Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


ARTIGOS
   

Linguagem,
identidade e ideologia:

A "velhice" no discurso jornalístico

Por Claudiana Nogueira de Alencar*

Introdução

O mundo moderno está enfrentando o constante desafio do aumento expressivo da população mundial de idade avançada. Várias pesquisas constatam uma aceleração do envelhecimento populacional e estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) prenunciam que no ano 2050 os idosos serão um quarto da população.


"Study of an old man in profile"
(1630), Rembrandt van Rijn, Statens Museum for Kunst

Esse aumento acentuado no número de idosos tem gerado um grande interesse por parte da sociedade, dos poderes públicos e também da academia, pela necessidade de se buscarem as causas determinantes das atuais condições de saúde e de vida dos idosos e de se conhecerem as múltiplas facetas que envolvem o processo de envelhecimento. Temas como velho, velhice e envelhecimento, anteriormente vistos com desdém, passam a se fazer presentes em numerosas matérias jornalísticas através de discursos que apresentam uma atitude prática e ideológica da mídia com relação à velhice.

Diante desse quadro, este trabalho pretende investigar a operacionalização (legitimação, dissimulação, naturalização etc.) de ideologias no discurso jornalístico sobre a velhice, a partir da utilização de um programa de estudos lingüísticos críticos, cuja ênfase está na inter-relação entre linguagem, poder e ideologia. A abordagem a que me refiro e que utilizarei como arcabouço teórico-metodológico deste trabalho é a chamada Critical Language Study - CLS, elaborada por Norman Fairclough, da Universidade de Lancaster.

Percebendo a imprensa como uma instituição social (Cf. Mariani, 1999) decidi estudar o discurso do jornal a Folha de S.Paulo, que considerado como instituição, será visto como ocupando uma posição social, portanto, anunciando e reproduzindo sentidos deste lugar. O discurso jornalístico sobre a velhice será considerado, pois, como uma prática discursiva daquele jornal, constituindo-se em uma prática social.

Meu intuito foi indagar quais são os sentidos da velhice e do envelhecimento construídos no discurso jornalístico e, como esses sentidos vêm sendo sedimentados historicamente, na apresentação da velhice como um problema social.

Discurso: constituindo identificações e relações sociais

Na introdução de sua obra Discourse and Social Change (1992), Fairclough afirma utilizar em seu programa de estudos, métodos de análise da linguagem desenvolvidos na Lingüística e em outros estudos da linguagem, do social e do político, para atingir ao que ele se propõe: o desenvolvimento de uma adequada teoria social da linguagem. Para esse intento, faz-se necessário entender o conceito de discurso nessa abordagem crítica. O termo, por ser largamente usado por vários teóricos e em várias disciplinas, pode provocar contradições em tais definições formuladas.

Em Lingüística, encontra-se a definição de discurso como amostra extensa do diálogo falado, em contraste com o texto escrito. No entanto, tal definição vem sendo ampliada, comumente, para referir-se a "discurso" como amostragem externa da linguagem escrita ou falada. Nesse sentido 'discurso' preserva a ênfase nos caracteres formais da linguagem, alargando-se para uma compreensão mais interativa da linguagem, em que é levado em conta o processo de produção e interpretação da fala e da escrita, bem como o contexto situacional de uso lingüístico. O texto seria, então, o produto desse processo. Outra concepção de discurso é a que considera os diferentes tipos de linguagem usados em diferentes situações sociais, como por exemplo, o discurso jornalístico que é o nosso caso em estudo.

Fairclough combina a noção de discurso nesse sentido de texto-interação de orientação lingüística com a concepção de discurso num sentido mais teórico-social presente no trabalho de Michel Foucault - A Arqueologia do Saber (1997) que estrutura áreas de conhecimento e prática social - e no trabalho de John B. Thompson (1990) _ cuja ênfase está nos particulares caminhos de uso da linguagem e outras formas simbólicas. Discurso, portanto, não apenas reflete ou representa as relações e as entidades sociais, ele constrói e constitui tais entidades e relações, constituindo assim, os sujeitos sociais (Cf. Fairclough, 1992).

A análise crítica do discurso de Fairclough apresenta-se, pois, num modelo tridimensional. Ele diz: "um evento discursivo é visto como sendo simultaneamente um pedaço de texto, uma instância de prática discursiva e uma instância de prática social" (Cf. Fairclough, 1992:04).

Aqui, devemos distinguir três aspectos da construção de efeitos do discurso. Em primeiro lugar que o discurso contribui para constituir as "identidades sociais" e os sujeitos - tidos como uma posição, um efeito do discurso. Em segundo lugar, as relações sociais são construídas no e pelo discurso. E terceiro, que o discurso contribui para a construção de sistemas de conhecimentos e crenças. A esse respeito, vejamos as manchetes:

Um mundo mais grisalho

Proporção de idosos vai superar a de jovens no mundo em 2050. (Folha de S.Paulo; 20/09/1999: caderno especial: 3).

Último asilo

Os internos desses abrigos, particulares ou filantrópicos passam o tempo de forma superficial (Folha de S.Paulo; 20/09/1999: caderno especial: 12).

Aqui, percebe-se que o discurso da imprensa vem reproduzir sentidos para a velhice, considerando-a como uma categoria antropológica, ao supor o envelhecimento físico ou a idade legal com uma delimitação de grupos sociais estabelecida em posição-sujeito para uma população de mais idade que passa a ser designada socialmente como velhos - que ao mesmo tempo em que é considerada por mecanismos de classificação (idade cronológica, condições físicas e mentais) e separação, também passa a ser negada a partir do fato de que é tomado como objeto de atenção por parte de profissionais como demógrafos, gerontólogos, psicólogos, enfim os "experts".

A utilização da expressão proporção de idosos (texto 1) e da nominalização os internos nos permite questionar que critérios se usa para classificar e separar seres humanos; afinal de contas, os internos quem são?

As relações sociais serão estabelecidas na base do discurso dos que têm competência para falar do velho - que assume a posição de pacientes, vítimas sociais. A partir dos recortes das categorias de idade, que aqui naturalizam a ideologia de que a velhice é algo biológico e universal, o termo "grisalho" (texto 1) indica a associação direta da velhice com o aspecto físico biológico, apresentando aspectos relativamente culturais como universais, característicos da natureza humana.

Em "um mundo mais grisalho" - a metonímia dá uma pista para identificar uma das proposições implícitas (Cf. Fairclough, 1985) no discurso da Folha de S.Paulo sobre a velhice: "a velhice é uma categoria natural". A esse respeito, a antropóloga Guita Grin Debert diz que:

"cada cultura tende a elaborar grades de idades específicas. A pesquisa antropológica demonstra, assim, que a idade não é um dado da natureza, não é um princípio naturalmente constitutivo de grupos sociais, nem um fator explicativo dos comportamentos humanos. Essa demonstração exige um rompimento com os pressupostos da psicologia do desenvolvimento que concebe o curso da vida como uma seqüência unilinear de etapas evolutivas em que cada etapa, apesar das particularidades sociais e culturais, seriam estágios pelos quais todos os indivíduos passam e, portanto, teriam um caráter universal" (Debert, 1998:09).

Uma outra proposição implícita que analiso numa perspectiva crítica é a que apresenta a velhice como um problema social, a partir da apresentação de dados alarmantes do crescimento da população de mais idade. O terceiro aspecto referente aos efeitos de sentido que apontam para a construção de um sistema de conhecimentos e crenças, faz com que compreendamos que a constituição da velhice como um problema social se dá através da linguagem, por meio de discursos dominantes que conquistam a atenção pública, tornando visível uma situação particular para legitimá-lo, no esforço de promovê-lo e inseri-lo nos campos das preocupações da atualidade.

Perceber tais construções discursivas como formas de pressão e expressão que ocultam "o jogo de redefinição dos poderes ligados a grupos sociais em diferentes momentos dos ciclos da vida" (Cf. Debert, 1998:11), mostram a necessidade de considerar o discurso jornalístico sobre a velhice como uma prática discursiva.

A prática discursiva é constitutiva dos aspectos arbitrários e criativos, na medida em que contribuem para a reprodução da sociedade e para a transformação social (Cf. Fairclough, 1992). Por isso é importante que a relação entre discurso e estrutura social seja dialética, levando em conta as determinações sociais do discurso e a construção do social no discurso.

A perspectiva dialética, de acordo com Fairclough, diferentemente da concepção de prática discursiva em termos de um modelo mecanicista que vê o evento discursivo como uma mera instância das estruturas discursivas, vê a prática e o evento discursivo como contraditórios e conflitantes.

A prática jornalística como pratica discursiva

No início deste trabalho, já me referi ao discurso do jornal A Folha de S.Paulo como um discurso institucional. Esta seção abrirá a discussão acerca da prática discursiva da imprensa com o intuito de, na medida em que se propõe uma análise do discurso jornalístico, refletir sobre o processo de discursivização da própria instituição jornalística.

Vale ressaltar a esse respeito, o trabalho de Bethania Mariani (1999) que estuda o processo histórico e jurídico da formação do discurso jornalístico brasileiro chamando a atenção para a heterogeneidade constitutiva dos discursos institucionais. Segundo ela "a compreensão do funcionamento de um discurso institucional não permanece restrita a uma correlação mecânica entre o que se diz e um lugar institucional correspondente, nem a uma concepção fixista da instituição, impedindo uma leitura crítica da sua forma de existência histórica" (Cf. Mariani, 1999:49).

Nesta perspectiva, um discurso institucional passa a existir a partir da historicidade que o constitui e essa historicidade pode ser vista como resultante de processos discursivos que legitimaram e deram sentido às instituições. Ou melhor, "o que chamamos de instituições é fruto de longos processos históricos durante os quais ocorre a sedimentação de determinados sentidos concomitantemente à legitimação de práticas ou condutas sociais. São práticas discursivas que se legitimaram e institucionalizaram ao mesmo tempo em que organizaram direções de sentidos e formas de agir no todo social" (Cf. Mariani, 1999:51).

No que diz respeito ao processo histórico de formação da imprensa, Thompson vem mostrar que o desenvolvimento inicial da imprensa e das publicações sempre esteve interligado com o exercício do poder político. As autoridades responsáveis pelos aparatos administrativos dos Estados-nações emergentes restringiam ou suprimiam a publicação de material supostamente herético ou perigoso.

A censura, que já funcionava na Idade Média como atividade irregular dos copistas, passa a ser regulamentada com o advento da imprensa tornando-se sistemática e secular (Cf. Thompson, 1995). Assim, o desenvolvimento da imprensa nos séculos XVII, XVIII e XIX foi marcado pelo controle por parte das autoridades do Estado assumido através da censura aberta, do estabelecimento de impostos e subsídios vários. Nesse contexto, surge a luta pela liberdade de imprensa, juntamente com o nascer do pensamento democrático liberal, que se proponha a combater o poder repressivo do Estado.

Inúmeros pensadores liberais como John Stuart Mill vão defender uma imprensa livre e independente. A esse respeito relata Thompson (1995: 324):

"Embora os pontos de vista dos liberais ingleses diferissem sob vários aspectos, eles, geralmente, estavam concordes na visão de que uma imprensa livre e independente era uma salvaguarda vital contra o uso despótico do poder do estado. Uma imprensa livre e independente desempenharia o papel de um vigilante crítico: não apenas articularia uma diversidade de opiniões e, com isto, enriqueceria a espera do conhecimento e do debate, mais também exporia e criticaria as atividades aqueles que governa e os princípios nos quais baseiam sua decisões".

Foi a partir dessa luta que no curso dos séculos XVIII e XIX, foi incorporado nas constituições de muitos países o princípio da expressão livre dos pensamentos e opiniões. Desse modo, a imprensa enquanto instituição será constituída das leis que instituem sua liberdade, mas que funcionam como controle regulador da própria liberdade que defende. O discurso jornalístico vai funcionar a partir dessas sanções e, portanto como mantenedor das "relações sociais jurídico-políticas" através das circulações de determinadas informações.

É desse modo que o discurso jornalístico produz em sua prática discursiva a ilusão da neutralidade e da verdade na idéia de que o jornal é imparcial, pois nele "os fatos falam por si" (Cf. Mariani, 1999). No entanto, não apenas a historicidade que silenciada emerge para desmistificar a objetividade do discurso jornalístico ameaça o sonho da imparcialidade na prática discursiva da imprensa.

Também se pode perceber que o aumento desenfreado das indústrias da mídia transformou-as no século XX "em organizações econômicas de grande escala, dirigidas para a produção e difusão da circulação em massa de bens simbólicos, e foram, cada vez mais, integrando-se em conglomerados de comunicações transnacionais diversificados" (Cf. Thompson, 1999: 327).

Desse modo, podemos entender que muito embora se veja atualmente a independência das instituições jornalísticas diante do Estado_ o que caracteriza a democracia _ essa independência e, sua conseqüente imparcialidade, vê-se ameaçada pelo processo altamente competitivo e crescentemente global de acumulação do capital, um processo que resultou num declínio constante no número de jornais e numa concentração de recursos nas mãos de grandes empresários da multimídia.

Portanto, essas relações econômicas, relações de dependências causadas pelo crescimento desenfreado das organizações da mídia no campo privado, funcionam de modo a reger o discurso jornalístico mantendo determinadas ordens de discurso e, por conseguinte, determinadas ordens sociais.

Por essa linha de raciocínio, podemos considerar a neutralidade e a objetividade jornalísticas como efeito de sentido que escondem os controles externo e interno da prática jornalística. Vale ressaltar, no que diz respeito à questão da informatividade jornalística, as normas técnicas de redação presentes nos manuais de jornalismo que enfatizam a escolha precisa do léxico, eximindo-se de qualquer tendência à subjetividade. Conforme Mariani (1999:52):

"É interessante notar que escrito por profissionais de imprensa ou por teóricas da comunicação, essas normas técnicas de comunicação constroem o mito da informação jornalística com base em outro mito: o da comunicação lingüística. Responsabilizando o jornalista pelo relato mais ou menos fidedigno dos fatos, nesses manuais o que se está enfatizando é o "poder dizer", uma onipotência do sujeito com relação à linguagem. Informar e opinar, desse ponto de vista dicotomizado, resultam da capacidade (ou interesse) do responsável pela notícia em manipular a linguagem".

Desse modo, a concepção de linguagem predominante no discurso jornalístico é a da linguagem como instrumento de comunicação construindo visão de um sujeito logocêntrico, um sujeito senhor de si mesmo e autor de suas falas.

Velhice e migração de sentidos no discurso jornalístico

Na história das sociedades, a velhice sempre foi associada à idéia de declínio. Tal idéia aparece ora associada a um pessimismo realista, ora a um pessimismo idealista. Em vários períodos da história e em vários setores da sociedade ela aparece, portanto, como extremamente desfavorecida. Tanto entre nobres, quanto entre os camponeses, a força física prevalecia, os fracos não tinham lugar (Cf. Beauvoir, 1990).

Em sua obra Memória e sociedade: lembrança de velhos (1987), Ecléa Bosi refere-se à sociedade industrial como maléfica à velhice uma vez que, a divisão de classes, criando uma série de rupturas nas relações entre os homens e nas relações dos homens com a natureza, arranca todo o sentimento de continuidade do nosso trabalho.

Constatando a opressão da velhice na sociedade contemporânea, a análise de Bosi vai sendo delineada a partir da denúncia à associação da velhice com a idéia de ineficiência, incompetência. Perdendo a força de trabalho o velho já não é produtor nem reprodutor. Não participa da produção, não faz nada: deve ser tutelado como menor. Para Ecléa Bosi tais idéias são absorvidas da classe dominante na sociedade capitalista: "Quando se vive o primado da mercadoria sobre o homem, a idade engendra desvalorização".

A partir dos últimos 30 anos, a imprensa começa a publicar matérias construindo enunciados que denunciam determinadas questões (de ordem demográfica, fisiológica, psicológica, econômica etc.) referentes à velhice, para construí-la discursivamente como um problema social. Vejamos o fragmento de matéria abaixo:

Mais velhos

O Brasil tem 13,5 milhões de idosos (8,65% da população); em 2050, terá 56 milhões (24% da população prevista). Em busca de uma velhice melhor, pessoas com mais de 60 anos enfrentam preconceito, solidão e falta de perspectiva (Folha de S.Paulo, 26/ 09/1999).

Ora, se a velhice se torna um problema é preciso nomear "pessoas competentes" para tratar desse problema, ou melhor, para ensinar o velho a tratar de si mesmo, de modo a aprender a sustentar-se em meio à sociedade capitalista selvagem que o silencia, o segrega e o marginaliza.

Surgem, então, os gerontólogos e a Gerontologia. A esse respeito, diz Debert: "diferentemente de outras categorias, os velhos não dispõem de meios sociais nem de instrumentos de acesso à expressão pública. Os representantes que se colocam como porta-vozes das pessoas idosas são, atualmente, 'experts', cuja competência é oficialmente reconhecida pela referência a uma especialidade científica, a Gerontologia" (Cf. Debert, 1998:23).

O discurso da imprensa, situado em uma ordem do discurso, relaciona-se dialogicamente com o discurso da gerontologia para legitimá-lo, construindo a imagem do velho como vítima e nomeando as posições de sujeito indicadas para reintegrá-lo e ajudá-lo a resgatar sua função social. Essa relação dialógica vai deslocando os sentidos de velhice como doença e declínio para o sentido de velhice como fase de realização pessoal.

O discurso da Folha de S.Paulo, como um discurso institucional, direciona esse deslocamento de sentidos da velhice, que passa cada vez mais a assumir o sentido de rejuvenescimento. Esse deslocamento desvia a responsabilidade do Estado pelo idoso para jogá-la sobre o próprio idoso, ou seja, num quadro de mudanças neoliberais em que o Estado se torna cada vez mais parco em todos os gastos sociais, é instituído um discurso de privatização da velhice, em matérias que explicitam o culto ao corpo, a partir de cuidados de preventivos com a saúde, o estímulo para a reinserção do velho no mercado de trabalho como público alvo de publicidade, a mudança na idade estipulada para aposentadoria, as universidades da terceira idade etc.

Portanto, o sentido para a velhice direcionado por elementos de uma ordem do discurso que a associam ao declínio e a incompetência vai ser substituído por sentidos construídos a partir de um discurso neoliberal, que torna a velhice sinônimo de poder, de rejuvenescimento e competência.

Como podemos ver no trecho abaixo:

Idade não é páreo para os executivos

Qual é o melhor momento para se aposentar? Dependendo da empresa, essa pergunta tem uma resposta diferente. Na Xerox, por exemplo, é quando o executivo completa 60 anos. A IBM e a Autolatina, por sua vez, também têm programas com esse sentido. Porém, ao invés de vestirem o pijama e o chinelo, é cada vez mais comum os executivos que se "aposentam" não pararem. Enquanto para as empresas eles chegaram na reta final, esse grupo tem provado que sua disposição está apenas no começo. Experientes, na faixa dos 50 a 60 anos, esses executivos aproveitam o seu know-how para montar seu próprio negócio ou ir trabalhar em outra empresa. Por ironia, em geral as agendas ficam ainda mais sobrecarregadas (Folha de S.Paulo, 03/01/1990).

O deslocamento de sentidos para a velhice vai ser percebido também no vocabulário utilizado pela imprensa, que exclui as designações velhos e velhice, ao substituí-las por outras designações que funcionam como eufemismo, silenciando aspectos negativos relacionados à velhice. A esse respeito, justifica-se o próprio jornal, pela escolha do vocabulário, com o surgimento do termo terceira idade:

A própria palavra "velho" é um estigma para quem estar por aqui depois dos 65 e passando muito bem. (Folha de S.Paulo, Especial. 26/09/1999).

Ao mesmo tempo em que se coloca num lugar de significação, que dá voz ao discurso de autoridade dos gerontólogos, o discurso jornalístico sobre a velhice mantém a defesa dos idosos mais fragilizados, sem, contudo deixar de situá-los numa posição de menosprezo diante dos que representam essa fase da vida como seres ativos, participantes, felizes por usufruírem um momento próprio para a realização pessoal.

A partir dessas considerações, pude perceber que no discurso jornalístico da Folha de S.Paulo, a utilização de designações apresentadas como sinônimos para velho e velhice provoca uma migração de sentidos, esvaziando (em termos de sinonímia lexical) as propriedades que marcavam o sentido histórico negativo da velhice como declínio, incapacidade, sofrimento. A utilização de termos como sinônimos na prática discursiva da Folha vêm provocar um novo sentido para os referentes velho e velhice que seria o sentido da não-velhice, ou seja, a negação das propriedades lexicais que marcavam os seus sentidos anteriores.

Posso concluir que nesse processo migratório de sentidos. (1) que se da através da operacionalização de ideologias, os termos (como terceira idade e pessoas de terceira de idade, por exemplo) que representariam sinônimos para velhice e velho se constituem em antônimos desses termos.

A concepção de designação e referência tomada neste trabalho é a concepção elaborada por Eduardo Guimarães (1995:74) que apresenta a relação de designação como uma "relação instável entre a linguagem e o objeto, pois o cruzamento de discursos não é estável, é, ao contrário, exposto à diferença". Para ele:

"O objeto é uma exterioridade produzida pela linguagem, mas não se reduz ao que se fala dela, pois é objetivada pelo confronto de discursos. Em que sentido isto se dá? No sentido em que o objeto é constituído por uma relação de discursos. A sua materialidade é este confronto" (Cf. Guimarães, 1995:74).

No estudo das designações para a velhice, percebe-se que no confronto entre vários discursos (discurso neoliberal, discurso gerontológico etc.) opera-se a materialidade do objeto velhice - que no espaço interdiscursivo vem a ser substituído pelo termo terceira idade.

Para designar a velhice, portanto, será constituída em todas as matérias publicadas na última década pela Folha uma série de sinônimos e paráfrases para os termos velho e velhice. A seguir, trago o quadro dos termos apresentados nas matérias como referência a velho e velhice:

Velho(s):

- mais velhos - os mais velhos
- velhos - velho ativo
- idosos - o senhor / a senhora
- vovô/ vovós - vovó das vovós
- vovô caseiro - vovôs surfistas
- grisalhos turbinados - alguns de terceira idade
- pessoas de terceira idade - pessoas de meia idade
- pessoas de 40 anos - a pessoa aos 50 anos
- pessoas de mais de 60 anos - adultos com mais de 50 anos
- quem tem mais de 50 anos - população com mais de 65 anos
- acima de 65 anos - clientes com 60 anos de idade
- mulheres entre 40 e 80 anos - um casal de 70 anos
- maiores de 40 anos - maiores de 50 anos
- maiores de 60 anos - maior de 60
Tabela 1. Sinônimos e paráfrases para o termo velho.

Velhice:


- idade avançada - terceira idade
- processo de envelhecimento - na faixa dos 60 anos
- após os 50 anos - aquele estágio da vida
Tabela 2. Sinônimos e paráfrases para o termo velhice.

Nas designações encontradas para a velhice, observei a freqüência com que se utiliza o termo terceira idade e quase ausência do termo velhice e velho, este último aparecendo tão somente e, com bastante freqüência, acompanhando de um elemento modificador, por exemplo, nas designações, mais velhos e velho ativo.

Entendendo a ordem do discurso sobre a velhice como uma configuração de vários elementos discursivos que projetam uma velhice capaz e competente, podemos compreender o emprego do modificador como operando um deslocamento de sentido através do eufemismo. O eufemismo funciona nas matérias produzindo um sentido para a velhice divergente do sentido histórico que a associa ao declínio e à decadência.

Nota-se que a designação velho ativo parece referir a alguém de idade avançada que não carrega os caracteres negativos comumente associados a essa faixa etária.

Ao mesmo tempo em que se denuncia a inconveniência do emprego do termo velho para referir-se às pessoas que com o passar da idade continuam atuantes e rejuvenescidas (ver texto 5), o emprego das designações para a velhice na Folha de S.Paulo aponta para a legitimação da ideologia que considera o velho como alguém incapaz. Na designação velho ativo poderíamos ainda ler: velho, porém, ativo.

A designação mais velhos escrita em letras chamativas nas matérias especiais publicadas pela Folha sobre a velhice traz a idéia de uma aparente neutralidade. O uso do grau comparativo nessa designação permite percebê-la como uma construção do tipo X é mais velho que Y, sem que sejam demarcados os elementos (X, Y) que são comparados. Tal construção produz um efeito de sentido que nega as características que compõem e marcam a construção sociocultural das fronteiras estabelecidas entre as faixas etárias.

Afinal, quem são os "mais velhos"? Eles são mais velhos do que você, do que eu? De quem eles se distanciam em idade? A partir de elementos discursivos que apregoam uma velhice positiva posso perceber a escolha da designação mais velhos como o uso do politicamente correto para referir-se à velhice.

Embora a Folha de S.Paulo se apresente como um jornal com um projeto político-editorial próprio e mesmo que, através de um corpo editorial de escritores-jornalistas, pretenda atingir uma espécie de homogeneidade em sua prática discursiva, não podemos deixar de considerar seu discurso como um todo heterogêneo que é atravessado por outros tantos discursos que com ele se articulam dialogicamente, portanto, marcado por contradição ideológica.

Desse modo, a designação mais velhos pode se situar tanto numa formação discursiva que denuncia a situação do velho na sociedade capitalista, quanto em outra que propõe uma velhice positiva. A designação mais velhos, portanto, corrobora o discurso da velhice como um problema social: um discurso contraditório gerado entre as duas formações discursivas já citadas.

Esse discurso propõe que os problemas referentes à velhice sejam solucionados não pelo Estado, mas pelo próprio idoso, que resgatando sua cidadania não se tornará um indesejado, mas alguém que pode cuidar de si e contribuir com a sociedade. Esse seria o papel dos profissionais que trabalham com a velhice (geriatras, gerontólogos, terapeutas-ocupacionais, etc.): ajudar os velhos a gerir a própria velhice, criando inclusive uma nova designação para ela, a terceira idade.

Desse modo, a designação mais velhos permite a paráfrase: as pessoas de terceira idade não são velhas, são apenas mais velhas que as pessoas jovens. Mas se a terceira idade desmente a velhice, de que referente estamos tratando?

A resposta está na compreensão de que a construção dos objetos "velho" e "velhice" e, portanto, sua materialidade se configura a partir de uma ordem do discurso em que se digladiam elementos de caráter político-ideológico.

Como condição dessa materialidade_ vista a partir de sentidos construídos no espaço discursivo, a serviço de poderes específicos_ observamos o atual contexto econômico em que surge um novo ramo de negócios: o ramo da terceira idade. Como exemplo, cito o complexo industrial da beleza - as clínicas de estética, as indústrias de cosméticos - para o qual a velhice existe como algo a ser combatido e esse combate sustenta um lucrativo mercado de consumo.

Num quadro econômico atual em que se torna hegemônica a cultura de consumo, a manutenção da capacidade, de vitalidade e da juventude durante o avançar da idade se constitui no elemento de uma ordem do discurso em que se situa o discurso jornalístico. Esse elemento discursivo (entendido como uma formação discursiva) que propõe uma velhice positiva conduz a direção argumentativa do discurso da Folha de S.Paulo a construir o perfil de um novo consumidor apresentado nos textos como pessoas que não se sentem velhas: pessoas vaidosas, preocupadas com a saúde, com tempo e dinheiro disponível e que representam um mercado interessante para investimentos [as pessoas que estão na terceira idade].

O uso da designação terceira idade ao invés de velhice, instala um sentido que apaga o sentido tradicional da velhice como fase resignação às perdas da beleza, da capacidade físico-cognitiva. O silenciamento desse sentido comum à cultura ocidental posiciona e estabiliza, na ordem do discurso, a promoção de uma velhice ativa que rompa com as fronteiras cronológicas, com estereótipos de uma fase monótona e aproveite a vida através de um novo estilo de aposentadoria.

A materialidade da velhice é produzida pela linguagem nos confrontos internos de uma ordem do discurso. Ou melhor: o discurso da Folha de S.Paulo, portanto, o discurso jornalístico sobre a velhice, situado no interdiscurso constitui sua materialidade na relação dialógica que estabelece com outros discursos.

Considerações finais

Ao fim da análise, posso considerar que o sentido construído para a velhice no discurso jornalístico é o sentido da não-velhice, estabelecido no processo sócio-histórico e estabilizado em uma ordem do discurso que delimita um raio de possibilidade para a operacionalização da ideologia.

A análise das matérias jornalísticas nos permite ver o sentido da velhice como fase de prazer e poder, que prepondera no discurso da Folha de S.Paulo, como resultado da intertextualidade, i.e., da heterogeneidade discursiva em que se articulam dialogicamente o discurso da velhice como fase de decadência (fundação discursiva capitalista) e o discurso da velhice como fase de rejuvenescimento (fundação discursiva neoliberal). A visibilidade da velhice produzida no discurso jornalístico se constitui a partir dessa articulação em que vozes se confrontam e um discurso se faz resposta a outro. Essa heterogeneidade no discurso da Folha possibilita a operacionalização de ideologias neoliberais, conforme se vê a seguir:

  • Legitimação: através da utilização de estatísticas econômicas e demográficas, o discurso jornalístico legitima o discurso dos especialistas que apresentam o envelhecimento populacional como um dado alarmante, justificando a criação de um mercado de previdência, em que grupos financeiros possam concorrer para satisfazer as necessidades, não apenas de ordem financeira, mas social e cultural dos idosos.
  • Dissimulação: através do deslocamento de sentidos de uma velhice decadente para uma velhice rica em realizações pessoais, constrói-se uma espécie de coesão social unindo grupos de mesmas faixas etárias, o que resulta na exclusão dos que não se enquadram nos padrões do grupo.
  • Naturalização: é interessante notar, no que diz respeito à naturalização de ideologias, que o discurso da velhice positiva traz a proposição implícita de que existe uma velhice triste, inativa e decadente que deve ser combatida. Essa velhice negada a partir do apelo ao imaginário com a metáfora da fonte da juventude se torna a única medida de contraste entre os velhos vencidos e as pessoas de terceira idade, entre os que conseguiram vencer o tempo e as dificuldades de várias ordens e os que, por algum motivo, não conseguiram deixar de ser velhos.

Portanto, o discurso da Folha de S.Paulo sobre a velhice, situado na ordem do discurso, na medida em que propõe uma velhice positiva, recupera através da memória discursiva, o sentido da velhice abandonada para em seguida eliminá-lo através do argumento de que a adoção de determinadas formas de consumo e estilos de vida pode render os lucros de uma velhice invejável.

Sem dúvida, a manutenção do sentido da velhice como fase de poder e prazer construído historicamente é também a manutenção de ideologias que se tornam hegemônicas e operam em nossa sociedade de modo a instituir relações de poder. Relações de sentido entre o velho e o não-velho.

Relações de poder entre os velhos e os que detêm o saber sobre eles. Práticas discursivas cuja análise abre caminhos para outras pesquisas.

Nota

[1] O conceito de migração de sentidos foi elaborado pela analista do discurso Eni Orlandi e se encontra presente na maior parte de seus trabalhos.

Referências bibliográficas

BEAUVOIR, S. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BOSI, E. G. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Edusp, 1987.

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_________. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Edusp; FAPESP, 1999.

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*Claudiana Nogueira de Alencar é doutora em lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pela Universidade de Birmingham (Inglaterra), professora de Lingüística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e dos cursos de Comunicação Social e Letras da Faculdade Integrada da Grande Fortaleza (FGF).


®Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]