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ARTIGOS
A Máscara da modernidade
A mulher na revista O Cruzeiro (1928-1945)
Por Leoní Serpa*

Resumo

A pesquisa resultou na obra A máscara da modernidade: a mulher na revista O Cruzeiro e resgata a história do imaginário feminino na revista, no período de 1928-1945. Uma história cheia de signos num período de mudanças, em que o país se urbanizava. O estudo analisa as mudanças trazidas pela modernidade e pelo Estado Novo nas representações simbólicas sobre as mulheres. A análise concentra-se em reportagens, notícias, fotos, colunas, publicidades e propagandas veiculadas pela revista e um conjunto de leituras que levam em conta a análise do discurso, além de bibliografia nas áreas do jornalismo e da história das simbologias e representações. Procura entender como Assis Chateaubriand criou o semanário, um dos mais lidos do país, num período de intensa urbanização, que creditava ao Brasil ares de modernidade.

Reprodução

Considera-se que essa foi uma história de um imaginário que polemizou e emocionou o leitor brasileiro, mas que, sobretudo, ditou modas, normas e até conceitos, numa intencional propagação da modernidade inspirada nos ditames hollywoodianos. A preocupação em mostrar um mundo glamouroso, com padrões de vida luxuosos, tinha um objetivo: o de atrair o público feminino para o consumo. Eram padrões ditados numa firme convicção de que a modernidade se fazia necessária.

Palavras-chave: História do jornalismo / Estado Novo / Revista O Cruzeiro

1. Da pesquisa histórico-jornalística

Com o objetivo de contribuir com a reconstituição de uma parte da história cultural brasileira, além de ampliar os estudos específicos sobre o imaginário feminino, sobre a história das mulheres é que levamos em consideração, nesta pesquisa, uma fonte pouco explorada: a revista O Cruzeiro. [1] Desde o seu surgimento em 10 de novembro de 1928 a revista tinha uma linha editorial dita como moderna.

O principal propósito deste estudo é analisar as mudanças trazidas pela modernidade e pelo Estado Novo de Getúlio Vargas às representações simbólicas sobre as mulheres. A análise concentrou-se em reportagens, notícias, fotos, colunas e propagandas da revista de 1928 a 1945.

Definimos, então, o período de estudo como a belle époque hollywoodiana, porque nessa época o imaginário feminino mostrado por O Cruzeiro era de um mundo glamouroso.

Era uma realidade fantasiada a partir de informações vindas em abundância dos estúdios da capital do cinema mundial, que estimulavam, as moças e senhoras a se espelharem nas estrelas de Hollywood, as quais usavam cosméticos, belas roupas, tinham novas idéias e conquistavam a fama e o prestígio social. Mas foi sobretudo através da propaganda de produtos que enalteciam a beleza e que reforçavam a idéia de uma nova mulher, agora mais consumista, que a revista vendia o sonho de mudanças.

O presente estudo tem como base a obra: A máscara da modernidade a mulher na revista O Cruzeiro (1928-1945) [2] que pesquisou em reportagens, notícias, fotos, colunas e propagandas da revista O Cruzeiro de 1928 a 1945. Com essa delimitação temporal procuramos também entender melhor os motivos das táticas utilizadas por Assis Chateaubriand para criar a revista, num período em que boa parte da população brasileira deixava o meio rural e avançava para as cidades, quando as fábricas se espalhavam e costumes agrários iam se esgotando, dando lugar a formas de vida urbana e ares de modernidade.

Era o Brasil com altos índices de analfabetismo que contava com uma revista de grande tiragem, chegando a 700 mil exemplares na década de 1960 e com um público de quatro milhões de leitores.

A análise detém-se no pensamento de O Cruzeiro mostrado pela sua linha editorial, que priorizava temas ditos "modernos". São fatos contados a partir da idéia de Brasil que a revista criou e desses, recortamos 17 anos para estudar. Na pesquisa deparamo-nos com uma multiplicidade de linguagens, expressas nas dezenas de páginas através da fotografia, da rotogravura, das publicidades, dos textos jornalísticos, das crônicas, das novelas, das colunas especializadas dirigidas ao público feminino, todas com conteúdos carregados de simbologias.

São linguagens que contribuem com a transformação do fazer jornalístico e que se utilizam intensamente da imagem, precedendo uma era que estava por chegar e que, em poucos anos, viria a mudar a linguagem da comunicação, através da implantação da televisão, em 1950. O Cruzeiro foi um dos primeiros impressos a implementar a reportagem e, por meio dela, deu a jornalistas o status de estrelas, como ocorreu com David Nasser, no texto, e Jean Manzon, na fotografia, os quais contaram inúmeros acontecimentos sobre os mais variados temas em grandes reportagens.

Para alcançar os propósitos do presente estudo buscamos apoio em um conjunto de leituras nas áreas do jornalismo e da história, procurando estudar a revista O Cruzeiro de ambos os pontos de vista. A análise teve como base exemplares que circulavam uma vez por semana no Brasil e no exterior, material encontrado em dois importantes arquivos do país, em Porto Alegre [3] e em Belo Horizonte. [4] Para compreender os aspectos históricos das décadas de 1920, 1930 e 1940, consultamos fontes bibliográficas de autores [5] que retratam o Brasil nesse período.

Os aspectos aqui apresentados são interpretados à luz do referencial bibliográfico, bem como dos três passos operativos neste estudo histórico-jornalístico: a heurística, a crítica e a interpretação. [6] Pela heurística, buscam-se as fontes, lança-se novo olhar, a fatos, experiências. Foi lendo, fazendo anotações, separando e fotocopiando as páginas em partes e até inteiras, além de fotografar capas, publicidades e textos.

Material esse que permitiu-nos obter uma visão mais completa das posições defendidas pela revista e da sua linha editorial, além de ter sido decisivo para o fechamento do estudo. É importante ressaltar que, muitas vezes, as páginas da revista conduziram este trabalho por caminhos que abriram novas possibilidades de estudos, além de muitas informações falarem por si, evidenciando os principais objetivos do trabalho.

A análise não se deteve apenas ao que estava explícito, mas abrangeu o oculto, o implícito nas entrelinhas, nas pistas deixadas pela própria revista em seus artigos, propagandas, editoriais, nas próprias matérias, reportagens, fotos e colunas, no período de 1928 a 1945. A linha editorial impunha posições modernas e que reforçava o nacionalismo brasileiro, esta constatação foi fortalecida por Accioly Netto, que trabalhou na revista e escreveu sobre a história e os jornalistas de O Cruzeiro. [7]

Para entender melhor o significado dessas análises procuramos explicações em Roger Chartier.

Segundo ele são leituras que exigem visíveis sinais de identificação, precisam ser decifradas, numa compreensão que exigem várias outras além daquilo que foi pretendido pelo autor [8] e que representa trazer à luz da história aqueles que ficaram fora do pensamento histórico. Para isso é preciso também compreender a epistemologia do discurso racionalista, o que para Astor Diehl, "os métodos generalistas tradicionais estão em crise, ou até mesmo, com seus dias contados." [9] Ou seja:

O mundo das experiências reconstruídas é dos fragmentos, das identidades setoriais das histórias individuais e dos individualismos. A historiografia hoje representa a história dos fracos, da fraqueza humana, dos sujos, das resistências, daqueles que foram jogados, historiograficamente, na irracionalidade. Esse fato representa um desafio ao historiador e ele não pode ficar insensível a esse fato, sobretudo, porque esse aspecto representa também a possibilidade de relacionar o espaço das experiências cotidianas com o horizonte das expectativas através do próprio conhecimento histórico. [10]

A interpretação tem como base a análise do discurso, levando em consideração a linha editorial da revista, com as suas claras pretensões de fazer do Brasil um país moderno. Era, contudo, uma modernidade nacional imposta e apoiada claramente pelo governo do presidente Getúlio Vargas, que se utilizava intensamente da propaganda, inclusive tendo criado um Departamento de Imprensa e Propaganda para se fazer aceito.

A revista contribuiu com a afirmação da política modernista e nacionalista de Vargas. Pelo entendimento histórico de O Cruzeiro, compreendemos a sua aproximação com o poder, especialmente com o governo de Getúlio Vargas. Buscamos aqui abarcar a realidade daqueles anos e o modo como as mulheres eram vistas e se viam, a fim de compreender as posições mostradas pelas colunas, ora inovadoras, ora conservadoras.

Com as condições criadas pelos projetos políticos do governo, O Cruzeiro abriu espaço para a propagação não apenas dos seus feitos, mas das convicções de também transformar o país em moderno. A partir dessa consonância de interesses entre governo e revista, divulgava-se o novo, o ideal, o moderno e buscava-se a transformação de comportamentos, sobretudo do público feminino.

Dessa forma, a revista procurava impor à sociedade e, especialmente, às mulheres novos padrões de comportamentos, através de uma infinidade de formas, como moda, roupas, eletrodomésticos, maquiagens, cinema, concursos de beleza, esporte, registros das fabulosas festas sociais, mas, sobretudo, através das novidades em vários setores.

A metodologia aplicada nesse estudo permitiu-nos a escolha das reportagens, fotos, colunas e textos para análise na pesquisa que teve por base o significado que o fato abordado continha para os leitores da revista, especialmente aqueles que pertenciam a uma camada privilegiada da sociedade.

É uma análise que pergunta à fonte os motivos pelos quais aquela publicação estaria ali, o que aquelas informações significariam para a sociedade da época, bem como para os interesses do próprio semanário, que tinha bem evidenciadas as suas preferências. Nos valemos da análise de textos, de imagens e fotografias, um conjunto de gêneros jornalísticos que expressam o imaginário feminino no magazine.

Procuramos mostrar que a revista ganhou importância no Brasil e em vários países do exterior, como Portugal, Chile, Argentina e México e teve um dos maiores índices de tiragens já registrados no país que tinha altas taxas de analfabetismo, principalmente nas décadas de 1930-1940.

O presente estudo interessa pelo fato de O Cruzeiro ter surgido num período em que existiam poucos veículos de comunicação impressos com padrões modernos e com circulação por todo o território nacional e, ainda, por alguns países da América Latina.

A revista foi referência não só pelos temas que levantava, representando, dessa forma, o pensamento da elite política, social, econômica e religiosa da época, mas também pela maneira como diagramava e editava suas páginas, tendo sido pioneira no uso do fotojornalismo.

A contribuição para com o jornalismo brasileiro

A história da imprensa brasileira se funde com a da organização econômica-política-social do país e nos remete há tempos em que o rude e o erudito se complementam. É quando temos uma comunicação permeada por processos arcaicos em seu fazer jornalístico e na mesma proporção rica em linguagem, criatividade e experiências. A revista O Cruzeiro nasceu deste paradoxo: entre o novo e o velho.

O jornalismo brasileiro havia experimentado vários modelos e formatos, mas nenhum deles foi tão expressivo para aqueles anos como a revista moderna de Assis Chateaubriand, com suas coloridas páginas e uma proposta diferenciada, a de modernização em todos os aspectos. A revista nasce se chamandO Cruzeiro e mais tarde passa a ser O Cruzeiro.

Contribuiu significativamente com a história da comunicação no Brasil, trouxe mudanças na parte gráfica, adotou técnicas pouco conhecidas no país, especialmente com a rotogravura e no fazer jornalístico, implementou a reportagem. Intencionalmente criada para ser porta-voz de uma nova ordem: a modernidade nacional, surgiu para atingir todo o território brasileiro e dar uma idéia de Brasil-único e atual, numa correspondência de intenções entre o seu fundador e proprietário, Assis Chateaubriand, e o presidente Getúlio Vargas, que, com propósitos políticos definidos, concedeu empréstimo para a criação do magazine.

Interessava, então, politicamente, a Getúlio mostrar que o Brasil estava se modernizando.

O Cruzeiro surge num período em que existiam poucos veículos de comunicação impressos com padrões modernos e com circulação por todo o território nacional e, ainda, por alguns países da América Latina. A revista foi referência não só pelos temas que levantava, representando, dessa forma, o pensamento da elite política, social, econômica e religiosa da época.

Representava a sociedade da classe dominante do Brasil daqueles anos, ou seja, políticos influentes, governos, militares, Igreja e uma boa parcela de industriais, produtores rurais e empresários, além de um grupo de intelectuais empenhados na idéia de um país moderno, entre eles Portinari, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Humberto de Campos, Austregésilo de Athayde.

Desde a sua primeira edição semanal em 10 de novembro de 1928 dedicou um amplo espaço para mostrar, escrever, anunciar, criar conceitos e ditar modas. Considerada a revista dos arranhas céus, nasceu no Rio de Janeiro e teve vários endereços: em 1931, foi instalada junto ao recém-construído prédio dos Diários Associados, na rua 13 de Maio; mais tarde, quando completou dezoito anos, mudou-se para a rua do Livramento, na Gamboa.

Nesta fase a revista vivia um dos seus melhores momentos, com uma tiragem de aproximadamente cem mil exemplares. No endereço foi erguido um moderno prédio, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, onde a revista se instalou definitivamente e permaneceu até o seu fim. Quando começou a entrar em falência, dos nove andares que ocupava, restaram para O Cruzeiro apenas três pequenas salas, o que demonstra o tamanho do endividamento do magazine, que foi consumindo o seu próprio patrimônio.

A ruína chegou definitivamente em 1974, mesmo que ainda tivesse uma boa vendagem. As dívidas levaram a revista à agonia da morte e, apesar de algumas tentativas de ressurgimento, ela sucumbiu, juntamente com outros veículos dos Diários e Emissoras Associados. Desapareceu, assim, um dos mais importantes veículos do império de comunicação brasileiro.

Além de perder parte do próprio prédio onde estava instalada na rua Livramento, "o título O Cruzeiro foi cedido a Hélio Lo Bianco, em pagamento por suas comissões atrasadas". [11] Também as máquinas, importadas por mais de dois milhões de dólares, foram vendidas "a preço de ferro-velho". "Da mesma forma, os arquivos da revista, considerados os melhores do Brasil, seguiram de caminhão para Belo Horizonte, entregues à guarda do Estado de Minas, único jornal do grupo dos Diários Associados com dinheiro suficiente para arrematá-los". [12]

É no jornal mineiro Estado de Minas que hoje se encontra o mais completo acervo da revista, na Gerência de Documentação e Informação do Sistema Estaminas de Comunicação. A incorporação da documentação da revista aconteceu em 1977 e hoje todas as páginas estão microfilmadas, além de milhares de fotos, principalmente das belas mulheres mostradas por O Cruzeiro durante a sua circulação. [13]

O Cruzeiro não apenas foi um veículo de comunicação importante no país, como foi intencionalmente criado para ser porta-voz da modernidade.

Surgiu, ainda, para atingir todo o território brasileiro e dar uma idéia de nação hegemônica. No resgate histórico que fez sobre a vida de Assis Chateaubriand, Fernando Morais conta que a utilização da revista para servir a interesses ideológicos e políticos foi muita bem pensada.

Depois de ter feito um pedido de empréstimo financeiro para comprar a revista ao então ministro da Fazenda, Getúlio Vargas, Chatô conseguiu alcançar seus propósitos de receber ajuda financeira para investir em seus meios de comunicação. A pedido de Vargas, Chatô reuniu-se com banqueiro gaúcho (compadre do ministro) e, no mesmo dia, obteve o empréstimo pleiteado. Getúlio encarregou-se de providenciar o dinheiro, valendo-se, para isso, da sua influência junto ao proprietário do Banco da Província.

De fato, a revista viria a ser, um dos veículos de comunicação mais poderosos que o país já teve, com a função de eleger e de derrubar presidentes e governos, um exemplo foi o próprio Vargas, que o magazine ajudou a levar ao poder, mas que também ajudou a depor em 1944.

Outros exemplos não faltam: O Cruzeiro e os demais meios de comunicação de Chatô foram incentivadores do golpe militar de 1964, que depôs o presidente João Goulart.

A implementação de uma nova forma de fazer jornalismo, antes nunca utilizada pela imprensa da época, valorizou a reportagem, o uso da caricatura, da pintura, da fotografia, explorada de uma nova ótica, colorida, ressaltando o fotojornalismo. Foram inovações não comuns para a imprensa da década de 1930-1940, como a diagramação mais atraente e priorizando a qualidade das fotos e dos textos, um período em que a propaganda ganhou espaços. Criativa, a revista serviu de ligação entre os interesses políticos, a elite social e religiosa e os leitores, mostrando uma mulher consumista, com hábitos modernos.

Além das colunas femininas que contribuíram para o sucesso de O Cruzeiro, destacou-se na revista a reportagem, principalmente as realizadas pela dupla David Nasser, jornalista e o francês Jean Manzon, fotógrafo. Esse nascido em Paris em 1915, trouxera muito da experiência francesa para o Brasil, tendo trabalhado, primeiramente, para o governo de Getúlio Vargas no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão executor da censura à imprensa pela ditadura do Estado Novo. Quando Manzon chegou ao Brasil, na década de 1940, a fotorreportagem era inexistente e o atraso era muito grande.

Manzon contribuiu com a implementação das reportagens fotográficas em O Cruzeiro, utilizando a sua experiência de participação em coberturas de guerras, o que modificaria por completo o jornalismo nacional. A dupla estreou em O Cruzeiro em 16 de outubro de 1943 com reportagens fabulosas e até ficcionistas. Em seu livro Cobras criadas, Luiz Maklouf Carvalho conta algumas das artimanhas utilizadas pela dupla para conseguir reportagens interessantes.

Apesar de O Cruzeiro ter inovado na cobertura jornalística com a implementação da reportagem, David Nasser e Jean Manzon, não se cansavam de inventar matérias, ou de simplesmente creditar para si informações de outros autores, ou de reproduzir notícias sem ter comparecido ao local do fato. A mais polêmica de todas foi a reportagem sobre os índios xavantes de Mato Grosso, com o título "Enfrentando os Chavantes!", do dia 24 junho de 1944, que O Cruzeiro creditou como inédita, mas não o era porque O Globo também já a havia publicado e apenas um repórter havia comparecido no local a serviço do governo.

Foram divulgadas vinte e seis fotos, segundo a revista, mostrando pela primeira vez os xavantes. Para Luiz Maklouf Carvalho: "só o fotógrafo havia feito a viagem, ainda a serviço do Estado Novo." [14] Explica que a famosa reportagem já havia saído no jornal O Globo no dia 13 de agosto de 1943, em primeira página, revelando que o coordenador da Fundação Brasil Central, João Alberto de Lins e Barros, sobrevoara a aldeia dos xavantes, fazendo um vôo de reconhecimento na região.

Esse é mais um exemplo das façanhas da dupla, que, conforme Maklouf, aconteciam numa média de quatro por mês, alcançando muitas vezes três por edição, como ele conta em Cobras criadas:

Já eram vinte e sete as reportagens feitas até ali, e mais cinco vieram entre maio e junho de 44. Uma delas, "Nas celas dos monges", é versão revisitada da pauta que Manzon havia feito para a Match. Outra, "Roteiro do Norte", é mais uma fraude com as fotografias para o DIP naquela longa viagem pelo Norte e Nordeste. "Nossos repórteres Jean Manzon e David Nasser voaram para o Norte escalando por algumas capitais", diz a apresentação. Só o fotógrafo havia feito a viagem, ainda a serviço do Estado Novo. [15]

Além da dupla David Nasser e Jean Manzon, O Cruzeiro contava com um time de cronistas, desenhistas e correspondentes nas principais cidades do mundo. A revista tratava de temas que variavam da religião à política, das amenidades às preocupações do mundo e de um país que se modificava naqueles anos de revolução e da Segunda Guerra Mundial.

Mas os assuntos abordados procuravam não ultrapassar um certo limite da "ordem social constituída", apesar de colunistas como Alceu Pena (da coluna Garotas do Alceu) mostrarem, através da sátira aos conservadores, uma nova realidade feminina, de mulheres liberadas de preconceitos, com atitudes de consumidoras.

O perfil feminino de O Cruzeiro

O magazine que priorizou as mulheres belas não contribuiu com a luta por conquistas femininas que se levantavam naqueles anos, atendendo ao clamor por igualdade de direitos, de espaços no mercado de trabalho, na própria família e nas decisões políticas do país.

O Cruzeiro não levantou as bandeiras reivindicativas das mulheres e contribuiu para sufocar as vozes femininas, não apenas daquelas, pelas quais priorizou em suas páginas, as belas, as ricas e as que a própria revista definiu como "modernas", porque se encaixavam nos padrões de comportamentos moldados pelo cinema americano, mas também das pobres e trabalhadoras, das que já eram excluídas socialmente.

Nesse contexto, a lógica do mercado industrial não podia mais restringir consumidores; era preciso avançar e atrair até mesmo quem estava fora da engrenagem social, o que justificava o estímulo às novas formas de vida e de comportamento feminino, como uma estratégia para ganhar mais consumidores. De qualquer maneira, isso significou espaços que enalteciam o imaginário feminino, sem levar em consideração o que de fato acontecia em todas as camadas sociais do país naquele momento, mas, sim, a formação de novas concepções e comportamentos que levassem a consumir.

As capas eram as vitrines. A cada edição, lindos rostos, maquiados segundo os padrões da época, enchiam as páginas em ilustrações e fotos. Rostos esses anônimos sem identificação, sem legenda. Para as damas da sociedade bastava marcar presença em eventos sociais, como bailes e salões de festas e em atividades esportivas ou beneficentes, para alcançar algum espaço em fotos ou textos.

Em média, dedicavam-se no semanário aproximadamente 50% das páginas para assuntos relativos ao imaginário feminino, que não compunha apenas um perfil feminino, mas vários perfis. Para compreender colunas como "As Garotas", "Donna", "Dona na Sociedade" e outras, além de reportagens, fotos, matérias e uma variedade de publicidades, perguntamos: como O Cruzeiro representou o imaginário feminino no período de 1928 a 1945 e como mostrou as mudanças trazidas pela modernidade brasileira nas representações simbólicas das mulheres?

Procuramos, dessa forma, entender o universo feminino brasileiro através da revista. Descobrimos que o público-leitor era de várias partes do país e até do exterior, sendo que o magazine circulava na Europa e em vários países da América Latina. Isso demonstra que a classe leitora alvo de O Cruzeiro eram as mulheres das camadas mais elevadas da população, especialmente as integrantes das famílias das classes médias e altas, da burguesia. Conforme Boris Fausto, seria a população civil urbana, que trabalha por conta própria, constituída de empresários, comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais, industriais, entre outros. [16]

Esse seria um universo da minoria da população feminina. [17]

Buscamos ainda o entendimento do universo feminino através de um perfil político da mulher representada na revista, um tema que não mencionam posições sobre reivindicações e aspirações políticas femininas, mas que cita fatos da participação das esposas dos revolucionários, por exemplo, ajudando com remédios e comidas os soldados na Revolução de 1930.

Não mostra sequer a posição feminina acerca do voto, que gerou polêmicas no período. A revista deixa transparecer uma posição clara: as mulheres são incapazes de escolher bem seus representantes, não há como conciliar a maternidade com a política. São posições defendidas em artigos masculinos, mostrando que o perfil político feminino foi construído por homens.

No entanto, o que a revista não queria perder de vista era o potencial econômico de consumo dessa importante fatia de mercado que as mulheres representavam. Essa construção da "nova" mulher excluía a realidade da maioria das brasileiras que viviam em condições sociais precárias e eram analfabetas. Ela mostrava uma imagem relacionada às mudanças de um país que despia suas mulheres das saias longas e as urbanizava com biquínis, blush e pó-de-arroz, ou seja, que buscava moldar o comportamento feminino com novas formas de vestir e de se mostrar para a sociedade.

Essa imagem que incluía a utilização da maquiagem e de produtos femininos de beleza como símbolo de moderno e novo ilustravam as capas desde a primeira edição. Apresentava-se, então, não apenas a primeira revista moderna do país, mas um novo meio de retratar o universo feminino.

Uma modernidade mascarada

Narrar aspectos sobre a história do Brasil de 1928-1945 pelo viés das páginas de O Cruzeiro, meio de comunicação que polemizou, escandalizou e emocionou o leitor brasileiro, além de ditar modas, normas e até conceitos, num período em que o país cada vez mais se urbanizava e a sociedade passava por transformações, é desafiador. A revista que divulgou as mulheres brasileiras das camadas mais privilegiadas da sociedade priorizou temas como comportamento, moda, política e possibilitou-nos uma pesquisa histórico-jornalística.

Possibilidade essa que resgata parte de uma fase da história da imprensa muito pouco considerada e explorada em pesquisas científicas, da revista que tinha uma linha editorial definida como moderna desde o seu surgimento, em 10 de novembro de 1928. Um magazine que contribui não apenas com o jornalismo, mas com a publicidade, através da propaganda de produtos que enalteciam a beleza e que reforçavam a idéia de modernidade e consumo. Dessa maneira, a revista vendia o sonho de mudanças, naqueles anos de transformação.

Observamos, então, as mudanças do país apresentadas pela revista em temas que aparecem em diversos espaços e momentos históricos do período, que se concentram mais no final da década de 1930 e início da de 1940, especialmente com a variedade de produtos de utilidade doméstica e de higiene e beleza.

Vários textos deixam transparecer as reais intenções de mostrar que a sociedade brasileira estava alcançando a modernidade através das transformações das cidades e do surgimento de uma nova forma de vida, agora mais urbanizada, moldando comportamentos.

A transformação que, apesar de ainda lenta, era vendida pela revista como uma realidade já existente. Vejamos um trecho ilustrativo do que afirmamos:

Nas cidades-crianças vivem os homens que ainda não se despenderam da terra. Cujo ser, como as raízes e as frondes, estremece ainda à pulsação profunda das energias telburicas. [...] Sob os seus monumentos gigantescos, sob as suas babéis de dezenas de andares, o homem viverá esmagado como sob escombros, diminuindo no seu destino e na significação profunda da sua existência sobre a terra. [18]

A comunicação era o primeiro passo para essa transformação social moderna; por isso, revistas como a Life e a Paris-Match foram fontes de inspiração e de informação para que O Cruzeiro adotasse padrões modernos em termos gráficos, jornalísticos ou publicitários.

A sua principal fonte de informação era o cinema americano que proporcionava lançar novas modas, uma ditadura que vinha das elegantes estrelas, principalmente da Metro-Goldwyn Mayer, além de agências cinematográficas como a Paramount. Por quase meio século, o jornalismo viu nascer, crescer e morrer uma das mais importantes revistas que o país já teve.

Nos 46 anos que circulou, inclusive no exterior, em países como Portugal, Argentina, Chile e México, a revista foi considerada a maior da América Latina, chegando a uma tiragem de setecentos mil exemplares na década de 1960, considerado o período-auge do semanário. Foi um dos periódicos que consolidou muitas práticas do jornalismo, como a grande reportagem e o fotojornalismo.

Foi ainda uma porta para o surgimento de vários nomes, principalmente na comunicação, com David Nasser, e na fotografia, com Jean Manzon, sem falar na literatura, na política e nas colunas, variadas e especializadas.

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Notas

[1] O presente trabalho, nas citações da revista preserva a grafia original da época.

[2] SERPA, Leoní. A máscara da modernidade: a mulher na revista O Cruzeiro (1928 - 1945). Passo Fundo: UPF, 2003. Resultado da dissertação de mestrado em História.

[3] Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa em Porto Alegre, onde se encontra boa parte dos exemplares da revista, de 1929 a 1973 e de 1982 a 1983, quando foi realmente extinta. MCS HJC - Rua Andradas, 959, Porto Alegre. Telefone: (51) 322 44252. O Cruzeiro circulou de dezembro de 1928 a 1974. Um dos livros que contam um pouco da sua história é O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro, de Accioly Neto, organizado por Heloísa Seixas. A revista era vinculada aos Diários Associados, de Assis Chateaubriand (ver maiores informações no site <www.igutenberg.org/Biblio24.html>. Baseamo-nos ainda nas obras de Fernando Morais, Chatô o rei do Brasil,e de Luiz Maklouf Carvalho, Cobras criadas, autores que resgatam historicamente a trajetória da revista, do maior empresário de comunicação no período e de personagens como David Nasser e Jean Manzon, uma dupla de jornalistas muito conhecida do país de 1930-1970.

[4] Gerência de Documentação e Informação do Sistema Estaminas de Comunicação (Gedoc), junto ao jornal Estado de Minas - Área de Documentação e Informação - Avenida Mem de Sá, Santa Efigênia, Belo Horizonte, Minas Gerais. No local encontra-se a coleção completa da revista desde o seu primeiro exemplar. O material disponível para pesquisa é microfilmado.

[5] Principalmente tendo como base autores: Boris Fausto e Thomas Skidmore, entre outros.

[6] DIEHL, Astor Antônio. Do método histórico. 2. ed. Passo Fundo: UPF, 2001. p. 35.

[7] NETTO, Accioly. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina,1998. E ainda em Chatô o rei do Brasil, de Fernando Morais, e Cobras criadas, de Luiz Maklouf Carvalho.

[8] CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difek/ Bertrand Brasil, 1990. p. 130-131.

[9] DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc, 2002. p. 203.

[10] Idem, p. 203-204.

[11] NETTO, 1998, p.164.

[12] NETTO, 1998 p.164.

[13] SERPA, Leoní. A máscara da modernidade: a mulher na revista O Cruzeiro (1928 - 1945). Passo Fundo: UPF, 2003.

[14] CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Senac, 2001. p. 109.

[15] Ibid.

[16] FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 54.

[17] Para termos uma idéia do percentual da população trabalhadora, observamos os índices de mulheres que representavam a força feminina de trabalho em 1940, que chegava a 2,8 milhões para uma população que passava de quarenta milhões de pessoas. Um percentual de apenas 19% das mulheres em atividades no país estava concentrado no setor terciário, em atividades ligadas à educação, a serviços de saúde, serviços domésticos e comunitários, um índice que representa uma minoria já que a população feminina do Brasil nesse período era de 20.622.227 e de 20.614.088 homens. Até a década de 1930, por causa da imigração, a população masculina era maior que a feminina. Em 1872, no primeiro censo, 51,5% eram homens e 48,5%, mulheres; na década de 1940, a população feminina começou a predominar. A PARTICIPAÇÃO da mulher no mercado de trabalho no Brasil. Disponível em: <http://www.frigoletto.com.br/geopop/mulher.html>. Acesso em: 25 mar. 2003.

[18] O Cruzeiro, 7 set. 1929. p. 2. É possível que expresse a opinião da revista pelo fato de estar em página nobre, abaixo do expediente, como um editorial.


*Leoní Serpa é mestre em história e jornalista, professora de jornalismo e publicidade e propaganda na Faculdade de Pato Branco (FADEP), em Pato Branco/PR. E-mail: leo_niserpa@hotmail.com.

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