Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


ARTIGOS
   

História oral e as fronteiras com o jornalismo:
A possibilidade metodológica e proposta de um novo fazer

Por Suely Maciel*

Resumo
O diálogo entre a História Oral e a pesquisa e a práxis jornalísticas pode e deve ser estabelecido, dada a similaridade metodológica, temática e de propósitos entre os dois campos. As particularidades do trabalho do oralista, porém, devem ser resguardadas, sobre o risco de este ser transformado em mero 'apêndice instrumental' para a obtenção de dados na reconstrução histórico-memorialista do Jornalismo e/ou da trajetória de jornalistas. A História Oral aponta para novos e intrigantes procedimentos que, certamente, podem contribuir para uma renovação profícua dos processos de investigação, num sentido mais dialógico e democrático.

Palavras-chave
[Metodologia científica / História oral / Jornalismo / Entrevista / Memória]


O presente texto visa apresentar algumas considerações acerca das fronteiras entre Jornalismo e História Oral, destacando as possíveis colaborações desta para o fazer jornalístico e as pesquisas históricas na área. Para tanto, faço primeiramente uma descrição sucinta do estatuto da História Oral para, em seguida, propor um diálogo entre a disciplina e o Jornalismo.

As reflexões em torno das aproximações entre as duas áreas começaram a tomar corpo a partir da leitura da obra do jornalista Carlos Rogê Ferreira (2001) Literatura e Jornalismo, práticas políticas: discursos e contradiscursos, o Novo Jornalismo, o romance-reportagem e os livros-reportagem. Ferreira discute a configuração de obras diferentes em termos de procedimentos de coleta das informações, tematização e textualização, porém rica e intrigantemente articuladas quanto aos objetivos, ao tratamento com as fontes de dados e à discussão de problemas da contemporaneidade. O autor se concentrou sobre a análise do que ele chamou "narrativas literário-jornalísticas", notadamente as que se inserem no Novo Jornalismo e na seara do romance-reportagem.

Em determinado trecho da obra, Ferreira reúne, sob um mesmo prisma, os livros Rota 66, [1] de Caco Barcelos, Vozes da marcha pela terra, [2] de José Carlos Sebe Bom Meihy, Andrea Paula dos Santos e Suzana Lopes Salgado Ribeiro, e A princesa, [3] de Fernanda Farias de Albuquerque e Maurizio Jannelli. Segundo ele, as três obras são manifestações atuais do romance-reportagem e do Novo Jornalismo e estabelecem relações entre os fatos noticiosos, a história-processo e as narrativas literárias, [4] que são os três campos analisados. Ou seja, elas permitem problematizar as fronteiras entre as formas de produção cultural, em iniciativas que englobam os discursos da história, do Jornalismo e da Literatura.

Ao reuni-las, o pesquisador usa como critério características comuns às três obras, ainda que elas apresentem formas composicionais e tematizações diferentes. Entre tais características, ou "imbricações narrativas", estariam (a)abordagem a partir de fatos comprováveis na realidade; (b)apresentação da memória desses fatos (especialmente por meio da denúncia); (c)construção baseada em testemunhos de quem viveu os acontecimentos enfocados ou tem indícios/provas deles.

Segundo ainda Ferreira, embora tais obras mantenham suas particularidades quanto à forma de organização e coleta das informações, ao estilo narrativo e aos temas, apresentam também uma significativa similaridade em relação a esses mesmos parâmetros, tanto que ele as reúne sob um mesmo foco de análise e classificação. Resumidamente, entre os aspectos que poderiam ser discutidos estão:

  • As três obras são exemplos distintos da produção jornalístico-literária, desde as mais próximas de um estilo ficcional até as mais afeitas a uma 'cientificidade' de forma e conteúdo. Dessa maneira, práticas narrativas que se aliariam, a princípio, à última vertente, adquirem, porém, uma feição diferente da tradicional. Daí justamente o fato de serem elencadas pelo autor como exemplo de uma estratégia possível de construção narrativa que, embora apegada aos 'fatos' e acontecimentos da realidade, foge à receita canônica da objetividade, do distanciamento, do efeito de neutralidade e isenção prescritos para o Jornalismo e o discurso científico, que também trabalham sobre tais objetos.
  • A análise identifica os livros como manifestações de produção discursiva, no caso literárias, que trazem à tona um "outro discurso', em especial dos grupos mantidos à margem tanto da produção midiática quanto do acesso à cidadania por meio das esferas institucionais, políticas e governamentais. As obras analisadas permitem que a 'voz' de indivíduos e grupos se mostre para além do silenciamento a que tradicionalmente é submetida. Esse 'tornar público' é levar os acontecimentos ao conhecimento geral, por meio da 'tradução' de eventos e de pontos de vista particulares sobre a realidade.
  • Todas as obras, em maior ou menor medida, constituem uma modalidade de relato de problemas da contemporaneidade e, ao discuti-los, acabam apresentando parâmetros para compreendê-los no curso da história. Além disso, situam os acontecimentos num contexto que não é isolado, mas, ao contrário, é decorrente de processos socioculturais e políticos que não apenas remetem a um passado como também projetam novas problemáticas para a realidade futura. Dessa forma, constroem memória e história.
  • As discussões trazidas pelos autores têm como fonte privilegiada de informações as narrativas apresentadas por sujeitos sociais. Seja na forma de testemunho de terceiros ou depoimento pessoal, como no caso de Rota 66, seja por meio das histórias de vida em Vozes da marcha pela terra, ou, ainda, na 'autobiografia' em A princesa..., a 'voz do outro' é a mola-mestra das produções. A subjetividade de cada um, manifesta em diferentes graus, é, portanto, o fio condutor da apreensão e atribuição de sentidos para os eventos e experiências narrados.
  • As obras constituem projetos especiais e inovadores em termos estilísticos e temáticos passíveis de serem enquadrados nas classificações postas por Ferreira. Ainda que ele as tenha reunido sob o parâmetro do livro-reportagem já que todas estão calcadas em fatos e personagens reais e se desenvolvem por meio de procedimentos relativamente semelhantes aos da reportagem jornalística tradicional, como o uso, em especial, da entrevista, as particularidades de cada obra fazem com que elas sejam narrativas únicas, que podem até mesmo servir de parâmetro inspirador para outras produções.

Foram justamente esses apontamentos de ordem estilística, temática e composicional feitos pelo autor que suscitaram os questionamentos desencadeadores do presente texto, em especial o fato de ele classificar Vozes da Marcha pela terra, um livro notadamente produzido por oralistas e sob os parâmetros da História Oral, como um "livro-reportagem". Acerca da caracterização da obra, em determinado momento ele afirma, por exemplo:

"Vejamos o que os próprios autores dizem a respeito desse trabalho nem Jornalismo nem literatura, mas de certa maneira, de nosso ponto de vista, também ambos..." (Cf. Ferreira, 2003:230). Num outro trecho, diz: "(...) Este, em resumo, é o discurso da história que permeia o Jornalismo e a literatura construídos em Vozes da marcha pela terra" (Cf. Ferreira, 2003:261). Além disso, ao longo do debate sobre o mesmo livro, ele coloca o fazer dos oralistas na seara do documentário. Ou seja, o autor estabelece uma proximidade curiosa entre os campos da História Oral e do Jornalismo, ao analisar a obra quanto à tematização, à discussão dos problemas da contemporaneidade e aos procedimentos de coleta de dados.

Em vista disso, fiquei intrigada sobre o que haveria no trabalho da História Oral que faria com que o livro Vozes... fosse considerado uma manifestação jornalística, embora se apresente como um trabalho assumidamente de oralistas. Por outro lado, que pontos de interseção e/ou distanciamento ocorreriam entre o fazer jornalístico e o método da História Oral, já que tanto aquele e especialmente este se baseiam na coleta de informações a partir de fontes humanas e visam à reconstrução dos acontecimentos por meio destas?

De imediato, é possível responder que, apesar das similaridades que poderiam ter servido de base para as observações de Ferreira (2001), História Oral não deve ser confundida com Jornalismo. E isso se deve ao fato de que ela se constitui numa proposta de investigação da realidade que tem um estatuto próprio, com método e objetivo definidos. E estes, embora possam, em algum momento, fazer fronteira com diversas áreas, como o Jornalismo, efetivam-se numa outra dinâmica, caso contrário ela deixa de ser um lugar específico de investigação e construção do conhecimento para se tornar 'apêndice instrumental' de outras formas de pesquisa social e de produção de discursos na contemporaneidade.

Apesar disso, não é descabido pensar nas contribuições que, no diálogo com o Jornalismo, a História Oral pode oferecer, já que é possível identificar alguns traços relativamente comuns às duas áreas, no universo da interdisciplinaridade que, de certa forma, atravessa os dois campos.

Primeiramente, como processos de apreensão e atribuição de sentidos para a realidade, Jornalismo e História Oral se constituem a partir do presente.

No caso do Jornalismo, a atualidade é o seu foco e é só para compreendê-la, num recorte sincrônico, que se apresentam os fatos do passado e se projetam os acontecimentos no futuro. No trabalho dos oralistas, por sua vez, também o cotidiano e os fatos se entrelaçam para garantir a lógica da vida coletiva, mas a atenção está voltada para as experiências do passado atualizadas pela memória no presente.

Um segundo aspecto é o de que todos os personagens, trazidos pela História Oral ou pelo do Jornalismo, são sujeitos históricos, diretamente envolvidos tanto com a realidade imediata em que se situam quanto com um 'passado' que constitui suas referências e sua memória. Além disso, as duas áreas trabalham a partir de fontes humanas, embora com pesos diferentes: enquanto elas são a razão de ser da História Oral, compõem com os dados documentais e a observação do repórter o tripé que sustenta o levantamento de informações no Jornalismo.

Poderia ser citado também o fato de que História Oral e Jornalismo são "variantes do conhecimento", ou seja, não tão delimitadas para constituírem uma Ciência, nem tão pouco sistematizadas para serem meras técnicas de coleta de dados, sem peso na compreensão da realidade. São, portanto, diferentes formas do conhecer.

Talvez por causa de paralelismos como esses é que Ferreira (2001) tenha considerado indiscutível o fato de que História e Jornalismo compartilham uma fronteira na construção da memória e da história e que, vistas de um determinado ângulo, as práticas do jornalista e a do historiador oral se aproximam. No entanto, mais que as aproximações, são as diferenças profundas no tratamento dos dados, na relação com os entrevistados, na produção dos textos e nos objetivos da pesquisa que impedem a associação apressada entre as duas práticas.

Mesmo quando se está partindo de formas diferenciadas de Jornalismo, como as discutidas ao longo da obra de Ferreira, é preciso manter um distanciamento crítico pertinente, pois só assim pode-se entender o lugar de cada uma das produções e identificar possíveis colaborações do método dos oralistas para a pesquisa e o fazer dos jornalistas.

Nesse sentido, faço a seguir algumas considerações em torno desse debate que visam contribuir para uma melhor delimitação em torno dos dois campos. Além disso, busco estabelecer um diálogo entre a História Oral e o Jornalismo no sentido de identificar como possíveis práticas naquela podem suscitar uma discussão sobre o fazer nesta. Ressalto, porém, que tais observações se dão muito mais como 'provocações' para se pensar as dinâmicas da pesquisa e da atuação jornalísticas do que como ponto de vista e afirmação acabados e estanques.

1. A História Oral busca trazer a experiência social de pessoas e grupos e proceder à análise de processos do presente para compreender o meio imediato; é história do tempo presente e 'história viva' e surge como alternativa para estudar a sociedade por meio de depoimentos, questionando a tradição historiográfica centrada nos documentos oficiais.

Essa perspectiva, portanto, apresenta uma mudança no conceito de história, entendido na aproximação com uma idéia de 'verdade' dos fatos e de cientificidade e neutralidade tanto na coleta quanto na significação dos dados sobre os acontecimentos.

A fundamentação documental em História Oral se justifica por três motivos: quando não há documentos, quando existem versões diferentes da história oficial e quando se elabora uma outra história. Ela pode também preencher lacunas documentais, ou estabelecer diálogos com outros documentos ou simplesmente se justificar pela necessidade/interesse de trazer as narrativas individuais para se pensar a realidade. Neste caso, ela se apresenta como um "discurso independente, sustentado por uma série de entrevistas". E ela não é usada apenas no caso de discursos calados pela censura, ou desaparecimento/inexistência de registros, mas pode também tratar dos "excluídos de processos de reconhecimento histórico.

Ela se apresenta menos numa posição de confronto com os documentos históricos, cartoriais, consagrados e/ou oficiais, do que como uma espécie de "curiosidade paralela", de desconfiança construtiva e de complementação. "Essa postura se faz não apenas para ser uma visão de combate à oficial, mas principalmente para garantir o caráter democrático da versão do povo, que quer para si uma 'outra história'" (Cf. Meihy, 2005:30).

2. Embora, assim como o Jornalismo, parta da realidade no presente, a História Oral se preocupa com o aparecimento dos fatos a partir da memória de indivíduos e grupos. Não interessa, na sua abordagem, a comprovação e afirmação da 'verdade', mas sim a atribuição de sentidos para os acontecimentos a partir do relato dos indivíduos, com todas as marcas próprias da subjetividade, como interditos, emoções, esquecimentos, rupturas etc.

Isso significa que, nessa forma particular de abordagem e de compreensão do real, os oralistas não buscam confrontar 'verdades' com 'mentiras', mas identificar aspectos que permitam trazer à tona outras formas de entendimento dos fatos do mundo, normalmente apagadas, negligenciadas, desprezadas, esquecidas ou simplesmente desconhecidas.

O Jornalismo, ao contrário, ergueu o seu estatuto, principalmente a partir do século passado, sobre os preceitos da objetividade, da neutralidade, da isenção, da imparcialidade e da veracidade (Lage, 2001). Como, na prática, isso é impossível, desenvolve-se sob dinâmicas que visam justamente garantir esses efeitos quanto aos discursos que constrói (Maciel, 2001).

3. A História Oral também se apresenta como uma forma alternativa de compreensão da sociedade a partir de documentos de uma outra ordem: a oralidade assume a primazia frente aos registros escritos e passa a constituir as fontes orais, sobre as quais se desenvolverá a investigação dos oralistas. E nesse trabalho, tornam-se objeto da pesquisa tanto as experiências individuais quanto as coletivas, de pessoas anônimas ou não.

E isso porque o propósito da História Oral é trazer para o conhecimento e o debate públicos a realidade da vida social que se faz sempre a partir de múltiplos sujeitos e não apenas daqueles que ganham visibilidade por meio dos relatos históricos tradicionais, pelos meios de comunicação etc. A postura da História Oral, portanto, mostra sua gênese democrática e dialógica.

Fatos notáveis e acontecimentos corriqueiros mostram que a noção de vida social apreendida pela História Oral é relevante em sua plenitude. Como que garantindo que 'tudo é história', ela decorre da vontade de registrar, guardar e propor análises fundadas em um conceito de conhecimento que se dobra ao continuum da vida. Com uma vocação para tudo e para todos, a História Oral respeita as diferenças e facilita a compreensão das identidades e dos processos de suas construções narrativas. Todos são personagens históricos, e o cotidiano e os grandes fatos ganham equiparação na medida em que se trançam para garantir a lógica da vida coletiva (Cf. Meihy, 2005:25).

4. A História Oral muitas vezes é confundida como ferramenta (notadamente por aqueles que a utilizam sem conhecer seu estatuto) talvez porque nos seus primórdios não houvesse uma sistematização de procedimentos entre os pesquisadores que a empregavam. Porém, a partir do momento em que se passou a problematizar e a estabelecer os critérios de elaboração de documentos, que são determinantes na diferenciação entre a História Oral e qualquer outro procedimento de entrevista, não é mais possível entendê-la, nem dela valer-se da mesma forma, a não ser por ignorância ou má-fé.

Ao se fazer História Oral, alguns procedimentos são imprescindíveis: a elaboração de um projeto; o contato humano e o estabelecimento da mediação por parte do oralista (daí, por exemplo, não ser permitida gravação por telefone, coisa que o Jornalismo faz, até por e-mail); a transcrição do diálogo e posterior transcriação da narrativa; a devolução particular, ou seja, a conferência por parte do colaborador e sua anuência sobre o texto, bem como sua autorização para publicação; a devolução pública do relato, ou seja, a sua publicação na forma de livros e/ou outros documentos. Sem a observância desses preceitos, pode-se estar fazendo entrevista, coleta de depoimentos, registros sonoros ou seja lá o que for, mas não História Oral.

Qualquer pesquisa que se pretenda uma investigação nessa linha deve ter, portanto, a preocupação com a inscrição dos depoimentos num projeto, o cuidado com a transposição da enunciação falada para a escrita e o compromisso com a devolução da narrativa, primeiramente para seus protagonistas e, depois e com a aquiescência destes, para o público mais amplo.

Nesse sentido, embora seja interessante o fato de Ferreira inserir em suas discussões um livro de História Oral e se preocupar em apresentar os aspectos diferenciados da área, seus apontamentos podem confundir quem não tem familiaridade com o fazer do oralista ou conhecimentos mais aprofundados sobre ele. Daí o risco de interpretações rasas sobre o modo de trabalhar da História Oral e de se incorrer nos equívocos para os quais alerta Meihy (2005:14):

O uso indiscriminado de aspectos do que se chama vulgarmente de História Oral e a confusão de sua prática com entrevistas comuns, feitas sem os enquadramentos convenientes à História Oral, revelam a perversidade de certas investidas que, valendo-se de fórmulas tradicionais, se apresentam como uma "nova alternativa". Entrevista sem projeto não é História Oral.

Seja a História Oral utilizada como técnica para a obtenção de depoimentos que complementariam uma investigação mais ampla, calcada também em documentação paralela , seja como método, em que a primazia no estudo é da narrativa oral, é imperioso que determinados procedimentos sejam seguidos. E nestes, a entrevista é central e é em torno do trabalho com ela que todo o processo se estabelece.

No círculo dos usuários da História Oral, o grupo mais adensado tem sido o que parte do princípio de que ela [a entrevista] se constitui como um objeto definido, com procedimentos claros e preestabelecidos que a justificam como um método. Nesse caso, ela encerra o fundamento da pesquisa. É com base nela que se organiza o projeto do trabalho. Na eventualidade do uso de outras fontes, elas se sujeitam ao debate central decorrente das fontes orais (Cf. Meihy, 2005:51).

5. A construção narrativa em História Oral se dá por meio do processo da transcriação, que não é mera reprodução da entrevista gravada, mas uma outra textualização, com estilo e forma composicional particulares. Tal construção se dá 'a quatro mãos', ou seja, ela é totalmente acordada entre o oralista e o colaborador ('testemunha'), o que reforça a idéia de não-reprodução distanciada do relato e instaura um estatuto diferenciado para a autoria, que deixa de ser 'individual'.

Uma outra característica é a de que não há a preocupação em manter uma ordem cronológica na obtenção dos dados; a narrativização dos relatos ocorre de forma subjetiva e, portanto, aberta à exposição não linear da memória das experiências. O oralista pode sim buscar chamar a atenção para determinados aspectos da exposição memorialista, mas não pode influenciar ou estabelecer uma alteração da ordem em que os fatos foram/são compreendidos e apresentados pelo colaborador.

6. A História Oral não se propõe a produzir 'documentos' afirmativos estanques, mas a trazer para o conhecimento público versões diferentes da historiografia oficial, para a qual, aliás, o Jornalismo contribui significativamente. [5] Busca contar 'outra história' e o mote disso pode ser a observação de aspectos não revelados pela objetividade dos documentos escritos. Isso porque ela é uma forma de estudo que se baseia na experiência social de indivíduos e grupos, para, a partir daí, empreender uma investigação alternativa em relação ao método historiográfico tradicional (baseado na convencionada documentação oficial) sobre a sociedade que emerge no tempo presente, a partir da memória dos sujeitos sociais.

Segundo Meihy (2005:17), "a História Oral implica uma percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado". É isso que marca a História Oral como 'história viva'. Por meio dessa investigação, mais que trazer uma outra possibilidade de compreensão dos eventos, a mudança de perspectiva da história "garante sentido social à vida de depoentes e leitores, que passam a entender a seqüência histórica e se sentir parte do contexto em que vivem" (Cf. Meihy, 2005:19).

7. É pertinente atentar para a necessidade de se pensar que a História Oral não é exclusividade de nenhum campo, mas pode ser um caminho de investigação e atuação profícuo para diversas áreas do conhecimento, como o Jornalismo. Na investigação científica, por exemplo, pode ser utilizada como um conjunto de procedimentos, um processo sistemático de obtenção de dados sobre a história do Jornalismo e/ou dos jornalistas a partir da vivência daqueles que estiveram ou estão de alguma forma envolvidos com o campo.

Já quanto à prática jornalística no dia-a-dia, pode contribuir para desencadear questionamentos, incrementar procedimentos ou até mesmo levar a uma mudança de comportamento no trato com as fontes e na coleta de dados. Especificamente quanto a este aspecto, a cooperação mútua entre oralista e entrevistado assinala um desafio para certas tradições de pesquisa e práticas de levantamento de informações baseadas na relação interpessoal. Enquanto, por exemplo, a História Oral trata o interlocutor como colaborador, no Jornalismo ele é a "fonte humana".

Isso não encerra uma mera polêmica lexical, mas revela, na verdade, uma profunda dissonância de perspectiva na dinâmica entrevistador-entrevistado.

O conceito-chave, na História Oral, é o de mediação, instituindo para o oralista o papel de sujeito norteador de todo o processo de pesquisa, mas numa atitude de total respeito às expectativas, desejos e limitações de ordem prática e afetiva do colaborador. No Jornalismo, por sua vez, a fala torna-se 'dado concreto' e o entrevistado deixa de deter o controle sobre ela assim que a pronuncia durante a entrevista. Quem, com raríssimas exceções, define o que vai para conhecimento público e como é o jornalista e/ou pesquisador.

O oralista tem a clareza de que não é o 'dono' da palavra, mas, ao contrário, é aquele que vai elaborar a narrativa a partir de uma total imersão no universo do colaborador e de uma relação dialógica profunda com ele. A conferência do relato depois de escrito, com primazia do colaborador na definição do texto final, é um procedimento que marca diferenças significativas em relação às narrativas jornalísticas e/ou histórico-científicas conservadoras, pois estabelece uma nova discussão sobre os lugares de enunciação, a autoria e a produção textual.

Uma perspectiva mais consciente sobre pensar e fazer Jornalismo, distante dos dogmas da objetividade e da neutralidade, reconhece o jornalista como 'mediador simbólico', ou seja, como um sujeito social que vai apreender o cotidiano e, por meio da atribuição de sentidos a ele, fará os acontecimentos chegarem ao conhecimento do público.

Tal compreensão, porém, não tem sido suficiente para provocar uma mudança de paradigma na organização e veiculação dos textos midiáticos e científico-acadêmicos, ainda controlados pelas instâncias de produção/emissão. O jornalista, seja na posição de repórter/redator ou editor, seja no papel de pesquisador, é quem normalmente controla a produção do texto e a ele dá versão final, mesmo que, para tanto, tenha se valido da fala dos entrevistados, que, na maioria esmagadora das vezes, ficam completamente alijados do processo.

No caso especialmente da atuação profissional, a dinâmica da produção e o 'controle' da informação são as principais justificativas para a não devolução do texto para a fonte ou o não-conhecimento prévio desta sobre o que vai ser efetivamente publicado/transmitido. A prática da História Oral lança luz sobre uma nova faceta nessa mediação, ao trazer para a produção do texto o 'outro' com quem se dialogou, compartilhando com ele a autoria. A organização é conjunta, tanto num nível da produção textual propriamente dita, como da apresentação da 'interpretação' dessa experiência, isto é, da atribuição de sentidos para o relato.

Além disso, o estatuto do depoimento em História Oral é de outra ordem, diferente da idéia de 'testemunho' que permeia a historiografia e o Jornalismo, no qual a informação fornecida por pessoas normalmente é apresentada para afiançar a 'verdade' dos dados. [6] Na História Oral, por sua vez, a 'verdade' do relato, ou seja, sua adequação aos acontecimentos, é profunda e efetivamente relativizada em nome da subjetividade, das emoções, da compreensão particular de cada sujeito sobre o mundo.

Tendo em vista, enfim, a discussão aqui posta, pode-se considerar que a História Oral e o Jornalismo apresentam-se como formas especiais de emersão de discursos diferenciados no meio social e, em vista disso, é possível estabelecer aproximações pertinentes entre as duas áreas desde que resguardadas as especificidades processuais de cada uma. O diálogo entre elas deve sim ser estabelecido, com repercussões certamente profícuas para ambas as áreas, ainda mais tendo em vista que a História Oral apresenta-se como uma dinâmica de pesquisa intrigante e estimulante.

Ressalte-se mais uma vez, porém, que tal diálogo tem de ser feito com total observância das especificidades de cada campo. Quando, por exemplo, se lança mão da História Oral como técnica coadjuvante nas pesquisas em Jornalismo, comumente enfoca-se apenas uma de suas facetas, que é a entrevista. Desconsidera-se, portanto, que o método engloba procedimentos como o projeto, a entrevista, a transcriação, a devolução individual e pública etc. Tem-se, nesse caso, a perversa atitude, tão corriqueira, da apropriação indevida, incompleta, inconseqüente, de propostas de investigação científica, reduzidas, então, a meros 'apêndices instrumentais' ou "ferramentas", como afirma Meihy (2005).

Também é comum a ocorrência de pesquisas que se apresentam como realizadas segundo o método da História Oral, especialmente quanto à coleta de dados via entrevista, mas que resultam em textos que passam ao largo do conhecimento do colaborador. Isso revela uma grave transgressão a aspectos essenciais do método em História Oral, que são a total inter (-) ação entre pesquisador e colaborador (que não é mero 'informante' ou 'testemunha') e a devolução do texto transcriado, tanto para que o colaborador faça suas observações quanto para que dê seu aval sobre a transcriação.

A História Oral, portanto, pode ser uma valiosa coadjuvante nas pesquisas em Jornalismo sem falar na própria práxis jornalística e sua utilização deve ser considerada dependendo do tipo de investigação, em especial as de reconstrução memorial-histórica. Na interação com outras disciplinas, fica marcado o seu peso no cenário da cultura contemporânea como lugar específico, mais do que de uma prática, de uma forma especial de 'ver o mundo', muito mais democrática, dialógica, dialética e, por que não dizer, humana. Olhar para essa proposta pode ser uma estratégia bem interessante por parte de outras práticas, entre elas o Jornalismo e as pesquisas na área, no sentido de uma renovação positiva.

Notas

[1] Rota 66 é o nome de uma equipe do 1 batalhão da Polícia Militar de São Paulo, unidade de elite batizada de Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. O livro-reportagem de Caco Barcelos abrange o período que vai de 1975 a 1992 e discute, a partir de dados coletados por meio de entrevistas e pesquisa documental, as ações polêmicas do Batalhão (principalmente na década de 70), cuja linha-mestra de atuação era o abuso de poder, a eliminação sumária de suspeitos e a instauração do horror, notadamente sobre pessoas da classe baixa e moradoras das regiões periféricas da capital. (BARCELOS, Caco. Rota 66. São Paulo: Globo, 1992).

[2] O livro aborda a Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, promovida pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, em 1997. Foram elaboradas textualmente as narrativas de 19 trabalhadores rurais, pela prática da história oral de vida. Os autores são oralistas e participam do Núcleo de Estudos em História Oral (Neho), da Universidade de São Paulo. (MEIHY, J. C. S. B. et al. Vozes da marcha pela terra. São Paulo: Loyola, 1998).

[3] Trata-se da história do travesti brasileiro Fernanda Farias de Albuquerque, preso na Itália por ter esfaqueado alguém, e que, na cadeia, estabelece uma relação de cumplicidade com Maurizio Janelli, condenado à prisão perpétua por sua participação no grupo italiano Brigadas Vermelhas, na década de 70. É a partir da forma inusitada de alteridade que se estabelece entre os dois que a obra toma corpo: uma narrativa 'autobiográfica', em primeira pessoa, mas escrita pelo 'repórter-terrorista' a partir de anotações feitas por Fernanda em um caderninho que circulava entre as duas celas, além de uma entrevista, também efetivada via essa forma singular de comunicação. (ALBUQUERQUE, F. F; JANELLI, M. A princesa: a história do travesti brasileiro na Europa escrita por um dos líderes das Brigadas Vermelhas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995).

[4] Os grifos em negrito foram feitos pela autora.

[5] "A mídia vem sendo cada vez mais utilizada pelos historiadores como fonte em suas pesquisas. Do total de trabalhos que abarcam o séc. XX apresentados, em 1995, no Encontro nacional de Pós-graduandos em História, cerca de 70% utilizavam meios de comunicação (sobretudo jornais) como fonte histórica". (RIBEIRO, Ana Paula G. "Jornalismo e história: ambigüidades e aparentes paradoxos". In: Revista Eco. Pós-graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, Vol. 4, nº 1, 1999. p. 5).

[6] Um exemplo do valor atribuído à declaração de entrevistados pode ser conferido no Manual do jornal O Estado de S.Paulo: "Procure usar declarações textuais a cada um ou dois parágrafos da matéria. Uma frase por parágrafo já seria uma boa medida e ela funcionaria quase sempre como uma testemunha que confirmasse a história ou o fato que o repórter quer levar ao leitor". (MARTINS, Eduardo. Manual de redação e estilo. São Paulo: O Estado de S.Paulo, 1990. p. 25).

Referências bibliográficas

FERREIRA, C. R. Literatura e Jornalismo, práticas políticas: discursos e contradiscursos, o Novo Jornalismo, o romance-reportagem e os livros-reportagem. São Paulo: Edusp, 2003.

LAGE, N. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. São Paulo/Rio de Janeiro: Record, 2003.

MACIEL, S. "Manuais de estilo, notícia e subjetividade". Dissertação de mestrado, São Paulo, FFLCH/USP, 2001.

MARTINS, E. Manual de redação e estilo. São Paulo: O Estado de S.Paulo, 1990.

MEDITSCH, E. Jornalismo como forma de conhecimento. Florianópolis/SC, Insular, 1995.

MEIHY, J. C. S. B. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

RIBEIRO, A. P. G. "Jornalismo e história: ambigüidades e aparentes paradoxos". Revista Eco. Pós-graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, Vol. 4, nº 1. 1999. (p. 5 -11).

*Suely Maciel é jornalista, mestre em Semiótica e Lingüística Geral, doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (ECA-USP) e docente do ensino superior nas áreas de produção textual, técnicas de reportagem e radiojornalismo.


®Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]