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Minha
Alma
Rap, realismo e reportagem no videoclipe
Por
Luiza
Lusvarghi*
O
presente trabalho tem por objetivo introduzir uma discussão
sobre as relações entre o realismo no telejornalismo,
no cinema, no videoclipe, a partir do videoclipe brasileiro
"Minha Alma", do grupo musical O Rappa, produzido
pela Videofilmes em 2000, dirigido por Kátia Lund
e Breno Silveira, com roteiro do escritor Paulo Lins (Cidade
de Deus).
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Reprodução
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Por
realismo, será adotado aqui o conceito genérico
expresso pelo crítico francês Andrés Bazin
em seus escritos sobre O Cinema, como "todo sistema de
expressão, todo procedimento de relato propenso a fazer
aparecer mais realidade na tela".
A
aplicabilidade desse conceito, entretanto, às imagens
em vídeo, implicam uma a realidade que pode ser construída.
A palavra latina fictione, da qual se origina ficção,
não quer dizer necessariamente fingimento, e sim criação,
invenção, a coisa imaginária. A possibilidade
de criação no vídeo, a partir da ampliação
das possibilidades de edição das imagens na pós-produção
que a tecnologia digital permite hoje permitem aos clipes de
rap se instituir como uma mídia privilegiada da realidade
que os noticiários de televisão evitam.
Na
televisão, a vida das favelas e excluídos é
retratada pelo jornalismo em dramatizações superproduzidas,
como "Linha Direta", da Rede Globo, ou em programas
sensacionalistas como "Cidade Alerta", "Aqui,
Agora", em que cenas cruas são utilizadas para despertar
sentimentos de piedade. Para muitos rappers brasileiros, e latinos,
videoclipes, são hoje, como define o Sabotage em "Cronistas
do Gueto" - documentário produzido por Eduardo Benaim
- a verdadeira reportagem. As imagens digitais podem ser captadas
mais rapidamente, sem a necessidade de grandes aparatos, som
ambiente, conferindo uma naturalidade ao material e uma atualidade
ímpar. Soma-se a isso a qualidade cada vez maior dessa
imagem em vídeo.
No
cinema, desde a década de 70, o surgimento do vídeo
como linguagem narrativa está associado à contra-informação
da TV. Cineastas como Antonioni e Coppola vão fazer uso
dessa nova tecnologia em alguns de seus trabalhos, mas é
com Jean-Luc Goddard que o vídeo ganha destaque, sobretudo
em trabalhos onde ele mescla película e vídeo.
A espessura da imagem videográfica permite que ela seja
trabalhada de várias formas, diferente da película.
O
encadeamento dessas imagens a serviço de uma canção,
certamente, como ocorre Em um videoclipe, possui uma conotação
muito diferente de um documentário. A realidade no videoclipe
é emblemática do real, e nem se propõe
a substituí-lo. Sua atualidade e a forma quase casual
com que elas se associam, entretanto, conferem a esse material
uma capacidade de comunicação que o jornalismo
"oficial" das redes, que poderia fazer uso da mesma
tecnologia, ignora completamente.
Para
boa parte do público, e alguns pesquisadores, videoclipes
e MTV são praticamente sinônimos. A MTV Networks,
criada em 1981 pela Amex Satellite Entertainement Company, uma
subsidiária da Warner, começou suas exibições
nos EUA exibindo videoclipes, que eram cedidos gratuitamente
pelas gravadoras e serviam para divulgar os grupos de rock,
a música popular anglo-saxônica, baratear o custo
de divulgações, excursões musicais e testar
produtos. Isso contribuiu para associar o formato à publicidade
dos CD's, e aos grupos musicais. Mas logo cineastas conhecidos
por seus trabalhos experimentais começaram a produzir
vídeos para gravadoras e artistas.
A
MTV, que pertence desde 1985 à Viacom, chegou ao Brasil
em uma joint venture com o Grupo Abril em 1990. Os 20 primeiros
videoclipes da emissora, com astros como Marina, foram produzidos
pela Abril em parceria com a MTV americana e refletiam a mesma
tendência americana, ainda que produzidos pelas grandes
produtoras do cinema nacional como Conspiração,
Videofilmes e 02.
Foram
sobretudo os grupos de rap mais engajados ao movimento hip hop
que começaram a utilizar o videoclipe como instrumento
político de caráter social, normalmente dirigidos
por jovens videomakers e cineastas.
Exemplos
são os trabalhos, "Vai Explodir", faixa de
trabalho do quarto CD do Pavilhão 9, "Se Deus Vier,
que Venha Armado", da Paradoxx, sobre a tensão existente
nos presídios e rebeliões, e "Isto aqui é
uma guerra", do grupo Facção Central, com
os integrantes do grupo protagonizando cenas de assassinatos
e assaltos a caixas eletrônicos, e que foi suspenso por
ser visto pela Justiça como incitamento ao crime.
A
preocupação com a violência e as questões
sociais é uma das principais bandeiras do grupo O Rappa,
expressa nas letras, nos shows e no site oficial da banda. "Paz
sem voz não é paz, é medo", diz a
letra de Marcelo Yuka para a canção "Minha
Alma (A Paz que Eu Não Quero)". O videoclipe dessa
canção, mostrando a violência policial em
favelas cariocas, recebeu seis prêmios neste ano.
O
Rappa foi criado em 1993 e já lançou três
discos, com melodias que misturam rap, reggae, hip hop e rock.
Cinco por cento de seus lucros com o último disco, "Lado
B, Lado A", foram destinados ao projeto "Na Palma
da Mão", de auxílio a jovens em situações
de risco.
No
início de dezembro, o baterista da banda e autor da maioria
das letras, Marcelo Yuka, foi protagonista de um episódio
de violência na vida real.
Foi
baleado ao tentar livrar uma jovem de tentativa de assalto e
corre o risco de ficar tetraplégico.
Roteiro, produção e edição
O
videoclipe "Minha Alma" foi realizado no Morro do
Macaco, em Vila Isabel, em setembro de 1999. A edição
do vídeo segue o padrão consagrado pela MTV -
cortes rápidos e randômicos e até mesmo
uso de zoom simplesmente para "acelerar" um movimento
que se daria normalmente num plano seqüência simples.
O corte rápido dos clipes busca traduzir em imagem a
batida musical, com efeitos de cor e tratamento muitas vezes
experimental da fotografia, com o uso de técnicas originadas
do cinema.
Esse
tipo de edição, onde os cortes brincam com a idéia
de movimento, está presente ainda no próprio estilo
de reportagem da MTV, que consagrou um jornalismo calcado na
figura do produtor, eliminando a figura do repórter.
A câmera-olho é o repórter e a edição
dá ao entrevistado uma fala-reportagem, em tom confessional,
naturalista e coloquial, transformando-o em personagem, e resultando
num jornalismo de ritmo interessante, diferenciado e também
mais barato. Essa técnica imprime um caráter narrativo
documental à notícia, razão pela qual muitos
telejornais tradicionais adotam parcialmente o modelo, quando
querem imprimir um tom mais realista e imparcial a um fato.
O
clipe "Minha Alma" conta uma história que não
necessariamente reflete a letra mas sua temática - o
personagem é um garotinho, o Gigante, que está
com seu irmão e seus amigos discutindo o que vão
fazer naquele dia. A idéia do roteiro nasceu de Yuka,
o baterista do grupo Rappa, que tinha assistido a Notícias
de uma guerra particular o documentário sobre o tráfico
nas favelas cariocas, de Kátia Lund e João Moreira
Salles. Yuka encomendou à Kátia um clipe naquele
estilo, mas a diretora achou fundamental introduzir o olhar
da criança, o ponto de vista do personagem infantil.
O
garoto que fez o personagem Gigante, que norteia o clipe, é
morador do morro, nunca tinha feito nada. Kátia prefere
trabalhar dessa forma, em Palace2, inspirado no livro Cidade
de Deus, de Paulo Lins, da série televisiva "Brava
Gente", e no longa Cidade de Deus, ela também optou
por trabalhar com pessoas comuns, do morro.
Na
seqüência inicial do clipe, a galera se reúne
rapidamente e decide descer o morro para passear pelo centro
da cidade. Uma imagem rápida mostra um comerciante preocupado,
ao telefone, presumivelmente chamando a polícia. Os garotos
pedem dinheiro para comprar um frango na brasa, que é
vendido na rua. Um rapaz aproxima-se, pede um frango, e ao pagar,
deixa cair uma nota. O irmão do Gigante abaixa-se para
pegar a nota e devolvê-la ao rapaz, mas é confundido
com um ladrão. A polícia intervém com violência,
o irmão do Gigante é surrado, preso e executado
debaixo de um carro. Segue-se ao ato uma revolta com a reação
dos amigos do garoto executado, que termina com os policiais
invadindo a favela e tiroteio.
No
final, as vítimas do tumulto, todas moradoras da favela,
são colocadas num camburão.
Há
dois momentos em que a câmera se detém nos personagens,
permitindo uma rápida identificação. A
primeira ocorre no início do clipe, quando os garotos
são introduzidos um a um e começam a conversar
sobre o que pretendem fazer. A segunda é a cena final,
com a câmera em plongué, focalizando Gigante, o
personagem principal do vídeo, um garoto de quatro anos,
perplexo diante dos carros incendiados e da morte do irmão.
A primeira cena é feita com som ambiente, a segunda é
muda.
Na cena de abertura, os rapazes mais velhos perguntam ao Gigante,
o que ele quer fazer. "Ir pra praia", responde. Todo
mundo ri e sai andando em direção à cidade,
descendo o morro. Só então, a música começa,
e com ela uma profusão de imagens trepidantes que não
permitem ao olhar deter-se em nada.
Os
cortes não visam apenas acompanhar o ritmo da música
e sim desestabilizar o espectador, que passa a sentir a mesma
insegurança do garotinho que é personagem principal,
mas que não determina o campo de visão. O vídeo
funciona com uma introdução ao mundo da favela,
com planos médios, a maior parte do tempo, e closes apresentando
os moradores: os músicos, os policiais, as mulheres,
o comerciante.
O
fato da ação não acompanhar um único
personagem, exceto pelo garotinho, é inusitado num clipe,
que normalmente tem a função de mostrar o artista,
e, caso tenha uma história, destacar o personagem, muitas
vezes em longos planos seqüências. Os rappers norte-americanos
são extremamente exibicionistas, e sempre são
os principais personagens de seus clipes, como se pode observar
pelos clipes de Eminem e de Ice-T, que acabou tornando-se ator
de cinema.
Enquanto
temática e abordagem, o videoclube "Minha Alma"
dialoga com a televisão, a quem a letra faz referência
- "procurando novas drogas de aluguel nesse vídeo
coagido" - e mais precisamente, da reportagem, homenageada
pela opção em filmar em branco e preto e ao final,
com a utilização de um filtro azulado que relembra
a coloração das imagens das televisões
antigas.
Lund,
entretanto, situa sua escolha pelo PB como referência
ao caráter documental, o que a levou a optar pela montagem
na Vídeo Filmes, mais habituada a esse tipo de linguagem
e, como ela, sem nenhuma experiência anterior com clipes.
A idéia do PB, segundo Lund, era para dar a idéia
do "xerox", trazer "imagens sujas", desglamurizar
a violência.
Para
ela, colocar as imagens em cores seria reforçar o sentido
de espetacularização da notícia que a TV
imprime. Antes da imagem em PB, que é a cor original,
foi feita uma cópia em cores, a partir de um processo
chamado de telecinagem, que resultou num colorido de intensa
cor vermelha.
As
duas cópias chegaram a ir ao ar, mas a decisão
unânime da MTV, da audiência, do grupo e da equipe
pendeu para a cópia PB. O interessante nesse tipo de
procedimento é constatar que "o realismo",
a "objetividade" são buscadas em processos
técnicos refinados, e de que forma as novas tecnologias
concorrem para chegar ao resultado desejado. O branco e preto
significa despojamento em contraposição ao colorido,
teoricamente mais próximo do mundo real, que lembra Hollywood.
Os
atores foram escolhidos dentre moradores da favela, meninos
de rua (caso da vítima no clipe) e integrantes do grupo
"Nós do Morro", da favela do Vidigal. Os integrantes
do conjunto participam como figurantes, são enfocados
em planos médios e closes nas cenas em que os meninos
passeiam pela cidade. Ao optar pela inclusão de atores
não profissionais, o vídeo filia-se a uma corrente
de filmes que transitam nos limites entre ficção
e documentário, que ficou conhecida como cinema verdade,
o que resulta numa estrutura dramatúrgica simplória,
praticamente improvisada.
Videoclipes
não têm roteiro estruturado, são na realidade
uma série de situações, que se entrelaçam
de forma absolutamente conceitual. O Rappa não queria
um clipe que ficasse mostrando a banda, a exemplo dos clipes
estrangeiros, como pop star. Seus dois primeiros clipes, foram
produzidos pela gravadora Warner, e eles odiaram. De acordo
com a diretora, os baixos custos de um clipe no Brasil, cerca
de um milhão e meio, asseguram às bandas mais
liberdade de criação, o que no caso de um grupo
como o Rappa e da diretora Kátia Lund significou colocar
a forma a serviço de uma idéia.
Realidade X Ficção
No
sentido de documental, apesar da estética videoclipe,
Minha Alma, é a antireportagem que se vê atualmente
nas telas da tevê brasileira - seus personagens são
excluídos do convívio social, falam uma linguagem
permeada de muita gíria, que poucos entendem, mereceria
ser legendada, mas não existe uma preocupação
a esse respeito.
As
cenas de confronto entre moradores e policiais, que culminam
com a execução do irmão do Gigante, tampouco
costumam freqüentar noticiários mais tradicionais
como o Jornal Nacional. E muito menos os programas de "tempo
real", como Survivor, No Limite e Big Brother Brasil, autênticos
espetáculos de bisbilhotagem eletrônica onde a
vida real é totalmente editada para agradar à
audiência. É daí, provavelmente, que o clipe
extrai seu vigor e produz mais impacto.
Feito
exclusivamente para passar na TV, as imagens de Minha Alma estão
voltadas para o aqui, agora, ou seja, são para consumo
imediato do público da telinha e, a exemplo de outras
peças exibidas dentro do veículo que a consagrou
para o grande público, não se preocupam muito
em contextualizar, mas apenas em chocar e chamar atenção
no curto espaço de cinco minutos.
Apesar
de flertar com o cinema documental e com a reportagem, o clipe
não se desculpa por ser apenas uma "peça
publicitária", fato que também não
é negado pelos pesquisadores, mesmo aqueles que consideram
a videomúsica uma categoria artística específica,
como a videoarte.
Lund,
que se surpreendeu com a repercussão do trabalho, considera
o clipe um acessório na venda dos CD's, mas nada impede
que ele seja utilizado para passar outros conteúdos.
Para
a ensaísta norte-americana E. Ann Kaplan, autora do livro
"Rocking Around The Clock", a MTV e os clipes exemplificam
o pós-modernismo pela emergência de uma consciência
descentralizada que embota as categorias tradicionais e questiona
instituições estabelecidas. Ao incorporar materiais
das mais diversas fontes e períodos históricos,
num pastiche caleidoscópico sem o reconhecimento da origem
deste material, a linguagem dos clipes e da própria MTV
repudia concepções lineares de história,
rejeitando as distinções convencionais de passado,
presente e futuro, e atuando num presente atemporal.
A
representação roqueira que a MTV faz de si mesma,
colocando no ar a mais ampla diversidade de imagens em ritmo
frenético, linguagem que caracteriza boa parte dos videoclipes
que eles exibem, estariam portanto contribuindo para a experiência
descentralizadora do telespectador.
Segundo
o crítico francês Andrés Bazin, em seus
ensaios sobre o cinema realista de libertação
italiano, o cinema, pela sua própria natureza, seria
o meio de expressão que substitui a pintura e a fotografia
na reprodução da realidade, deixando a esses campos
de expressão uma maior liberdade.
Modernamente,
pode-se dizer que a televisão e o vídeo são
os representantes mais próximos do real no imaginário
das pessoas. Algumas técnicas importantes que Bazin levantava
com relação ao cinema realista neo-realista italiano,
encontram-se atualmente nas telas da televisão.
A verdade e a violência nas imagens
Para
Bazin, as características principais da escola realista
italiana, que inspirou alguns realizadores do Cinema Novo no
Brasil, estavam no enfoque dado às personagens dramáticas,
na utilização de luz natural, decorrente da opção
pela filmagem de cenários reais em contraposição
a um modelo de cinema norte-americano produzido em estúdios,
e a reconstituição da realidade a partir de uma
narrativa não-linear.
A
ação, na decupagem clássica, encarnada
por Griffith, representaria a realidade em planos sucessivos,
constituindo-se na verdade em uma seqüência de pontos
de vista, lógicos ou subjetivos, sobre um acontecimento.
Os filmes realistas italianos recusavam essa proposta, o que
contribuiria para fazer desses filmes obras mais abertas, integrando
o espectador à ação.
A
temática privilegia a denúncia social e o realismo,
recusando muitas vezes o trabalho com atores profissionais,
a elaboração dos cenários e colocando em
cena personagens frágeis, do ponto de vista da dramaturgia,
quase piegas, uma fragilidade no entanto superada pelo que ele
chama de "verdade do ator". Todas essas características
estariam vinculadas a um certo caráter documental e de
reportagem comum a esses filmes, que têm como grande modelo
Paisá, de Roberto Rosselini.
É
interessante observar como todas essas características
realistas atribuídas ao cinema italiano passaram de algum
modo a influenciar o modo de fazer cinema, na atualidade, de
cineastas com as mais diferentes propostas (De Werner Herzog,
em Fitzcarraldo, a Hector Babenco, em Pixote), o modo de realizar
documentários e até mesmo o conceito de reportagem,
que atualmente incorpora o documental e lança mão
inclusive da teatralização do acontecimento para
narrar um caso. O termo personagem está definitivamente
incorporado ao vocabulário de muitas redações,
no próprio telejornalismo e nem sempre para tratar de
questões de cunho social.
Alguns
desses conceitos, como a questão da temática,
da verdade do ator, e da utilização de cenários
naturais estão presentes no videoclipe Minha Alma, que
paradoxalmente, no aspecto da montagem, representa o que há
de mais elaborado em termos tecnológicos, mas saber extrair
dessa tensão cenas de impacto ao colocar personagens
e cenas que não são usualmente colocadas na telinha.
Para
o cineasta e antropólogo francês Jean Rouch, considerado
um dos precursores do cinema-verdade, a questão do real
não trata da verdade no cinema, mas da verdade do cinema.
E o cinema tem uma verdade que não se pode deixar de
lado. Segundo Rouch, um filme não se escreve, um filme
é para ser visto e ouvido. Graduado em 1953, pela Sorbonne,
ele logo abandonou os estudos formais de antropologia para incursionar
pela África, imbuído do espírito definido
por nossos cineastas de uma câmera na mão e uma
idéia na cabeça - ele simplesmente ia filmando
o que encontrava pela frente, de caçadas a rituais e
festas.
Todas
essas idéias foram beneficiadas pela tecnologia, com
o surgimento de câmeras portáteis que permitiam
captar o som direto, como a Nagra. Em um de seus experimentos,
ele reuniu jovens imigrantes do interior da África que
ficavam pelas capitais vagando, sem emprego, e deu-lhes uma
câmera para que realizassem seu filme. O resultado foi
Moi, um Noir, exibido na Mostra de Cinema Internacional de São
Paulo deste ano, onde um desses jovens personagens interpreta
a si mesmo e realiza um de seus sonhos, o de ser pugilista.
Os
filmes de Rouch fogem completamente da idéia de narrativa
documental tradicional, sem se preocupar em dar referências
exatas sobre os locais onde estão ocorrendo as filmagens,
por exemplo, e deixando os personagens-entrevistados trafegarem
livremente pela tela. Para Rouch, portanto, a idéia de
dar referências históricas do material exibido
não é relevante, como ocorre também em
muitos videoclipes e na própria MTV.
Muitos
cineastas brasileiros e o movimento Cinema Novo foram influenciados
por Rouch, que esteve no Brasil em 1965. É o caso de
Jorge Bodansky (Iracema, uma transamazônica) e Geraldo
Sarno (Viramundo, Subterrâneos do Futebol).
A
psicanalista Maria Rita Khel, em seu artigo "Televisão
e violência do imaginário" defende um ponto
de vista mais radical sobre as imagens na televisão e
a realidade. Segundo ela, nas sociedades de massa, o Outro -
aqui introduzido em sua dimensão psicanalítica
- estaria encarnado nessa produção imaginária
da qual a televisão é o próprio veículo.
Onipresente,
onisciente, onipotente, como Deus, a TV está em todos
os lares, saguões de aeroportos, bares, é ela
o nosso Grande Irmão, ao qual se referia George Orwell.
Mas ela não está nos vigiando, e sim propondo
coisas, o tempo todo, numa oferta incessante de tudo - viagens,
comida, corpos.
Para
que o desejo seja despertado, é necessário que
em algum momento ele nos seja negado por esse Outro, que para
o bebê é a mãe. Quando o Outro está
representado num objeto da cultura que é saber e satisfação
dos desejos ao mesmo tempo, que nos exime da frustração
de não ter, ficamos "perigosamente ancorados no
eu imaginário e submetidos à violência própria
das formações imaginárias".
Então
a violência e a agressividade podem se reproduzir como
resposta a essa ameaça que o Outro representa, pois a
falta se torna intolerável. Dentro dessa perspectiva,
tanto faz a imagem de uma velhinha fazendo tricô quanto
um policial baleando um adolescente negro debaixo de um carro
- todas incitam à violência e à indiferença
diante da tragédia alheia.
Parte
da solução seria não ter mais uma caixa
de imagens como a única fonte de prazer, um problema
de países como o Brasil, onde a maioria da população
não tem recursos sequer para assistir a um show.
A
explicação, entretanto, não dá conta
do fenômeno da utilização do videoclipe
para chocar, que não é patrimônio exclusivo
da realidade nacional. No exterior, vídeos, música
pop e horror dialogam o tempo todo, bastar ver o exemplo de
Rock DJ, do cantor inglês Robin Williams, em que ele aparece
literalmente sendo comido por jovens dançarinos e Outside,
de George Michael, em que o cantor vinga-se do episódio
de que foi vítima na vida real, ao ser preso em um banheiro
de aeroporto por "ato obsceno", fazendo uma cena de
amor entre ele e um policial. Sem falar na material girl Madonna,
cuja persona artística foi praticamente construída
a partir dos vídeos, sempre preocupada em desafiar padrões
de comportamento para melhor vender sua música.
A
tentativa de subverter formas, partindo de um formato originalmente
ligado à publicidade para questionar padrões de
justiça e comportamento, entretanto, é universal.
O que é diferente, sem dúvida, no caso brasileiro,
é a questão de denúncia social contra a
violência, que é deslocada do lugar onde deveria
estar mas que lhe é negado, o da reportagem, para ocupar
espaço numa mídia que serve de apoio à
indústria fonográfica, vendendo produtos associados
a um estilo de vida que ela procura criticar.
Referências
bibliográficas
BANKS,
Jack. Monopoly television, MTV´s Quest to control the
music, Jack Banks, Westview Press, 1996.
BAZIN,
André. O Cinema, ensaios, Editora Brasiliense, 1991.
CLÁUDIO,
Ivan. Máquina de escândalos, de matéria
publicada na revista IstoÉ de 02.08.2000.
E.
Ann Kaplan. Rocking Around the Clock, New York, Methuen, 1987.
KEHL,
Maria Rita. Televisão e violência do imaginário,
da coletânea A TV aos 50, Editora Fundação
Perseu Abramo, 2000.
MOURÃO,
Maria Dora G. Reflexões sobre o cinema e o movimento
das novas tecnologias, tese livre docência, 1998.
Vídeos
Minha
Alma, clipe de O Rappa, setembro de 2000, produção
da Vídeo Filmes, de Katia Lund e Breno Silveira.
Jean
Rouch, subvertendo fronteiras - produzido pelo Lisa, Laboratório
de Imagem e Som da Antropologia, apoio Fapesp/USP.
Cronistas
do Gueto, de Eduardo Benaim e Ricardo Hector, da Check Produções,
2003.
*Luiza
Lusvarghi é jornalista.
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