nem sempre contemplado
na entrevista - sobretudo nas narrativas
de vidas públicas, como de políticos,
artistas e celebridades. Para a História
Oral, o factual tem importância secundária.
Além disso, é dispensável
fazer perguntas sobre o que se pode conhecer
por outras fontes, por mera formalidade.
As condições da entrevista,
arroladas no caderno de campo (instrumento
que acompanha o oralista durante toda a
pesquisa), também escapam ao texto
final. São informações
sobre a evolução do projeto;
o caminho para se chegar aos entrevistados;
as impressões do oralista a respeito
do encontro; o registro de locais, datas
e situações.
Os
dois elementos têm participação
relevante na elucidação de
questões levantadas pelas entrevistas;
por isso, devem ser integrados ao texto.
Em alguns casos, entretanto, sua incorporação
à entrevista parece resultar em um
teatro da linguagem ineficiente. Como proceder,
por exemplo, com a descrição
do espaço da entrevista nos momentos
em que eles pareçam fundamentais?
Em alguns casos, o emprego de construções
fraseológicas soaria exageradamente
artificial. Por isso, aloca-se tais dados
em textos de apresentação
curtos (comumente chamados de "janelas")
que costumam acompanhar, individualmente,
cada história de vida.
Nesse
fragmento, porém, o pendor explosivo,
provocador e transformador da História
Oral é matizado. Se na narrativa
de vida - produzida pelo oralista, mas sempre
atribuída ao outro - concorrem elementos
históricos e literários, resultando
em um texto criativo e germinal em sua essência,
"feixe vivo de ficcionalidades",
"intransitividade viva" (Cf. Caldas,
1999:75), os textos de apresentação
quase sempre reproduzem os modelos burocráticos,
enfadonhos e desgastados da redação
acadêmica.
Nesse
âmbito, o perfil jornalístico,
gênero breve que interioriza os preceitos
do livro-reportagem e da biografia, servindo-se
também - entre tantas outras referências
- da técnica de entrevista da História
Oral, pode atuar com relevo. Vilas Boas
(2003) enumera algumas características
do perfil: é uma narrativa curta
"tanto na extensão (tamanho
do texto) quanto no tempo de validade de
algumas informações e interpretações
do repórter" (p. 13); autoral;
focaliza frações da vida de
uma pessoa; prevê envolvimento do
repórter com ela; subverte o princípio
da objetividade; lança mão
de recursos literários e mistura
"memória, conhecimento, imaginação,
sínteses e sentimentos" (p.
13-14) no processo de criação.
A
um tempo distinguindo-se e identificando-se
com o jornalismo convencional, o perfil
jornalístico-literário consolida
atributos que vão ao encontro das
necessidades dos textos de apresentação
das histórias de vida. Condensa a
informação essencial, que
para grupos de leitores pode ser desconhecida;
compõe descrições saborosas
e concisas de paisagens, tempos e personagens;
materializa índices expressivos da
comunicação não-verbal;
exibe a perspectiva objetiva e a impressão
subjetiva do autor sobre a personagem tratada.
Se assim é, e se a História
Oral assimila e desloca tantas ferramentas
disciplinares, por que não trazer
o perfilar como trunfo para seu fim integrador?
Saberes
que ambicionam a comunicação,
a interpretação e a compreensão
holística de um tempo, de uma personagem
ou de um grupo, jornalismo de grande extensão
e História Oral não podem
se furtar a um colóquio franco e
continuado que, em vez de separar pela diferença,
una e some pela semelhança. A partir
de sua microestrutura, o perfil - enobrecedor
por si; embrionário por sua latência
- pode denunciar convenientes similitudes
entre oralistas e jornalistas que, doravante,
são buscadas.
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_______________.
Perfis e como escrevê-los.
São Paulo: Summus, 2003.
*Ricardo
Santhiago é graduado em Comunicação
Social - Jornalismo (PUC-SP), pós-graduado
em Jornalismo Científico (LabJor/Unicamp),
mestrando em História Social (FFLCH/USP)
e pesquisador do Núcleo de Estudos
em História Oral da USP (NEHO-USP).
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