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Artigos

Jornalismo e apreciação de arte
O jornalismo e a crítica da Semana de 22

Por Claudia Cruz de Souza*

A Semana de Arte Moderna no Brasil, um dos eventos mais importantes para a cultura nacional, aconteceu nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. O movimento foi um marco importante no século XX, pois originou a modernização das artes, da imprensa e da cultura, sendo referência estética e cultural até os dias de hoje.

O modernismo brasileiro não nasce com o nome de 'Moderno'. Seu primeiro nome, futurismo paulista, dado por Oswald foi confundido com o futurismo italiano.

Reprodução

No entanto, nada tinham em comum, pois o paulista tinha como significado somente a 'tendência para o futuro', diferentemente do italiano que já era uma movimento que estava em pleno acontecimento na Itália.

A Semana de Arte Moderna foi o momento da festa de apresentação pública do movimento que já tinha nascido por volta de 1917, com a exposição de Anita Malfatti e critica por espectadores e pelo crítico Monteiro Lobato, e só se consolidou efetivamente após 1929, quando os grupos pós semana começaram a se formar e proliferar o pensamento modernista.

Para fazer a abertura do evento no Teatro Municipal paulista foi convidado Monteiro Lobato, que não aceitou o convite, alegando motivos pessoais, dando lugar ao carioca Graça Aranha, que aceitou de pronto, pois tinha interesses culturais e particulares em São Paulo.

Todo esse movimento e os acontecimentos em torno da semana serviram para afirmar e consolidar os objetivos da Semana, que eram transformar o Brasil em um país independente na sua criação e produção artística, além de livrá-lo da influência social e da herança cultural européias, criando assim a Renascença Paulista.

A imprensa

Durante todo esse processo de modernização cultural e artística nacional, não poderíamos deixar de destacar uma classe que tem um papel fundamental na formação de opinião da sociedade: a imprensa. O perfil da imprensa desse período, no Brasil, era muito diferente do que se conhece hoje.

Jornais, revistas, cinema e folhetins eram os únicos meios de comunicação para que a população pudesse se inteirar com as notícias do mundo todo. O rádio surgiria no final do ano de 1922, ainda com uma transmissão e programações bastante precárias, e a televisão somente 30 anos depois.

Os jornais, revistas e folhetins tinham linguagem bastante conservadora e davam bastante destaque aos acontecimentos internacionais. O conservadorismo estava presente até no projeto gráfico das publicações, que eram bastante blocadas e com uma grande massa de texto, que estavam mais próximos da literatura do que da imprensa que entendemos.

O perfil do leitor era definido por sua classe social, já que as classes mais pobres tinham alto grau de analfabetismo e ainda amargavam uma pobreza da mesma escala.

Esse conservadorismo exacerbado foi um entrave para que o modernismo paulista fosse divulgado e acompanhado por mais pessoas. Dentro da própria imprensa se tem distinções de todos os tipos. Mais especificamente sobre 22, a imprensa não estava de acordo com o que estava acontecendo. Cada veículo relatou o fato de maneira que melhor lhe convinha.

Dentro desse quadro podemos analisar dois ângulos de visão da imprensa sobre a Semana de Arte Moderna. A primeira visão era extremamente positiva, pois conhecia o projeto de tornar o Brasil um país independente da cultura européia e apoiava essa primeira tentativa.

A segunda encarou a Semana de uma forma bastante negativa, por ser formada por um grupo social bastante conservador, que antes mesmo de conhecer a proposta que os Modernistas traziam, já rotulavam-na como ruim. Ainda devemos destacar uma outra parcela da imprensa que simplesmente não formou sua visão sobre o modernismo, pois fechou os olhos e fingiu que nada estava acontecendo.

Mas este posicionamento era creditado a uma imprensa nada imparcial, que conduzia as posições da sociedade. Apesar de tudo, foi esta imprensa a responsável por registrar o grau de preconceito, ingenuidade e provincianismo que regiam os debates por toda parte da cidade; em contraponto, mostrou que graças aquele pequeno grupo que quis romper com o conservadorismo foi possível o Brasil produzir arte própria.

Citamos aqui alguns poucos veículos de comunicação que circulavam na época como: O Estado de SP (imparcial); Klaxon (maio de 1922 - repercussão); A Garoa; O Mundo Literário; A Gazeta Il Piccolo (internacional); Jornal do Commercio; A Cigarra; Correio Paulistano; Folha da Noite; Fanfulla; A Vila Moderna; Le Messager de São Paulo; Vida Paulista; A Careta (RJ) - contra; Revista do Brasil (RJ) - somente em 1924. As revistas Fon Fon, Revista do Brasil e O Malho não cobriram o movimento, pois achavam que seria mais uma bagunça dos 'almofadinhas' da época.

Antes de 1922

Em 1917, Monteiro Lobato faz a primeira grande crítica à exposição de Anita Malfatti, na cidade de São Paulo, gerando um grande mal estar entre a sociedade e formando uma opinião coletiva bastante distorcida do trabalho da pintora e dos modernistas, que já vinham se movimentando em torno das modificações na arte brasileira.

Nesta época, chegou a se falar que Anita, apesar de ter estudado tanto nos Estados Unidos como na Europa, não tinha noções de cor, forma e perspectiva, pois apresentava uma representação artística diferente da que a arte clássica brasileira produzia.

Durante os quase cinco anos que se seguiram até a Semana de Arte Moderna foram feitos muitos outros artigos pelos pensadores do movimento, Oswald e Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Hélios e outros, e esses espaços jornalísticos serviam de arena para as discussões entre os dois lados. Todas as acusações, as defesas e os julgamentos eram feitos nas páginas dos jornais e revistas que circulavam.

Como grande opositores destaca-se o veemente Cândido (pseudônimo do jornalista Galeão Coutinho - redator chefe de A Gazeta -, que debochou e diminuiu a importância da Semana pela proximidade do Carnaval); Plínio Salgado, que dizia querer pensar sozinho, mas que se colocava hora contra o movimento e hora a favor, mais tarde se tornando integralista; e Mário Pinto Serva, servindo esses três nomes como uma pequena amostra do que se vivia na oposição ao movimento.

A Semana aconteceu em 1922 propositalmente, pois aproveitariam a oportunidade para comemorar o primeiro centenário de Independência política do País, e em alusão ao acontecimento criar também uma data para a Independência Artística.

Existem muitas dúvidas sobre o movimento, no entanto, há documentos valiosos escondidos em muitos arquivos, muitos deles de propriedade das famílias dos artistas, que podem nos contar detalhes desse período histórico nacional, desvendando muitos mistérios, quebrando tabus e quem sabe responsáveis por rescrever um momento histórico nacional de tamanha importância.

Mesmo antes da Semana, Oswald já sabia que as apresentações seriam um estardalhaço, mas tinha consciência de que era necessário e já sonhava com a calmaria que iria começar somente por volta de 1924, quando o movimento realmente passou a ser entendido e aceito pela sociedade paulista.

As críticas, as vaias e a chuva de batatas (em alusão aos legumes e frutas que realmente foram atirados no palco durante algumas apresentações modernistas no Teatro Municipal) recebidas por todos os participantes da semana já estavam sendo esquecidas, mas na memória de quem esteve lá os acontecimentos estavam ainda frescos, como afirmaria Menotti anos mais tarde: "tratam-nos como criminosos, como réus, como se tivéssemos feito algo de errado com aquele barulho todo".

Um pequena amostra

Alguns artigos publicados em jornais podem mostrar claramente esses posicionamentos tomados pela imprensa.

A favor da Semana estiveram jornais como Jornal do Commercio, Correio Paulistano e A Garoa. Em um dos artigos de Oswald de Andrade - Boxeurs na Arena, de 13 de fevereiro de 1922 -podemos perceber como ele se posicionava e como sabia, de antemão, tudo o que poderia acontecer no Teatro Municipal paulista. "...Nós, pelo acolhimento da platéia de hoje, julgaremos da cultura de nosso povo. Pois, sabemos, com Jean Cocteau, que quando uma obra de arte parece avançada sobre o seu tempo, ele é que de fato anda atrasado", escreveu Oswald.

Assim também se posicionou Héios em dois artigos escrito 'A Segunda Batalha', sobre o segundo dia de apresentações, que contava como correu a primeira noite da Semana e suas expectativas para o segundo dia da "Batalha", que São Paulo testemunharia, e 'O Combate', no qual ressalta o interesse da sociedade em ver o que acontecia no Municipal e ainda a guerra e a glória da noite anterior, onde muitos aplaudiram Guiomar Novais por achar que ela tocava música clássica, no entanto muitos outros aplaudiram entendendo que a arte nova estava ali.

Mas nem tudo eram flores para os modernistas.

Muitos artigos contrários às apresentações, e principalmente às intenções da Semana, foram escritos e publicados em jornais como Folha da Noite e A Gazeta.

Um artigo que mostra esse combate ao modernismo foi escrito por O 3º Andrade (pseudônimo, como muitos desconhecidos o verdadeiro nome).

"Apregoa-se por aí que os gênios podem criar as belas-artes sem os estudos dos conservatórios como se as artes, para chegar ao seu apogeu, não precisassem de alguns que lhes esclarecessem os conhecimentos de sua estrutura!... Os revolucionários de hoje dizem: clássico é o que atinge a perfeição de um momento humano e o universaliza. Acadêmico, não. É cópia, é imitação, é falta de personalidade e de força própria...", escreveu em 'Os Futuristas e a Personalidade", de 15 de fevereiro de 1922.

Sérgio Milliet, o crítico de Arte

Diante do quadro já exposto sobre a Semana de 22, também temos que destacar a crítica feita às obras que compuseram o cenário dos espetáculos modernistas, não somente os três dias de apresentações como acontecimento social. Para tanto, não podemos deixar de citar Sérgio Milliet, o mais importante crítico da Semana até os dias de hoje.

O crítico nasceu em São Paulo, em 1898, e com apenas 14 anos foi morar na Suíça, onde permaneceu até o início do ano de 1922. De volta ao Brasil, alguns anos mais tarde, já encontrara todo o cenário pronto para o acontecimento da arte brasileira. Na bagagem trouxe uma formação política ligada ao socialismo e um gosto estético apurado.

Milliet foi considerado um homem ponte para o Modernismo nacional. O primeiro motivo para ser considerado assim, era por ser o contato brasileiro na Europa, a pessoa responsável por difundir as idéias modernistas brasileiras e mostrar ao mundo o que se nas artes nacionais e os movimentos artísticos/culturais, utilizando um espaço na revista belga Lumière.

O outro motivo de ser este homem ponte foi que o crítico disseminou os propósitos modernistas para as décadas seguintes, de 1930 e 1940, em seus artigos e críticas. Aliás críticas essas que eram firmes, no entanto tendiam ao reconhecimento do propósito e do espírito do artista, antes do fazer da arte.

A sua obra mais importante são os dez volumes de 'Diário Crítico', pelos quais se tornou especialmente conhecido. E são esses volumes que contam a sua trajetória, já que Milliet quase não deixou arquivo pessoal.

Durante todo o trabalho que desenvolveu sobre o modernismo brasileiro, merecem destaque os esforços que o crítico despendeu para a fixação dos propósitos modernistas, assim como seu papel fundamental na formação de uma nova "comunidade de gosto", pois era pólo de divulgação, colaborador importante na estruturação da intelectualidade artística, que tinha pouca formação cultural, e seu trabalho de favorecimento da formulação e a difusão de valores.

Além de todos os trabalhos prestados para a imprensa nacional, ainda creditamos a Sérgio Milliet a sistematização da divulgação da arte, com suas idéias que variavam de acordo com o sentimento e os estudos que desenvolvia nos diferentes momentos de sua vida.

Tinha uma tônica bastante explicativa e interpretativa, sem objetivar o acadêmico, mas fazia questão de organizar suas idéias e expô-las de forma genérica, para que nenhum artista se sentisse ofendido e embotasse sua criatividade.

Sobre as apresentações durante os três dias no palco paulista, Sérgio escreveu para sua amiga Marthe, que vivia em Paris e dividia os ideais com o crítico. Duas cartas merecem destaque: a primeira, escrita em abril de 22, destacava as obras e os artistas que tinham exposto no Teatro Municipal e lhe rendeu críticas como "Há apenas um ano alguns artistas trabalhavam na calma dos ateliês...Alguns artistas!...E eis que de repente, esse artistas fazer um apelo aos outros desconhecidos do Brasil: das a São Paulo, noitadas de arte moderna".

Ainda citando as apresentações da Semana, destacou a importância dos principais artistas que ali estavam pessoalmente, um a um, com o maior rigor, para que não houvessem mal entendidos.

Algumas passagens eternizam a impressão do crítico. "Penetremos juntos ao hall do Grande Teatro e admiremos um pouco esta exposição. Eis, da esquerda para a direita, John Graz, que nos apresenta telas de um colorido vigoroso e de um simbolismo místico simples, duro e ingênuo... Anita Malfatti, vigorosa e ousada, e inteligente.

A escultura admiravelmente representada pelo gênio de Brecheret, cujo estilo lembra Mestrovic, dava-nos a ocasião de apreciar as estatuetas de Haarberg, um escultor bastante jovem e a quem não falta talento...

Brecheret se revela um grande escultor, um gênio da raça latina, digno de suceder a Rodin e a Boudelle, e também um admirável poeta por sua extraordinária imaginação. Marthe, gostaria de lhe mostrar seu Monumento das Bandeiras que é, por assim dizer, a epopéia da arte brasileira e o mais belo canto de sua poesia.

É o quadro poderoso da conquista do Brasil pelo povo aventureiro dos paulistas, a procura do ouro e dos escravos indígenas, a ambição desmesurada e nostálgica dos descendestes dos gloriosos portugueses da grande época, a necessidade de conquistas e de dominação.

Imagina você, para traduzir esta grande idéia, um impulso formidável de corpos torcidos, de músculos, de sofrimentos, de desesperos e de entusiasmos através da floresta virgem, apesar das febres e das guerras e da natureza hostil. Tudo isso sem uma frase, sem um artifício, sem uma imagem envelhecida. Imagine isso e você terá uma idéia da arte de Brecheret", comentou Milliet à amiga.

Também não podemos deixar de destacar aqui que o crítico também citou outros grandes nomes como Di Cavalcanti, Zina Aita, Villa-Lobos, Ferrigna, entre outros tantos.

A literatura ganhou uma carta especial, escrita em novembro de 1922, onde frisava a importância e a qualidade da literatura produzida no país tupiniquim. O destaque ficou para os Andrades (Mário e Oswald), como segue "Oswaldo de Andrade: é um romancista. Mas é sobretudo um poeta.

Uma imaginação amazônica que do romance faz um poema, transformando os mínimo feitos psicológicos em verdadeiras tragédias íntimas... E se uma imagem basta para nos revelar um mundo de sensações e de sugestões, Mário de Andrade é um grande poeta, pois não há nas usas obras quase nenhum verso que não seja metáfora ousada e sugestiva. É o nosso futurista", ressalta.

O crítico Sérgio Milliet desenvolveu com tamanha maestria a crítica no Brasil, que até hoje se utiliza da sistematização criada por ele para se fazer uma crítica coerente. A pesquisadora Lisbeth Rebollo Gonçalves, em seu livro "Sérgio Milliet, crítico de arte", destaca "pode-se chegar a dizer que muito mais que uma estética, Sérgio Milliet adere a uma ética", perfeita definição para um grande nome modernista nacional.

Referências bibliográficas

Almeida, Paulo Mendes de. De Anita ao Museu. São Paulo: Editora Perspectiva. Coleção Debates/Arte, 1976.

Boaventura, Maria Eugênia. 22 por 22 - A Semana de Arte Moderna Vista pelos Seus Contemporâneos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

Gonçalves. Lisbeth Rebollo. Sérgio Milliet, Crítico de Arte. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.

Kawall, Luiz Ernesto Machado. Artes Reportagem. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1927.

Hemeroteca do Arquivo Oficial do Estado de São Paulo, microfilmes códigos 01.02.047 e 01.02.019, do Jornal O Estado de S.Paulo.


*Claudia Cruz de Souza é jornalista, pesquisadora e mestranda em Ciência da Comunicação pela Universidade de São Paulo.

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