Artigos
Imprensa
e festa libertárias
Por
Jorge Claudio Ribeiro*
Introdução
Nas
primeiras décadas do século XX floresceram em
São Paulo e Rio de Janeiro grandes "festivais"
operários anarquistas cujo objetivo principal era levantar
fundos para sustentar seus jornais sindicais. Dentre eles, A
Voz do Trabalhador, A Plebe e A Vanguarda, iniciativa de grandes
organizações operárias.
A
Voz do Trabalhador foi fundado em 1/7/1908 e era editado quinzenalmente,
no Rio de Janeiro, pela Confederação Operária
Brasileira. A Plebe foi fundado em 9/6/1917, dando seqüência
ao jornal anticlerical A Laterna, ambos editados por Edgard
Leuenroth, nascido em Mogi-Mirim, SP, em 1881 e falecido em
1968. Politicamente ativo, Edgard participou da organização
de vários congressos operários e de inúmeros
jornais.
A
Plebe foi considerado o mais influente órgão anarquista
e surgiu como suporte de lutas especificamente operárias,
no bojo dos acontecimentos que culminaram na greve de 1917 em
São Paulo. A tiragem inicial foi de 8 mil exemplares,
evoluindo para 13 mil. A princípio A Plebe era semanal,
mas se tornou diário durante 50 edições.
Este jornal durou até 1940.
A Vanguarda era editado em São Paulo, de propriedade
das Organizações Proletárias. Sua primeira
edição saiu em 25/2/1921, seguindo periodicidade
diária. Material riquíssimo sobre estes e outros
jornais operários está reunido no arquivo "Edgard
Leuenroth", da Unicamp.
Tanto
os jornais como as festas nasceram de condições
sociais, econômicas e culturais muito definidas. O material
publicado, bem como a programação e a forma como
se festejava espelharam as tensões, carências e
possibilidades da organização operária
da época.
A
consideração da imprensa e da festa anarquista
serve para levantar indagações e indicar pistas
para práticas alternativas de educação
e de organização popular. Além disso, a
pesquisa do passado ajuda a montar um fio condutor que revela
a presença de uma intenção pedagógica
nas várias formas conhecidas de jornal e festa populares.
Nos
jornais citados foram encontradas indicações sobre
as festas anarquistas, seus objetivos, sua relação
com o movimento geral de resistência, forma como eram
vivenciadas, seu esquema de programação etc.
Para
se perceber o enraizamento da festa na imprensa libertária
e em seu tempo será feito um rápido esboço
do ambiente econômico-social da época. A seguir
será apresentado o perfil da classe operária quanto
a condições de trabalho e suas formas de organização,
ideologias políticas e traços culturais. Ao final
se mostrará como essas condições desaguaram
num tipo específico de festa popular.
Conjuntura
Durante
o século XIX a cafeicultura comandou as transformações
da economia e da sociedade. A infra-estrutura ferroviária
e portuária deveu sua origem à necessidade de
escoamento do café. Em torno dos portos do Rio de Janeiro
e de Santos brotaram concentrações de trabalhadores.
O
excedente econômico advindo da cultura do café
possibilitou a criação de um parque industrial
na região Centro-Sul.
O
primeiro surto industrial começou em 1870, favorecido
pela crise do sistema escravista; a partir daí vão
chegando grandes levas de imigrantes, que ampliaram o mercado
de trabalho e de consumo e investiram sua poupança nos
setores comercial e industrial. Também provocaram espetacular
"inchação" populacional, especialmente
na cidade de São Paulo, que no último decênio
do século XIX saltou de 65 mil para 240 mil habitantes.
Novo
surto de desenvolvimento começou junto com o século
XX, durando até 1913. Neste ano a superprodução
não pode ser assimilada pelos países centrais,
que se encontravam às vésperas da Primeira Guerra
Mundial. Durante este surto, ampliou-se a capacidade produtiva
industrial e agrícola, o comércio também
se diversificou. Entretanto, as cidades do Rio e de São
Paulo não conseguiram fornecer infra-estrutura para a
população que chegava.
A
partir de 1914 surgiu mais um surto de desenvolvimento. Contudo,
o povo sofria com a "carestia", motivo-base de importantes
greves ocorridas em 1917, 1919 e 1920. Primeiro fator de carestia
foram as emissões de moeda, destinadas a sustentar a
cafeicultura e a expansão da indústria, já
que o conflito mundial provocou a retração de
créditos do exterior. (1)
Em
segundo lugar, a carestia se deveu ao desvio de alimentos -
destinados ao mercado interno - para os países em guerra;
inversamente, o trigo, importado, ficou mais caro. A desvalorização
do salário do trabalhador e a especulação
com gêneros de primeira necessidade provocaram forte tensão
social.
Vida
operária
À
economia de exportação, à situação
de guerra, à carestia interna somaram-se a exploração
do trabalho, a desorganização do operariado e
o desinteresse do governo em reconhecer os direitos trabalhistas.
A vida do trabalhador era marcada pela insegurança, não
havendo estabilidade de emprego nem sistema de previdência
social. A coação física e a brutalidade
de contra-mestres eram notícia freqüente nos jornais.
Mulheres
e menores entravam no mercado de trabalho para compensar os
parcos ganhos dos chefes de família, mas em compensação
ficou depreciado o valor geral do trabalho, e o poder de barganha
frente aos patrões foi reduzido. Não é
de se estranhar que conquistas de movimentos importantes se
perdessem depois de poucos meses, devido à carestia,
que superava os ganhos salariais, e à repressão
policial, que encontrava pequena resistência.
A
chegada da mão-de-obra estrangeira em grande quantidade
aumentou a procura por trabalho e diminuiu o poder de barganha
do trabalhador.
Mas,
num segundo momento, os estrangeiros foram fermento de revolta
ao se verem frustrados em seu sonho de "fazer a América"
através do esforço individual. Essa frustração
foi tão forte que gerou uma identidade de classe, mais
poderosa do que as reais diferenças e divisões
entre as nacionalidades.
Em
alguns momentos a origem nacional chegou a colaborar como movimento
social: foi o caso de imigrantes italianos provindos de regiões
onde havia sindicatos ou que foram palco de movimentos messiânicos.
(2)
Organização
Para
as lideranças operárias da época estava
bem clara desorganização do movimento. Atribuía-se
esta situação: à instabilidade de vida
e trabalho do operário; à imaturidade das organizações;
à falta de visão de um sistema global de exploração
aliada à falta de consciência da classe operária.
O operário se restringia ao âmbito dos problemas
das oficinas, identificando a repressão geral às
arbitrariedades dos contra-mestres. Por isso, o paternalismo
de alguns patrões estimulava a fidelidade dos seus operários.
Num
primeiro momento, a opinião pública tinha piedade
pelos "deserdados da fortuna". A partir do momento
em que a massa pareceu querer transformar-se em classe, a questão
social se tornou um caso de polícia, que passava a receber
o apoio das camadas antes apiedadas. (3) Apesar da notória
debilidade, o movimento operário apresentou algumas fases:
Primeira
fase (l905-1908): ocorre ampla organização. Fundam-se
federações regionais e a Confederação
Operária Brasileira. Realiza-se o 1° Congresso Operário.
Estalam greves importantes em várias cidades. Para reduzir
este ímpeto, surgem leis repressivas, notadamente contra
os estrangeiros que atentassem contra a segurança nacional.
Segunda
fase (l909-1913): rompendo com a repressão, o movimento
é retomado, agora em bases mais espontâneas. Ocorre
uma greve geral em São Paulo em 1912 e realiza-se o 2°
Congresso Operário Brasileiro. Novas leis repressivas
são produzidas.
Terceira
fase (1913-1917): declínio do movimento operário,
atingido pela carestia e pela interferência do clima de
exaltação patriótica provocada a partir
do ingresso do Brasil na guerra (ib.:160).
Quarta
fase (1917-1920): a greve geral de junho de 1917 em São
Paulo foi a manifestação política mais
importante da Primeira República (Pinheiro e Hall, 1979:
232), com a hegemonia dos anarquistas. Outra greve surge em
1919, reprimida com o exílio e a prisão dos líderes.
Nova greve, em 1920, em São Paulo. Celebra-se o 3°
Congresso Operário Brasileiro.
A
partir daí o movimento operário reflui, surgindo
pequenos grupos que já não alarmam os círculos
dirigentes. (4)
Jornais
Ao
lado de movimentos amplos (greves, congressos), a organização
operária promovia uma série de ações.
Dentre elas, criar um jornal era a primeira providência
de qualquer associação nascente. As lideranças
operárias chegavam a atribuir eficácia própria
ao jornal que se tornava uma organização paralela
às próprias associações. O jornal
se constituiu num dos "principais centros organizatórios
anarquistas e de difusão de propaganda". (5)
Entretanto,
essa eficácia não se sustentaria nem em sua dinâmica
redacional nem em sua sobrevivência física sem
o respaldo das associações operárias ou
sem a integração com suas propostas e atividades.
Havia um tipo de jornal diretamente ligado aos fundadores; um
segundo tipo fazia a cobertura dos problemas gerais da classe
operária. Os jornais operários foram tão
numerosos como efêmeros.
Os
jornais eram formas específicas de luta e freqüentemente
adotavam tom panfletário. A linguagem utilizada era estereotipada
e tão engrandecedora que dificilmente se tem idéia
do que efetivamente ocorria. Assim, os festivais eram invariavelmente
"grandiosos"; os dramas eram "emocionantes";
os números apresentados eram de "absoluta sensação"
e sempre deixavam nos presentes uma "deliciosa impressão"
e "grata recordação", sendo "muito
aplaudidos" no final.
Os
jornais eram encarados como difusores de idéias, com
predominância de artigos de fundo. Entretanto, nos momentos
de ação mais intensa, a doutrinação
cedia lugar ao noticiário, sob forma de boletins e panfletos,
mais ágeis e informativos. (6)
Parte
do custo das edições era coberta mediante a venda
avulsa e assinaturas. O restante era complementado por meios
"extra-jornalísticos": festas, rifas e doações.
Uma vez que a publicidade era muito reduzida, a regularidade
das edições dependia diretamente da capacidade
de mobilização das organizações
que editavam os jornais.
Além
dos jornais, havia outro tipo de ações: "boicotagens"
contra açambarcadores e contra os produtos das fábricas
que não cumprissem os acordos trabalhistas; festas, teatro,
quermesses, centros de estudos, sessões de leitura, excursões
e palestras em centros mais afastados de moradia operária.
(7) As Ligas de Auxílio Mútuo eram formas mais
estáveis de ação e muito comuns desde meados
do século XIX.
Elas
eram formas privadas de previdência social, restritas
a nacionalidades ou fábricas. As ligas foram também
centros de irradiação de cultura operária,
abrigando cursos de alfabetização de adultos e
"Escolas Modernas" para os jovens proletários.
As ligas prepararam o surgimento dos sindicatos, sedimentando
uma experiência de resistência que mais tarde ganharia
dimensão política.
Ideologias
O
espectro ideológico do movimento operário abarcava
desde grupos colaboracionistas até os opositores mais
radicais do sistema. Dentre esses, estavam os anarquistas e
os anarco-sindicalistas. Os anarquistas pregavam o fim do capitalismo
por meios não-políticos mas econômicos e
ideológicos: cada indivíduo escolheria livremente
a forma de sua atuação.
O
anarquismo tendia a acompanhar o nível mais elementar
das mobilizações, as quais se coroariam com um
único complô, que destruiria o Estado e instauraria
a sociedade libertária. Freqüentemente o anarquismo
se resumiu a um sistema filosófico, à pregação
de indivíduos atuantes mas de parca influência
no meio operário.
O
anarco-sindicalismo foi o movimento mais influente no meio operário
durante as duas primeiras décadas deste século.
A base desta tendência era o ideário anarquista,
mas ela ia adiante ao valorizar o sindicato enquanto órgão
de mobilização, evitando-se contudo a centralização
e a hierarquização de seus membros. Seguindo o
modelo da CGT francesa, o anarco-sindicalismo defendia a ação
direta entre operários e patrões, evitando o arbitramento
do Estado.
Contudo,
aí o anarco-sindicalismo encontrou seu limite, pois não
foi capaz de articular formas de mediação capazes
de institucionalizar as conquistas obtidas sobretudo nas greves
de 1917 e 1919. Estes limites, somados à adesão
de muitos militantes ao movimento comunista que nascia, desaguaram
no impasse do anarco-sindicalismo.
Os
traços culturais dos operários não foram
uniformes. É necessária uma distinção
inicial entre as lideranças e a massa operária.
Os dois grupos nutriam tensões, que parecem manifestar-se
em uma parcial resistência frente à pregação
das lideranças, as quais não reconheciam o saber
das massas. Eis algumas de suas características:
Racionalismo-
No discurso das lideranças, publicado nos jornais, percebe-se
forte tendência racionalista, traduzida numa avaliação
específica da educação, por exemplo. Os
congressos operários recomendavam aos sindicatos a promoção
de escolas racionalistas, para fazer frente ao misticismo e
à resignação inculcados pela educação
burguesa, que "enlouquece os cérebros e impossibilita
a emancipação sentimental, intelectual, econômica
e social do proletariado".
O
povo, segundo as lideranças, é mantido pela burguesia
"na mais absoluta ignorância, próxima à
bestialidade". (8) A cultura do povo só é
admitida quando utilizada para fins de propaganda.
Moralidade
ascética- O enfoque racionalista condiz com uma moralidade
ascética, rigorosa, calcada no apelo à ordem e
à solidariedade operária. São ferrenhamente
combatidos os excitantes e também os bailes. É
desencorajado o lazer realizado fora dos quadros sindicais,
porque seria desprovido de um objetivo "nobre", como
a arrecadação de fundos para um jornal ou para
uma Escola Moderna.
Contudo,
embora a princípio fossem focos de tensão entre
lideranças e bases, aos poucos os bailes, o futebol e
o cinema terminaram sendo incorporados, com a ressalva de que
eram empregados para fim de arregimentação. Em
tais ocasiões, a vivência lúdica é
"esfriada".
Anticlericalismo-
O anticlericalismo integrava este corpo ético, não
como mero ataque à Igreja mas como oposição
a uma importante aliada da burguesia. Criticava-se a incoerência
entre o que a Igreja pregava e o que praticava.
A
crítica anticlerical não atingia propriamente
o ideário cristão, que tem aliás muitos
elementos integrados nas propostas anarco-sindicalistas. São
comuns peças com títulos como O Cristo moderno.
Pecado de Simonia (sucesso que durou vários anos), publicações
como Jesus Cristo era anarquista.
O
essencial do anticlericalismo se centrava na incoerência
entre o que a Igreja pregava e o que praticava, tanto em questões
sexuais como nas sociais. São veementes os protestos
em numerosos artigos contra a doação do governo
para a construção da Catedral da Sé, em
São Paulo: "Com 2 mil contos se poderiam construir
20 mil casas operárias."; (9) "E os 2 mil contos?
São 2 mil contos do vigário." (10)
Lazer
O
racionalismo e a moralidade ascética regeram a promoção
e avaliação do lazer e também a elaboração
das festas libertárias. Os congressos operários,
meio a contragosto, trataram do tema justificando que "as
diversões de propaganda" conseguiam "maior
freqüência à sede social" das associações.
As atividades "toleráveis" eram os recitativos
sociais e as "palestras amigáveis sobre assuntos
sociais e literários". Recomendava-se a "exclusão
do baile e de qualquer espécie de jogos". (11)
A
princípio, o lazer realizado fora dos quadros sindicais
era condenado. Especialmente o carnaval e o consumo do álcool
jamais foram admitidos. O álcool mereceu condenações
solenes dos congressos operários por ser "um dos
vícios mais arraigados" e por se constituir num
"obstáculo à organização dos
trabalhadores", levando "ao esquecimento das misérias
e dos sofrimentos decorrentes do atual regime de trabalho".
(12)
Por
sua vez, os clubes carnavalescos eram considerados "antros
de perdição onde se ouvem canções
transbordantes de lascividade". (13) O carnaval "fanatiza...
é uma válvula de segurança (mas) estamos
preparando também um Carnaval... de fogo, vingador, implacável".
(14)
Por
outro lado, o baile, o futebol e o cinema foram paulatinamente
incorporados, com ressalvas, porém. Os bailes, expressamente
proibidos em congressos operários, vão sendo aceitos
em sua versão "familiar". O futebol, "jogo
bruto e estúpido", chegou a ser anunciado como grande
atração do festival realizado em prol da Escola
Moderna. O cinema - "não tem uma idéia, uma
lição, é usado para embrutecimento popular"
(15) - foi utilizado no festival pró-A Plebe diária,
no qual foram exibidos filmes... "de caráter educativo"!
(16)
Festa
libertária
No
interior desse quadro, surgem as características principais
da festa anarquista. Ela espelha a tensão entre a mentalidade
das lideranças sindicais e a vivência das massas
e revela o conflito entre o lazer e os objetivos da propaganda.
A festa anarquista se divide entre: a orientação
"educativa" na transmissão de conteúdos
e as atitudes desejáveis para o movimento sindical; a
tendência para o lúdico, o propriamente festivo.
Os
jornais publicam, comentários como: "Divertimento
é música, o bom teatro, as festas familiares";
(17) "o recurso das festas como uma das melhores fontes
de receita"; (18) "a festa proporciona aos associados
alguns momentos de alegria... sentimento de sociabilidade e
visa principalmente identificá-los com a ação
educativa, capacitá-los para a conquista do bem-estar
a que têm direito". (19)
Programação
- O levantamento da programação de mais de 50
festas, noticiadas nos jornais sindicais, revelou um esquema
comum que se resume a três etapas: "séria",
teatral e lúdica. (20) A parte "séria"
era integrada por conferências e atividades menos freqüentes:
exposição de motivos, cantos sociais, sinfonias.
A etapa teatral apresentava numerosas variantes: recitativos,
dramas, dramas sociais, comédias, comédias sociais,
atos variados com atores. A parte lúdica era composta
sobretudo pelo baile "familiar" entremeado por quermesses
e leilões.
Subjacente
a este esquema, depreende-se uma possível "filosofia
programática", muito presente, embora não
manifesta. Ela rege tanto os componentes da programação
como sua seqüência. A programação das
festas partia da realidade operária, passava por uma
transição teatral e desembocava na vivência
lúdica. Em cada uma dessas etapas, a iniciativa passaria
das lideranças para os grupos culturais e bases operárias.
A dimensão preponderante em cada momento seria: racional-moralista,
dramática e cômica e erótico-familiar. Nos
termos da dialética pedagógico-lúdica,
cada parte teria como enfoque principal: exposição
pedagógica, dramatização pedagógico-lúdica
e baile lúdico. A função pecuniária
própria de cada momento: venda do ingresso, leilão
nos entreatos e quermesse/leilão.
O
arranjo das atividades ao longo da programação
mostra que as lideranças cederam parte da iniciativa
às bases. Assim, parte-se da violência cotidiana
e da luta de classes; daí se passa pelo contraste entre
utopia e realidade, realizado no teatro; termina-se num momento
de ampla gratuidade e espontaneidade - o "baile familiar".
Em todo caso, espera-se que as pessoas compareçam à
festa para contribuir para uma "causa nobre". Desta
forma, o aspecto festivo fica em parte subordinado à
dinâmica da resistência operária.
O
que tornou tão marcante a tendência pedagógica
da festa libertária? Primeiro, o baixo nível da
organização do movimento sindical, aliado à
falta de consciência de classe da massa e ao parcelamento
do movimento de resistência numa multidão de minúsculas
organizações. Numa época especialmente
selvagem do capitalismo, quase não se fazia uso da violência
simbólica: a repressão era às claras mesmo.
Dispersão e agressão acompanhavam as ocasiões
de aglutinação. Em segundo lugar, a festa tendia
para o pedagógico porque as lideranças, marcadas
pelo racionalismo e moralismo, não reconhecerem no povo
um saber próprio, o que impedia a utilização
do potencial de resistência-identidade presente na cultura
do povo.
Teatro-
O teatro realiza no âmbito da festa anarquista uma transição
entre o cotidiano mais a luta, de um lado, e a vivência
lúdica, de outro. Os dramas sociais, mais próximos
da parte "séria", apresentam forte componente
pedagógico, retratando o ambiente classista. Também
as comédias realizam uma faceta pedagógica, ao
ridicularizarem as classes dominantes e ao retirar-lhes ritualmente
o poder.
Mas
o teatro não foi apenas um instrumento. Há indícios
de que ele era encarado dentro de sua linguagem específica.
Parece ter havido consciência de que a manipulação
ideológica do teatro corria o risco de destruir sua dramaticidade.
Por isso, dedicados ao aprofundamento artístico, surgiram
numerosos "Grupos Filodramáticos". Vários
artigos criticando atores e peças mal-preparados demonstram
consciência de que não bastava a peça tratar
de tema social para ser de boa qualidade. (21)
O
teatro concentrava a dimensão utópica da festa
anarquista. Ao denunciar a injustiça, ao apear os poderosos
de seus tronos, alçando os oprimidos, o teatro reconstruía
ritualmente o mundo. A comédia invertia posições,
sentando no banco dos réus os juizes, os sacerdotes,
os policiais. Nas numerosas vezes em que eram apresentadas na
língua dos imigrantes, as peças fizeram a ponte
entre a vivência originária de muitos operários
e a luta de resistência que conduziam naquele momento.
Recursos
- As festas libertárias sempre foram promovidas em prol
de alguma causa. A função pecuniária foi
necessária, uma vez que as organizações
proletárias eram paupérrimas. Contudo, mesmo enquanto
"levantadoras de fundos", as festas eram uma forma
de aprendizado político, na medida em que os operários
assumiam o custo financeiro de sua resistência. Para tanto,
uma ampla mobilização era necessária, já
que as festas não estavam isentas de eventuais déficits.
(22)
Em
cada edição dos jornais era feita cuidadosa prestação
de contas de seus custos: a partir desses demonstrativos fica-se
sabendo que a venda avulsa não cobria os gastos. Esta
situação de permanente endividamento dos jornais
obrigava ao recurso de rifas, de "subscrições
voluntárias" e principalmente de festas. As festas
em prol dos jornais às vezes rendiam bem mais que a venda
avulsa.
Conclusão
Apesar
de seus limites, o "festival" anarquista seguia uma
proposta de libertação, relacionando-a com atividades,
como os jornais, e com grupos concretos. Sendo o povo o financiador
das próprias iniciativas, a festa carrega forte potencial
de conscientização, pois emprega a pedagogia da
participação e revela na prática o custo
econômico da resistência. O teatro sintetiza a denúncia
do real com a projeção do utópico, peneirando
a autêntica identidade operária e separando-a dos
efeitos da alienação.
Sem
deixar de ser lúdica, a festa libertária conseguiu
concretizar uma dimensão pedagógica voltada para
a libertação. Esse evento múltiplo, orgânico
às condições existentes, inovou dentro
dos limites do historicamente possível.
Bibliografia
FAUSTO,
Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo:
Difel, 1976.
FERREIRA,
Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil. Petrópolis:
Vozes, 1978.
KHOURY,
Yara Aun. As greves de 1917 em São Paulo e o processo
de organização proletária. São Paulo:
PUC, 1978.
PINHEIRO,
Paulo Sérgio. HALL, Ichael. A classe operária
no Brasil. São Paulo: Alfa Ômega, 1978.
Notas
1
Khoury, 1978: pp. 27-29
2
Fausto, 1936, p.36
3
ibidem. p. 237
4
ibidem. p. 245
5
ibidem. p. 91
6
Ferreira, 1978, p.108
7
ibidem, p. 59
8
Pinheiro e Hall, op. cit.: p.197.
9
A Plebe, no. 22, 1919, p. 2.
10
A Plebe, no. 25, 1919, p. 1.
11
Pinheiro e Hall, op. cit.: p. 92
12
ibidem, p. 119
13
A Plebe, no. 1, 1919, p. 2.
14
A Voz do Trabalhador, no. 24, 1913, p. 1.
15
A Plebe, no. 8/9, 1919, p. 3.
16
A Plebe, no. 14, p. 2.
17
A Plebe, no. 3, 1919, p.1.
18
A Plebe, no. 89, 1920, p. 3.
19
A Vanguarda, n. 23, 1921, p. 2
20
Eis alguns exemplos de programação das festas:
em prol do jornal A Voz do Trabalhador, com as peças
A anedota e Pecado de Simonia, apresentação de
poesias, conferência; promovida pelo Centro de Sindicatos
Operários, com uma conferência sob o título
'Tributo de Sangue", um drama em 5 atos (Os maus pastores),
finalizando com baile familiar; em prol das vítimas de
greve, promovido pelo Circolo Sociale Cuore de Arte e pelo grupo
dos Jovens Incansáveis, com o drama Sangue fecundo, o
recitativo social Sem pátria, rifa e baile familiar;
pró-escola proletária promovido pela Sociedade
dos Laminadores, apresentando os dramas O Cristo da agonia,
O melhor juiz é a consciência e a comédia
O dinheiro não vale nada, seguindo-se poesias dos alunos,
palestra e "animado baile familiar"; ouverture pela
orquestra; "interessante" conferência; drama
"O Veterano da Liberdade"; quermesse com "vistosos"
prêmios; baile; promovida pela União dos Empregados
em Cafés, orquestra; conferência; comédia
"O Tio Padre"; ato variado com o artista caipira Nhô
Bamabé e o imitador Napoleão de Aguiar; bailarinos,
quermesse e baile familiar entremeado com leilão.
21
A Voz do Trabalhador, n. 4, p. 2.
22
A Vanguarda, nos. 26 e 46.
*Prof.
Dr. Jorge Claudio Ribeiro é jornalista e professor do
Depto. De Teologia e Ciências da Religião da PUC/São
Paulo.
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