História
oral e as fronteiras com o jornalismo:
A possibilidade metodológica e proposta
de um novo fazer
Por Suely
Maciel*
Resumo
O
diálogo entre a História Oral
e a pesquisa e a práxis jornalísticas
pode e deve ser estabelecido, dada a similaridade
metodológica, temática e de
propósitos entre os dois campos.
As particularidades do trabalho do oralista,
porém, devem ser resguardadas, sobre
o risco de este ser transformado em mero
'apêndice instrumental' para a obtenção
de dados na reconstrução histórico-memorialista
do Jornalismo e/ou da trajetória
de jornalistas. A História Oral aponta
para novos e intrigantes procedimentos que,
certamente, podem contribuir para uma renovação
profícua dos processos de investigação,
num sentido mais dialógico e democrático.
Palavras-chave
[Metodologia
científica / História oral
/ Jornalismo / Entrevista / Memória]
O
presente texto visa apresentar algumas considerações
acerca das fronteiras entre Jornalismo e
História Oral, destacando as possíveis
colaborações desta para o
fazer jornalístico e as pesquisas
históricas na área. Para tanto,
faço primeiramente uma descrição
sucinta do estatuto da História Oral
para, em seguida, propor um diálogo
entre a disciplina e o Jornalismo.
As
reflexões em torno das aproximações
entre as duas áreas começaram
a tomar corpo a partir da leitura da obra
do jornalista Carlos Rogê Ferreira
(2001) Literatura e Jornalismo, práticas
políticas: discursos e contradiscursos,
o Novo Jornalismo, o romance-reportagem
e os livros-reportagem. Ferreira discute
a configuração de obras diferentes
em termos de procedimentos de coleta das
informações, tematização
e textualização, porém
rica e intrigantemente articuladas quanto
aos objetivos, ao tratamento com as fontes
de dados e à discussão de
problemas da contemporaneidade. O autor
se concentrou sobre a análise do
que ele chamou "narrativas literário-jornalísticas",
notadamente as que se inserem no Novo Jornalismo
e na seara do romance-reportagem.
Em
determinado trecho da obra, Ferreira reúne,
sob um mesmo prisma, os livros Rota 66,
[1] de Caco Barcelos, Vozes da marcha
pela terra, [2] de José Carlos
Sebe Bom Meihy, Andrea Paula dos Santos
e Suzana Lopes Salgado Ribeiro, e A princesa,
[3] de Fernanda Farias de Albuquerque e
Maurizio Jannelli. Segundo ele, as três
obras são manifestações
atuais do romance-reportagem e do Novo Jornalismo
e estabelecem relações entre
os fatos noticiosos, a história-processo
e as narrativas literárias, [4]
que são os três campos analisados.
Ou seja, elas permitem problematizar as
fronteiras entre as formas de produção
cultural, em iniciativas que englobam os
discursos da história, do Jornalismo
e da Literatura.
Ao
reuni-las, o pesquisador usa como critério
características comuns às
três obras, ainda que elas apresentem
formas composicionais e tematizações
diferentes. Entre tais características,
ou "imbricações narrativas",
estariam (a)abordagem a partir de fatos
comprováveis na realidade; (b)apresentação
da memória desses fatos (especialmente
por meio da denúncia); (c)construção
baseada em testemunhos de quem viveu os
acontecimentos enfocados ou tem indícios/provas
deles.
Segundo
ainda Ferreira, embora tais obras mantenham
suas particularidades quanto à forma
de organização e coleta das
informações, ao estilo narrativo
e aos temas, apresentam também uma
significativa similaridade em relação
a esses mesmos parâmetros, tanto que
ele as reúne sob um mesmo foco de
análise e classificação.
Resumidamente, entre os aspectos que poderiam
ser discutidos estão:
- As
três obras são exemplos distintos
da produção jornalístico-literária,
desde as mais próximas de um estilo
ficcional até as mais afeitas a
uma 'cientificidade' de forma e conteúdo.
Dessa maneira, práticas narrativas
que se aliariam, a princípio, à
última vertente, adquirem, porém,
uma feição diferente da
tradicional. Daí justamente o fato
de serem elencadas pelo autor como exemplo
de uma estratégia possível
de construção narrativa
que, embora apegada aos 'fatos' e acontecimentos
da realidade, foge à receita canônica
da objetividade, do distanciamento, do
efeito de neutralidade e isenção
prescritos para o Jornalismo e o discurso
científico, que também trabalham
sobre tais objetos.
- A
análise identifica os livros como
manifestações de produção
discursiva, no caso literárias,
que trazem à tona um "outro
discurso', em especial dos grupos mantidos
à margem tanto da produção
midiática quanto do acesso à
cidadania por meio das esferas institucionais,
políticas e governamentais. As
obras analisadas permitem que a 'voz'
de indivíduos e grupos se mostre
para além do silenciamento a que
tradicionalmente é submetida. Esse
'tornar público' é levar
os acontecimentos ao conhecimento geral,
por meio da 'tradução' de
eventos e de pontos de vista particulares
sobre a realidade.
- Todas
as obras, em maior ou menor medida, constituem
uma modalidade de relato de problemas
da contemporaneidade e, ao discuti-los,
acabam apresentando parâmetros para
compreendê-los no curso da história.
Além disso, situam os acontecimentos
num contexto que não é isolado,
mas, ao contrário, é decorrente
de processos socioculturais e políticos
que não apenas remetem a um passado
como também projetam novas problemáticas
para a realidade futura. Dessa forma,
constroem memória e história.
- As
discussões trazidas pelos autores
têm como fonte privilegiada de informações
as narrativas apresentadas por sujeitos
sociais. Seja na forma de testemunho de
terceiros ou depoimento pessoal, como
no caso de Rota 66, seja por meio
das histórias de vida em Vozes
da marcha pela terra, ou, ainda, na
'autobiografia' em A princesa...,
a 'voz do outro' é a mola-mestra
das produções. A subjetividade
de cada um, manifesta em diferentes graus,
é, portanto, o fio condutor da
apreensão e atribuição
de sentidos para os eventos e experiências
narrados.
- As
obras constituem projetos especiais e
inovadores em termos estilísticos
e temáticos passíveis de
serem enquadrados nas classificações
postas por Ferreira. Ainda que ele as
tenha reunido sob o parâmetro do
livro-reportagem já que todas estão
calcadas em fatos e personagens reais
e se desenvolvem por meio de procedimentos
relativamente semelhantes aos da reportagem
jornalística tradicional, como
o uso, em especial, da entrevista, as
particularidades de cada obra fazem com
que elas sejam narrativas únicas,
que podem até mesmo servir de parâmetro
inspirador para outras produções.
Foram
justamente esses apontamentos de ordem estilística,
temática e composicional feitos pelo
autor que suscitaram os questionamentos
desencadeadores do presente texto, em especial
o fato de ele classificar Vozes da Marcha
pela terra, um livro notadamente produzido
por oralistas e sob os parâmetros
da História Oral, como um "livro-reportagem".
Acerca da caracterização da
obra, em determinado momento ele afirma,
por exemplo:
"Vejamos
o que os próprios autores dizem a
respeito desse trabalho nem Jornalismo
nem literatura, mas de certa maneira,
de nosso ponto de vista, também
ambos..." (Cf. Ferreira, 2003:230).
Num outro trecho, diz: "(...) Este,
em resumo, é o discurso da história
que permeia o Jornalismo e a literatura
construídos em Vozes da marcha
pela terra" (Cf. Ferreira, 2003:261).
Além disso, ao longo do debate sobre
o mesmo livro, ele coloca o fazer dos oralistas
na seara do documentário. Ou seja,
o autor estabelece uma proximidade curiosa
entre os campos da História Oral
e do Jornalismo, ao analisar a obra quanto
à tematização, à
discussão dos problemas da contemporaneidade
e aos procedimentos de coleta de dados.
Em
vista disso, fiquei intrigada sobre o que
haveria no trabalho da História Oral
que faria com que o livro Vozes...
fosse considerado uma manifestação
jornalística, embora se apresente
como um trabalho assumidamente de oralistas.
Por outro lado, que pontos de interseção
e/ou distanciamento ocorreriam entre o fazer
jornalístico e o método da
História Oral, já que tanto
aquele e especialmente este se baseiam na
coleta de informações a partir
de fontes humanas e visam à reconstrução
dos acontecimentos por meio destas?
De
imediato, é possível responder
que, apesar das similaridades que poderiam
ter servido de base para as observações
de Ferreira (2001), História Oral
não deve ser confundida com Jornalismo.
E isso se deve ao fato de que ela se constitui
numa proposta de investigação
da realidade que tem um estatuto próprio,
com método e objetivo definidos.
E estes, embora possam, em algum momento,
fazer fronteira com diversas áreas,
como o Jornalismo, efetivam-se numa outra
dinâmica, caso contrário ela
deixa de ser um lugar específico
de investigação e construção
do conhecimento para se tornar 'apêndice
instrumental' de outras formas de pesquisa
social e de produção de discursos
na contemporaneidade.
Apesar
disso, não é descabido pensar
nas contribuições que, no
diálogo com o Jornalismo, a História
Oral pode oferecer, já que é
possível identificar alguns traços
relativamente comuns às duas áreas,
no universo da interdisciplinaridade que,
de certa forma, atravessa os dois campos.
Primeiramente,
como processos de apreensão e atribuição
de sentidos para a realidade, Jornalismo
e História Oral se constituem a partir
do presente.
No
caso do Jornalismo, a atualidade é
o seu foco e é só para compreendê-la,
num recorte sincrônico, que se apresentam
os fatos do passado e se projetam os acontecimentos
no futuro. No trabalho dos oralistas, por
sua vez, também o cotidiano e os
fatos se entrelaçam para garantir
a lógica da vida coletiva, mas a
atenção está voltada
para as experiências do passado atualizadas
pela memória no presente.
Um
segundo aspecto é o de que todos
os personagens, trazidos pela História
Oral ou pelo do Jornalismo, são sujeitos
históricos, diretamente envolvidos
tanto com a realidade imediata em que se
situam quanto com um 'passado' que constitui
suas referências e sua memória.
Além disso, as duas áreas
trabalham a partir de fontes humanas, embora
com pesos diferentes: enquanto elas são
a razão de ser da História
Oral, compõem com os dados documentais
e a observação do repórter
o tripé que sustenta o levantamento
de informações no Jornalismo.
Poderia
ser citado também o fato de que História
Oral e Jornalismo são "variantes
do conhecimento", ou seja, não
tão delimitadas para constituírem
uma Ciência, nem tão pouco
sistematizadas para serem meras técnicas
de coleta de dados, sem peso na compreensão
da realidade. São, portanto, diferentes
formas do conhecer.
Talvez
por causa de paralelismos como esses é
que Ferreira (2001) tenha considerado indiscutível
o fato de que História e Jornalismo
compartilham uma fronteira na construção
da memória e da história e
que, vistas de um determinado ângulo,
as práticas do jornalista e a do
historiador oral se aproximam. No entanto,
mais que as aproximações,
são as diferenças profundas
no tratamento dos dados, na relação
com os entrevistados, na produção
dos textos e nos objetivos da pesquisa que
impedem a associação apressada
entre as duas práticas.
Mesmo
quando se está partindo de formas
diferenciadas de Jornalismo, como as discutidas
ao longo da obra de Ferreira, é preciso
manter um distanciamento crítico
pertinente, pois só assim pode-se
entender o lugar de cada uma das produções
e identificar possíveis colaborações
do método dos oralistas para a pesquisa
e o fazer dos jornalistas.
Nesse
sentido, faço a seguir algumas considerações
em torno desse debate que visam contribuir
para uma melhor delimitação
em torno dos dois campos. Além disso,
busco estabelecer um diálogo entre
a História Oral e o Jornalismo no
sentido de identificar como possíveis
práticas naquela podem suscitar uma
discussão sobre o fazer nesta. Ressalto,
porém, que tais observações
se dão muito mais como 'provocações'
para se pensar as dinâmicas da pesquisa
e da atuação jornalísticas
do que como ponto de vista e afirmação
acabados e estanques.
1.
A História Oral busca trazer a experiência
social de pessoas e grupos e proceder à
análise de processos do presente
para compreender o meio imediato; é
história do tempo presente e 'história
viva' e surge como alternativa para estudar
a sociedade por meio de depoimentos, questionando
a tradição historiográfica
centrada nos documentos oficiais.
Essa
perspectiva, portanto, apresenta uma mudança
no conceito de história, entendido
na aproximação com uma idéia
de 'verdade' dos fatos e de cientificidade
e neutralidade tanto na coleta quanto na
significação dos dados sobre
os acontecimentos.
A
fundamentação documental em
História Oral se justifica por três
motivos: quando não há documentos,
quando existem versões diferentes
da história oficial e quando se elabora
uma outra história. Ela pode também
preencher lacunas documentais, ou estabelecer
diálogos com outros documentos ou
simplesmente se justificar pela necessidade/interesse
de trazer as narrativas individuais para
se pensar a realidade. Neste caso, ela se
apresenta como um "discurso independente,
sustentado por uma série de entrevistas".
E ela não é usada apenas no
caso de discursos calados pela censura,
ou desaparecimento/inexistência de
registros, mas pode também tratar
dos "excluídos de processos
de reconhecimento histórico.
Ela
se apresenta menos numa posição
de confronto com os documentos históricos,
cartoriais, consagrados e/ou oficiais, do
que como uma espécie de "curiosidade
paralela", de desconfiança construtiva
e de complementação. "Essa
postura se faz não apenas para ser
uma visão de combate à oficial,
mas principalmente para garantir o caráter
democrático da versão do povo,
que quer para si uma 'outra história'"
(Cf. Meihy, 2005:30).
2.
Embora, assim como o Jornalismo, parta da
realidade no presente, a História
Oral se preocupa com o aparecimento dos
fatos a partir da memória de indivíduos
e grupos. Não interessa, na sua abordagem,
a comprovação e afirmação
da 'verdade', mas sim a atribuição
de sentidos para os acontecimentos a partir
do relato dos indivíduos, com todas
as marcas próprias da subjetividade,
como interditos, emoções,
esquecimentos, rupturas etc.
Isso
significa que, nessa forma particular de
abordagem e de compreensão do real,
os oralistas não buscam confrontar
'verdades' com 'mentiras', mas identificar
aspectos que permitam trazer à tona
outras formas de entendimento dos fatos
do mundo, normalmente apagadas, negligenciadas,
desprezadas, esquecidas ou simplesmente
desconhecidas.
O
Jornalismo, ao contrário, ergueu
o seu estatuto, principalmente a partir
do século passado, sobre os preceitos
da objetividade, da neutralidade, da isenção,
da imparcialidade e da veracidade (Lage,
2001). Como, na prática, isso é
impossível, desenvolve-se sob dinâmicas
que visam justamente garantir esses efeitos
quanto aos discursos que constrói
(Maciel, 2001).
3.
A História Oral também se
apresenta como uma forma alternativa de
compreensão da sociedade a partir
de documentos de uma outra ordem: a oralidade
assume a primazia frente aos registros escritos
e passa a constituir as fontes orais, sobre
as quais se desenvolverá a investigação
dos oralistas. E nesse trabalho, tornam-se
objeto da pesquisa tanto as experiências
individuais quanto as coletivas, de pessoas
anônimas ou não.
E
isso porque o propósito da História
Oral é trazer para o conhecimento
e o debate públicos a realidade da
vida social que se faz sempre a partir de
múltiplos sujeitos e não apenas
daqueles que ganham visibilidade por meio
dos relatos históricos tradicionais,
pelos meios de comunicação
etc. A postura da História Oral,
portanto, mostra sua gênese democrática
e dialógica.
Fatos
notáveis e acontecimentos corriqueiros
mostram que a noção de vida
social apreendida pela História
Oral é relevante em sua plenitude.
Como que garantindo que 'tudo é
história', ela decorre da vontade
de registrar, guardar e propor análises
fundadas em um conceito de conhecimento
que se dobra ao continuum da vida.
Com uma vocação para tudo
e para todos, a História Oral respeita
as diferenças e facilita a compreensão
das identidades e dos processos de suas
construções narrativas.
Todos são personagens históricos,
e o cotidiano e os grandes fatos ganham
equiparação na medida em
que se trançam para garantir a
lógica da vida coletiva (Cf. Meihy,
2005:25).
4.
A História Oral muitas vezes é
confundida como ferramenta (notadamente
por aqueles que a utilizam sem conhecer
seu estatuto) talvez porque nos seus primórdios
não houvesse uma sistematização
de procedimentos entre os pesquisadores
que a empregavam. Porém, a partir
do momento em que se passou a problematizar
e a estabelecer os critérios de elaboração
de documentos, que são determinantes
na diferenciação entre a História
Oral e qualquer outro procedimento de entrevista,
não é mais possível
entendê-la, nem dela valer-se da mesma
forma, a não ser por ignorância
ou má-fé.
Ao
se fazer História Oral, alguns procedimentos
são imprescindíveis: a elaboração
de um projeto; o contato humano e o estabelecimento
da mediação por parte do oralista
(daí, por exemplo, não ser
permitida gravação por telefone,
coisa que o Jornalismo faz, até por
e-mail); a transcrição
do diálogo e posterior transcriação
da narrativa; a devolução
particular, ou seja, a conferência
por parte do colaborador e sua anuência
sobre o texto, bem como sua autorização
para publicação; a devolução
pública do relato, ou seja, a sua
publicação na forma de livros
e/ou outros documentos. Sem a observância
desses preceitos, pode-se estar fazendo
entrevista, coleta de depoimentos, registros
sonoros ou seja lá o que for, mas
não História Oral.
Qualquer
pesquisa que se pretenda uma investigação
nessa linha deve ter, portanto, a preocupação
com a inscrição dos depoimentos
num projeto, o cuidado com a transposição
da enunciação falada para
a escrita e o compromisso com a devolução
da narrativa, primeiramente para seus protagonistas
e, depois e com a aquiescência destes,
para o público mais amplo.
Nesse
sentido, embora seja interessante o fato
de Ferreira inserir em suas discussões
um livro de História Oral e se preocupar
em apresentar os aspectos diferenciados
da área, seus apontamentos podem
confundir quem não tem familiaridade
com o fazer do oralista ou conhecimentos
mais aprofundados sobre ele. Daí
o risco de interpretações
rasas sobre o modo de trabalhar da História
Oral e de se incorrer nos equívocos
para os quais alerta Meihy (2005:14):
O
uso indiscriminado de aspectos do que
se chama vulgarmente de História
Oral e a confusão de sua prática
com entrevistas comuns, feitas sem os
enquadramentos convenientes à História
Oral, revelam a perversidade de certas
investidas que, valendo-se de fórmulas
tradicionais, se apresentam como uma "nova
alternativa". Entrevista sem projeto
não é História Oral.
Seja
a História Oral utilizada como técnica
para a obtenção de depoimentos
que complementariam uma investigação
mais ampla, calcada também em documentação
paralela , seja como método, em que
a primazia no estudo é da narrativa
oral, é imperioso que determinados
procedimentos sejam seguidos. E nestes,
a entrevista é central e é
em torno do trabalho com ela que todo o
processo se estabelece.
No
círculo dos usuários da
História Oral, o grupo mais adensado
tem sido o que parte do princípio
de que ela [a entrevista] se constitui
como um objeto definido, com procedimentos
claros e preestabelecidos que a justificam
como um método. Nesse caso, ela
encerra o fundamento da pesquisa. É
com base nela que se organiza o projeto
do trabalho. Na eventualidade do uso de
outras fontes, elas se sujeitam ao debate
central decorrente das fontes orais (Cf.
Meihy, 2005:51).
5.
A construção narrativa
em História Oral se dá por
meio do processo da transcriação,
que não é mera reprodução
da entrevista gravada, mas uma outra textualização,
com estilo e forma composicional particulares.
Tal construção se dá
'a quatro mãos', ou seja, ela é
totalmente acordada entre o oralista e o
colaborador ('testemunha'), o que reforça
a idéia de não-reprodução
distanciada do relato e instaura um estatuto
diferenciado para a autoria, que deixa de
ser 'individual'.
Uma
outra característica é a de
que não há a preocupação
em manter uma ordem cronológica na
obtenção dos dados; a narrativização
dos relatos ocorre de forma subjetiva e,
portanto, aberta à exposição
não linear da memória das
experiências. O oralista pode sim
buscar chamar a atenção para
determinados aspectos da exposição
memorialista, mas não pode influenciar
ou estabelecer uma alteração
da ordem em que os fatos foram/são
compreendidos e apresentados pelo colaborador.
6.
A História Oral não
se propõe a produzir 'documentos'
afirmativos estanques, mas a trazer para
o conhecimento público versões
diferentes da historiografia oficial, para
a qual, aliás, o Jornalismo contribui
significativamente. [5] Busca contar 'outra
história' e o mote disso pode ser
a observação de aspectos não
revelados pela objetividade dos documentos
escritos. Isso porque ela é uma forma
de estudo que se baseia na experiência
social de indivíduos e grupos, para,
a partir daí, empreender uma investigação
alternativa em relação ao
método historiográfico tradicional
(baseado na convencionada documentação
oficial) sobre a sociedade que emerge no
tempo presente, a partir da memória
dos sujeitos sociais.
Segundo
Meihy (2005:17), "a História
Oral implica uma percepção
do passado como algo que tem continuidade
hoje e cujo processo histórico não
está acabado". É isso
que marca a História Oral como 'história
viva'. Por meio dessa investigação,
mais que trazer uma outra possibilidade
de compreensão dos eventos, a mudança
de perspectiva da história "garante
sentido social à vida de depoentes
e leitores, que passam a entender a seqüência
histórica e se sentir parte do contexto
em que vivem" (Cf. Meihy, 2005:19).
7.
É pertinente atentar para a necessidade
de se pensar que a História Oral
não é exclusividade de nenhum
campo, mas pode ser um caminho de investigação
e atuação profícuo
para diversas áreas do conhecimento,
como o Jornalismo. Na investigação
científica, por exemplo, pode ser
utilizada como um conjunto de procedimentos,
um processo sistemático de obtenção
de dados sobre a história do Jornalismo
e/ou dos jornalistas a partir da vivência
daqueles que estiveram ou estão de
alguma forma envolvidos com o campo.
Já
quanto à prática jornalística
no dia-a-dia, pode contribuir para desencadear
questionamentos, incrementar procedimentos
ou até mesmo levar a uma mudança
de comportamento no trato com as fontes
e na coleta de dados. Especificamente quanto
a este aspecto, a cooperação
mútua entre oralista e entrevistado
assinala um desafio para certas tradições
de pesquisa e práticas de levantamento
de informações baseadas na
relação interpessoal. Enquanto,
por exemplo, a História Oral trata
o interlocutor como colaborador, no Jornalismo
ele é a "fonte humana".
Isso
não encerra uma mera polêmica
lexical, mas revela, na verdade, uma profunda
dissonância de perspectiva na dinâmica
entrevistador-entrevistado.
O
conceito-chave, na História Oral,
é o de mediação, instituindo
para o oralista o papel de sujeito norteador
de todo o processo de pesquisa, mas numa
atitude de total respeito às expectativas,
desejos e limitações de ordem
prática e afetiva do colaborador.
No Jornalismo, por sua vez, a fala torna-se
'dado concreto' e o entrevistado deixa de
deter o controle sobre ela assim que a pronuncia
durante a entrevista. Quem, com raríssimas
exceções, define o que
vai para conhecimento público
e como é o jornalista e/ou
pesquisador.
O
oralista tem a clareza de que não
é o 'dono' da palavra, mas, ao contrário,
é aquele que vai elaborar a narrativa
a partir de uma total imersão no
universo do colaborador e de uma relação
dialógica profunda com ele. A conferência
do relato depois de escrito, com primazia
do colaborador na definição
do texto final, é um procedimento
que marca diferenças significativas
em relação às narrativas
jornalísticas e/ou histórico-científicas
conservadoras, pois estabelece uma nova
discussão sobre os lugares de enunciação,
a autoria e a produção textual.
Uma
perspectiva mais consciente sobre pensar
e fazer Jornalismo, distante dos dogmas
da objetividade e da neutralidade, reconhece
o jornalista como 'mediador simbólico',
ou seja, como um sujeito social que vai
apreender o cotidiano e, por meio da atribuição
de sentidos a ele, fará os acontecimentos
chegarem ao conhecimento do público.
Tal
compreensão, porém, não
tem sido suficiente para provocar uma mudança
de paradigma na organização
e veiculação dos textos midiáticos
e científico-acadêmicos, ainda
controlados pelas instâncias de produção/emissão.
O jornalista, seja na posição
de repórter/redator ou editor, seja
no papel de pesquisador, é quem normalmente
controla a produção do texto
e a ele dá versão final, mesmo
que, para tanto, tenha se valido da fala
dos entrevistados, que, na maioria esmagadora
das vezes, ficam completamente alijados
do processo.
No
caso especialmente da atuação
profissional, a dinâmica da produção
e o 'controle' da informação
são as principais justificativas
para a não devolução
do texto para a fonte ou o não-conhecimento
prévio desta sobre o que vai ser
efetivamente publicado/transmitido. A prática
da História Oral lança luz
sobre uma nova faceta nessa mediação,
ao trazer para a produção
do texto o 'outro' com quem se dialogou,
compartilhando com ele a autoria. A organização
é conjunta, tanto num nível
da produção textual propriamente
dita, como da apresentação
da 'interpretação' dessa experiência,
isto é, da atribuição
de sentidos para o relato.
Além
disso, o estatuto do depoimento em História
Oral é de outra ordem, diferente
da idéia de 'testemunho' que permeia
a historiografia e o Jornalismo, no qual
a informação fornecida por
pessoas normalmente é apresentada
para afiançar a 'verdade' dos dados.
[6] Na História Oral, por sua vez,
a 'verdade' do relato, ou seja, sua adequação
aos acontecimentos, é profunda e
efetivamente relativizada em nome da subjetividade,
das emoções, da compreensão
particular de cada sujeito sobre o mundo.
Tendo
em vista, enfim, a discussão aqui
posta, pode-se considerar que a História
Oral e o Jornalismo apresentam-se como formas
especiais de emersão de discursos
diferenciados no meio social e, em vista
disso, é possível estabelecer
aproximações pertinentes entre
as duas áreas desde que resguardadas
as especificidades processuais de cada uma.
O diálogo entre elas deve sim ser
estabelecido, com repercussões certamente
profícuas para ambas as áreas,
ainda mais tendo em vista que a História
Oral apresenta-se como uma dinâmica
de pesquisa intrigante e estimulante.
Ressalte-se
mais uma vez, porém, que tal diálogo
tem de ser feito com total observância
das especificidades de cada campo. Quando,
por exemplo, se lança mão
da História Oral como técnica
coadjuvante nas pesquisas em Jornalismo,
comumente enfoca-se apenas uma de suas facetas,
que é a entrevista. Desconsidera-se,
portanto, que o método engloba procedimentos
como o projeto, a entrevista, a transcriação,
a devolução individual e pública
etc. Tem-se, nesse caso, a perversa atitude,
tão corriqueira, da apropriação
indevida, incompleta, inconseqüente,
de propostas de investigação
científica, reduzidas, então,
a meros 'apêndices instrumentais'
ou "ferramentas", como afirma
Meihy (2005).
Também
é comum a ocorrência de pesquisas
que se apresentam como realizadas segundo
o método da História Oral,
especialmente quanto à coleta de
dados via entrevista, mas que resultam em
textos que passam ao largo do conhecimento
do colaborador. Isso revela uma grave transgressão
a aspectos essenciais do método em
História Oral, que são a total
inter (-) ação entre pesquisador
e colaborador (que não é mero
'informante' ou 'testemunha') e a devolução
do texto transcriado, tanto para que o colaborador
faça suas observações
quanto para que dê seu aval sobre
a transcriação.
A
História Oral, portanto, pode ser
uma valiosa coadjuvante nas pesquisas em
Jornalismo sem falar na própria práxis
jornalística e sua utilização
deve ser considerada dependendo do tipo
de investigação, em especial
as de reconstrução memorial-histórica.
Na interação com outras disciplinas,
fica marcado o seu peso no cenário
da cultura contemporânea como lugar
específico, mais do que de uma prática,
de uma forma especial de 'ver o mundo',
muito mais democrática, dialógica,
dialética e, por que não dizer,
humana. Olhar para essa proposta pode ser
uma estratégia bem interessante por
parte de outras práticas, entre elas
o Jornalismo e as pesquisas na área,
no sentido de uma renovação
positiva.
Notas
[1]
Rota 66 é o nome de uma equipe do
1 batalhão da Polícia Militar
de São Paulo, unidade de elite batizada
de Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. O
livro-reportagem de Caco Barcelos abrange
o período que vai de 1975 a 1992
e discute, a partir de dados coletados por
meio de entrevistas e pesquisa documental,
as ações polêmicas do
Batalhão (principalmente na década
de 70), cuja linha-mestra de atuação
era o abuso de poder, a eliminação
sumária de suspeitos e a instauração
do horror, notadamente sobre pessoas da
classe baixa e moradoras das regiões
periféricas da capital. (BARCELOS,
Caco. Rota 66. São Paulo:
Globo, 1992).
[2]
O livro aborda a Marcha Nacional por Reforma
Agrária, Emprego e Justiça,
promovida pelo Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra, em 1997. Foram elaboradas textualmente
as narrativas de 19 trabalhadores rurais,
pela prática da história oral
de vida. Os autores são oralistas
e participam do Núcleo de Estudos
em História Oral (Neho), da Universidade
de São Paulo. (MEIHY, J. C. S. B.
et al. Vozes da marcha pela terra.
São Paulo: Loyola, 1998).
[3]
Trata-se da história do travesti
brasileiro Fernanda Farias de Albuquerque,
preso na Itália por ter esfaqueado
alguém, e que, na cadeia, estabelece
uma relação de cumplicidade
com Maurizio Janelli, condenado à
prisão perpétua por sua participação
no grupo italiano Brigadas Vermelhas, na
década de 70. É a partir da
forma inusitada de alteridade que se estabelece
entre os dois que a obra toma corpo: uma
narrativa 'autobiográfica', em primeira
pessoa, mas escrita pelo 'repórter-terrorista'
a partir de anotações feitas
por Fernanda em um caderninho que circulava
entre as duas celas, além de uma
entrevista, também efetivada via
essa forma singular de comunicação.
(ALBUQUERQUE, F. F; JANELLI, M. A princesa:
a história do travesti brasileiro
na Europa escrita por um dos líderes
das Brigadas Vermelhas. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1995).
[4]
Os grifos em negrito foram feitos pela autora.
[5]
"A mídia vem sendo cada vez
mais utilizada pelos historiadores como
fonte em suas pesquisas. Do total de trabalhos
que abarcam o séc. XX apresentados,
em 1995, no Encontro nacional de Pós-graduandos
em História, cerca de 70% utilizavam
meios de comunicação (sobretudo
jornais) como fonte histórica".
(RIBEIRO, Ana Paula G. "Jornalismo
e história: ambigüidades e aparentes
paradoxos". In: Revista Eco.
Pós-graduação em Comunicação
e Cultura da UFRJ, Vol. 4, nº 1, 1999.
p. 5).
[6]
Um exemplo do valor atribuído à
declaração de entrevistados
pode ser conferido no Manual do jornal O
Estado de S.Paulo: "Procure usar
declarações textuais a cada
um ou dois parágrafos da matéria.
Uma frase por parágrafo já
seria uma boa medida e ela funcionaria quase
sempre como uma testemunha que confirmasse
a história ou o fato que o repórter
quer levar ao leitor". (MARTINS,
Eduardo. Manual de redação
e estilo. São Paulo: O Estado
de S.Paulo, 1990. p. 25).
Referências
bibliográficas
FERREIRA,
C. R. Literatura e Jornalismo, práticas
políticas: discursos e contradiscursos,
o Novo Jornalismo, o romance-reportagem
e os livros-reportagem. São Paulo:
Edusp, 2003.
LAGE,
N. A reportagem: teoria e técnica
de entrevista e pesquisa jornalística.
São Paulo/Rio de Janeiro: Record,
2003.
MACIEL,
S. "Manuais de estilo, notícia
e subjetividade". Dissertação
de mestrado, São Paulo, FFLCH/USP,
2001.
MARTINS,
E. Manual de redação e
estilo. São Paulo: O Estado
de S.Paulo, 1990.
MEDITSCH,
E. Jornalismo como forma de conhecimento.
Florianópolis/SC, Insular, 1995.
MEIHY,
J. C. S. B. Manual de História
Oral. São Paulo: Edições
Loyola, 2005.
RIBEIRO,
A. P. G. "Jornalismo e história:
ambigüidades e aparentes paradoxos".
Revista Eco. Pós-graduação
em Comunicação e Cultura da
UFRJ, Vol. 4, nº 1. 1999. (p. 5 -11).
*Suely
Maciel é jornalista, mestre em Semiótica
e Lingüística Geral, doutoranda
em Ciências da Comunicação
pela Universidade de São Paulo (ECA-USP)
e docente do ensino superior nas áreas
de produção textual, técnicas
de reportagem e radiojornalismo.
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