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Artigos


Imprensa e festa libertárias

Por Jorge Claudio Ribeiro*

Introdução

Nas primeiras décadas do século XX floresceram em São Paulo e Rio de Janeiro grandes "festivais" operários anarquistas cujo objetivo principal era levantar fundos para sustentar seus jornais sindicais. Dentre eles, A Voz do Trabalhador, A Plebe e A Vanguarda, iniciativa de grandes organizações operárias.

A Voz do Trabalhador foi fundado em 1/7/1908 e era editado quinzenalmente, no Rio de Janeiro, pela Confederação Operária Brasileira. A Plebe foi fundado em 9/6/1917, dando seqüência ao jornal anticlerical A Laterna, ambos editados por Edgard Leuenroth, nascido em Mogi-Mirim, SP, em 1881 e falecido em 1968. Politicamente ativo, Edgard participou da organização de vários congressos operários e de inúmeros jornais.

A Plebe foi considerado o mais influente órgão anarquista e surgiu como suporte de lutas especificamente operárias, no bojo dos acontecimentos que culminaram na greve de 1917 em São Paulo. A tiragem inicial foi de 8 mil exemplares, evoluindo para 13 mil. A princípio A Plebe era semanal, mas se tornou diário durante 50 edições. Este jornal durou até 1940.

A Vanguarda era editado em São Paulo, de propriedade das Organizações Proletárias. Sua primeira edição saiu em 25/2/1921, seguindo periodicidade diária. Material riquíssimo sobre estes e outros jornais operários está reunido no arquivo "Edgard Leuenroth", da Unicamp.

Tanto os jornais como as festas nasceram de condições sociais, econômicas e culturais muito definidas. O material publicado, bem como a programação e a forma como se festejava espelharam as tensões, carências e possibilidades da organização operária da época.

A consideração da imprensa e da festa anarquista serve para levantar indagações e indicar pistas para práticas alternativas de educação e de organização popular. Além disso, a pesquisa do passado ajuda a montar um fio condutor que revela a presença de uma intenção pedagógica nas várias formas conhecidas de jornal e festa populares.

Nos jornais citados foram encontradas indicações sobre as festas anarquistas, seus objetivos, sua relação com o movimento geral de resistência, forma como eram vivenciadas, seu esquema de programação etc.

Para se perceber o enraizamento da festa na imprensa libertária e em seu tempo será feito um rápido esboço do ambiente econômico-social da época. A seguir será apresentado o perfil da classe operária quanto a condições de trabalho e suas formas de organização, ideologias políticas e traços culturais. Ao final se mostrará como essas condições desaguaram num tipo específico de festa popular.

Conjuntura

Durante o século XIX a cafeicultura comandou as transformações da economia e da sociedade. A infra-estrutura ferroviária e portuária deveu sua origem à necessidade de escoamento do café. Em torno dos portos do Rio de Janeiro e de Santos brotaram concentrações de trabalhadores.

O excedente econômico advindo da cultura do café possibilitou a criação de um parque industrial na região Centro-Sul.

O primeiro surto industrial começou em 1870, favorecido pela crise do sistema escravista; a partir daí vão chegando grandes levas de imigrantes, que ampliaram o mercado de trabalho e de consumo e investiram sua poupança nos setores comercial e industrial. Também provocaram espetacular "inchação" populacional, especialmente na cidade de São Paulo, que no último decênio do século XIX saltou de 65 mil para 240 mil habitantes.

Novo surto de desenvolvimento começou junto com o século XX, durando até 1913. Neste ano a superprodução não pode ser assimilada pelos países centrais, que se encontravam às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Durante este surto, ampliou-se a capacidade produtiva industrial e agrícola, o comércio também se diversificou. Entretanto, as cidades do Rio e de São Paulo não conseguiram fornecer infra-estrutura para a população que chegava.

A partir de 1914 surgiu mais um surto de desenvolvimento. Contudo, o povo sofria com a "carestia", motivo-base de importantes greves ocorridas em 1917, 1919 e 1920. Primeiro fator de carestia foram as emissões de moeda, destinadas a sustentar a cafeicultura e a expansão da indústria, já que o conflito mundial provocou a retração de créditos do exterior. (1)

Em segundo lugar, a carestia se deveu ao desvio de alimentos - destinados ao mercado interno - para os países em guerra; inversamente, o trigo, importado, ficou mais caro. A desvalorização do salário do trabalhador e a especulação com gêneros de primeira necessidade provocaram forte tensão social.

Vida operária

À economia de exportação, à situação de guerra, à carestia interna somaram-se a exploração do trabalho, a desorganização do operariado e o desinteresse do governo em reconhecer os direitos trabalhistas. A vida do trabalhador era marcada pela insegurança, não havendo estabilidade de emprego nem sistema de previdência social. A coação física e a brutalidade de contra-mestres eram notícia freqüente nos jornais.

Mulheres e menores entravam no mercado de trabalho para compensar os parcos ganhos dos chefes de família, mas em compensação ficou depreciado o valor geral do trabalho, e o poder de barganha frente aos patrões foi reduzido. Não é de se estranhar que conquistas de movimentos importantes se perdessem depois de poucos meses, devido à carestia, que superava os ganhos salariais, e à repressão policial, que encontrava pequena resistência.

A chegada da mão-de-obra estrangeira em grande quantidade aumentou a procura por trabalho e diminuiu o poder de barganha do trabalhador.

Mas, num segundo momento, os estrangeiros foram fermento de revolta ao se verem frustrados em seu sonho de "fazer a América" através do esforço individual. Essa frustração foi tão forte que gerou uma identidade de classe, mais poderosa do que as reais diferenças e divisões entre as nacionalidades.

Em alguns momentos a origem nacional chegou a colaborar como movimento social: foi o caso de imigrantes italianos provindos de regiões onde havia sindicatos ou que foram palco de movimentos messiânicos. (2)

Organização

Para as lideranças operárias da época estava bem clara desorganização do movimento. Atribuía-se esta situação: à instabilidade de vida e trabalho do operário; à imaturidade das organizações; à falta de visão de um sistema global de exploração aliada à falta de consciência da classe operária.

O operário se restringia ao âmbito dos problemas das oficinas, identificando a repressão geral às arbitrariedades dos contra-mestres. Por isso, o paternalismo de alguns patrões estimulava a fidelidade dos seus operários.

Num primeiro momento, a opinião pública tinha piedade pelos "deserdados da fortuna". A partir do momento em que a massa pareceu querer transformar-se em classe, a questão social se tornou um caso de polícia, que passava a receber o apoio das camadas antes apiedadas. (3) Apesar da notória debilidade, o movimento operário apresentou algumas fases:

Primeira fase (l905-1908): ocorre ampla organização. Fundam-se federações regionais e a Confederação Operária Brasileira. Realiza-se o 1° Congresso Operário. Estalam greves importantes em várias cidades. Para reduzir este ímpeto, surgem leis repressivas, notadamente contra os estrangeiros que atentassem contra a segurança nacional.

Segunda fase (l909-1913): rompendo com a repressão, o movimento é retomado, agora em bases mais espontâneas. Ocorre uma greve geral em São Paulo em 1912 e realiza-se o 2° Congresso Operário Brasileiro. Novas leis repressivas são produzidas.

Terceira fase (1913-1917): declínio do movimento operário, atingido pela carestia e pela interferência do clima de exaltação patriótica provocada a partir do ingresso do Brasil na guerra (ib.:160).

Quarta fase (1917-1920): a greve geral de junho de 1917 em São Paulo foi a manifestação política mais importante da Primeira República (Pinheiro e Hall, 1979: 232), com a hegemonia dos anarquistas. Outra greve surge em 1919, reprimida com o exílio e a prisão dos líderes. Nova greve, em 1920, em São Paulo. Celebra-se o 3° Congresso Operário Brasileiro.

A partir daí o movimento operário reflui, surgindo pequenos grupos que já não alarmam os círculos dirigentes. (4)

Jornais

Ao lado de movimentos amplos (greves, congressos), a organização operária promovia uma série de ações. Dentre elas, criar um jornal era a primeira providência de qualquer associação nascente. As lideranças operárias chegavam a atribuir eficácia própria ao jornal que se tornava uma organização paralela às próprias associações. O jornal se constituiu num dos "principais centros organizatórios anarquistas e de difusão de propaganda". (5)

Entretanto, essa eficácia não se sustentaria nem em sua dinâmica redacional nem em sua sobrevivência física sem o respaldo das associações operárias ou sem a integração com suas propostas e atividades. Havia um tipo de jornal diretamente ligado aos fundadores; um segundo tipo fazia a cobertura dos problemas gerais da classe operária. Os jornais operários foram tão numerosos como efêmeros.

Os jornais eram formas específicas de luta e freqüentemente adotavam tom panfletário. A linguagem utilizada era estereotipada e tão engrandecedora que dificilmente se tem idéia do que efetivamente ocorria. Assim, os festivais eram invariavelmente "grandiosos"; os dramas eram "emocionantes"; os números apresentados eram de "absoluta sensação" e sempre deixavam nos presentes uma "deliciosa impressão" e "grata recordação", sendo "muito aplaudidos" no final.

Os jornais eram encarados como difusores de idéias, com predominância de artigos de fundo. Entretanto, nos momentos de ação mais intensa, a doutrinação cedia lugar ao noticiário, sob forma de boletins e panfletos, mais ágeis e informativos. (6)

Parte do custo das edições era coberta mediante a venda avulsa e assinaturas. O restante era complementado por meios "extra-jornalísticos": festas, rifas e doações. Uma vez que a publicidade era muito reduzida, a regularidade das edições dependia diretamente da capacidade de mobilização das organizações que editavam os jornais.

Além dos jornais, havia outro tipo de ações: "boicotagens" contra açambarcadores e contra os produtos das fábricas que não cumprissem os acordos trabalhistas; festas, teatro, quermesses, centros de estudos, sessões de leitura, excursões e palestras em centros mais afastados de moradia operária. (7) As Ligas de Auxílio Mútuo eram formas mais estáveis de ação e muito comuns desde meados do século XIX.

Elas eram formas privadas de previdência social, restritas a nacionalidades ou fábricas. As ligas foram também centros de irradiação de cultura operária, abrigando cursos de alfabetização de adultos e "Escolas Modernas" para os jovens proletários. As ligas prepararam o surgimento dos sindicatos, sedimentando uma experiência de resistência que mais tarde ganharia dimensão política.

Ideologias

O espectro ideológico do movimento operário abarcava desde grupos colaboracionistas até os opositores mais radicais do sistema. Dentre esses, estavam os anarquistas e os anarco-sindicalistas. Os anarquistas pregavam o fim do capitalismo por meios não-políticos mas econômicos e ideológicos: cada indivíduo escolheria livremente a forma de sua atuação.

O anarquismo tendia a acompanhar o nível mais elementar das mobilizações, as quais se coroariam com um único complô, que destruiria o Estado e instauraria a sociedade libertária. Freqüentemente o anarquismo se resumiu a um sistema filosófico, à pregação de indivíduos atuantes mas de parca influência no meio operário.

O anarco-sindicalismo foi o movimento mais influente no meio operário durante as duas primeiras décadas deste século. A base desta tendência era o ideário anarquista, mas ela ia adiante ao valorizar o sindicato enquanto órgão de mobilização, evitando-se contudo a centralização e a hierarquização de seus membros. Seguindo o modelo da CGT francesa, o anarco-sindicalismo defendia a ação direta entre operários e patrões, evitando o arbitramento do Estado.

Contudo, aí o anarco-sindicalismo encontrou seu limite, pois não foi capaz de articular formas de mediação capazes de institucionalizar as conquistas obtidas sobretudo nas greves de 1917 e 1919. Estes limites, somados à adesão de muitos militantes ao movimento comunista que nascia, desaguaram no impasse do anarco-sindicalismo.

Os traços culturais dos operários não foram uniformes. É necessária uma distinção inicial entre as lideranças e a massa operária. Os dois grupos nutriam tensões, que parecem manifestar-se em uma parcial resistência frente à pregação das lideranças, as quais não reconheciam o saber das massas. Eis algumas de suas características:

Racionalismo- No discurso das lideranças, publicado nos jornais, percebe-se forte tendência racionalista, traduzida numa avaliação específica da educação, por exemplo. Os congressos operários recomendavam aos sindicatos a promoção de escolas racionalistas, para fazer frente ao misticismo e à resignação inculcados pela educação burguesa, que "enlouquece os cérebros e impossibilita a emancipação sentimental, intelectual, econômica e social do proletariado".

O povo, segundo as lideranças, é mantido pela burguesia "na mais absoluta ignorância, próxima à bestialidade". (8) A cultura do povo só é admitida quando utilizada para fins de propaganda.

Moralidade ascética- O enfoque racionalista condiz com uma moralidade ascética, rigorosa, calcada no apelo à ordem e à solidariedade operária. São ferrenhamente combatidos os excitantes e também os bailes. É desencorajado o lazer realizado fora dos quadros sindicais, porque seria desprovido de um objetivo "nobre", como a arrecadação de fundos para um jornal ou para uma Escola Moderna.

Contudo, embora a princípio fossem focos de tensão entre lideranças e bases, aos poucos os bailes, o futebol e o cinema terminaram sendo incorporados, com a ressalva de que eram empregados para fim de arregimentação. Em tais ocasiões, a vivência lúdica é "esfriada".

Anticlericalismo- O anticlericalismo integrava este corpo ético, não como mero ataque à Igreja mas como oposição a uma importante aliada da burguesia. Criticava-se a incoerência entre o que a Igreja pregava e o que praticava.

A crítica anticlerical não atingia propriamente o ideário cristão, que tem aliás muitos elementos integrados nas propostas anarco-sindicalistas. São comuns peças com títulos como O Cristo moderno. Pecado de Simonia (sucesso que durou vários anos), publicações como Jesus Cristo era anarquista.

O essencial do anticlericalismo se centrava na incoerência entre o que a Igreja pregava e o que praticava, tanto em questões sexuais como nas sociais. São veementes os protestos em numerosos artigos contra a doação do governo para a construção da Catedral da Sé, em São Paulo: "Com 2 mil contos se poderiam construir 20 mil casas operárias."; (9) "E os 2 mil contos? São 2 mil contos do vigário." (10)

Lazer

O racionalismo e a moralidade ascética regeram a promoção e avaliação do lazer e também a elaboração das festas libertárias. Os congressos operários, meio a contragosto, trataram do tema justificando que "as diversões de propaganda" conseguiam "maior freqüência à sede social" das associações. As atividades "toleráveis" eram os recitativos sociais e as "palestras amigáveis sobre assuntos sociais e literários". Recomendava-se a "exclusão do baile e de qualquer espécie de jogos". (11)

A princípio, o lazer realizado fora dos quadros sindicais era condenado. Especialmente o carnaval e o consumo do álcool jamais foram admitidos. O álcool mereceu condenações solenes dos congressos operários por ser "um dos vícios mais arraigados" e por se constituir num "obstáculo à organização dos trabalhadores", levando "ao esquecimento das misérias e dos sofrimentos decorrentes do atual regime de trabalho". (12)

Por sua vez, os clubes carnavalescos eram considerados "antros de perdição onde se ouvem canções transbordantes de lascividade". (13) O carnaval "fanatiza... é uma válvula de segurança (mas) estamos preparando também um Carnaval... de fogo, vingador, implacável". (14)

Por outro lado, o baile, o futebol e o cinema foram paulatinamente incorporados, com ressalvas, porém. Os bailes, expressamente proibidos em congressos operários, vão sendo aceitos em sua versão "familiar". O futebol, "jogo bruto e estúpido", chegou a ser anunciado como grande atração do festival realizado em prol da Escola Moderna. O cinema - "não tem uma idéia, uma lição, é usado para embrutecimento popular" (15) - foi utilizado no festival pró-A Plebe diária, no qual foram exibidos filmes... "de caráter educativo"! (16)

Festa libertária

No interior desse quadro, surgem as características principais da festa anarquista. Ela espelha a tensão entre a mentalidade das lideranças sindicais e a vivência das massas e revela o conflito entre o lazer e os objetivos da propaganda. A festa anarquista se divide entre: a orientação "educativa" na transmissão de conteúdos e as atitudes desejáveis para o movimento sindical; a tendência para o lúdico, o propriamente festivo.

Os jornais publicam, comentários como: "Divertimento é música, o bom teatro, as festas familiares"; (17) "o recurso das festas como uma das melhores fontes de receita"; (18) "a festa proporciona aos associados alguns momentos de alegria... sentimento de sociabilidade e visa principalmente identificá-los com a ação educativa, capacitá-los para a conquista do bem-estar a que têm direito". (19)

Programação - O levantamento da programação de mais de 50 festas, noticiadas nos jornais sindicais, revelou um esquema comum que se resume a três etapas: "séria", teatral e lúdica. (20) A parte "séria" era integrada por conferências e atividades menos freqüentes: exposição de motivos, cantos sociais, sinfonias. A etapa teatral apresentava numerosas variantes: recitativos, dramas, dramas sociais, comédias, comédias sociais, atos variados com atores. A parte lúdica era composta sobretudo pelo baile "familiar" entremeado por quermesses e leilões.

Subjacente a este esquema, depreende-se uma possível "filosofia programática", muito presente, embora não manifesta. Ela rege tanto os componentes da programação como sua seqüência. A programação das festas partia da realidade operária, passava por uma transição teatral e desembocava na vivência lúdica. Em cada uma dessas etapas, a iniciativa passaria das lideranças para os grupos culturais e bases operárias.

A dimensão preponderante em cada momento seria: racional-moralista, dramática e cômica e erótico-familiar. Nos termos da dialética pedagógico-lúdica, cada parte teria como enfoque principal: exposição pedagógica, dramatização pedagógico-lúdica e baile lúdico. A função pecuniária própria de cada momento: venda do ingresso, leilão nos entreatos e quermesse/leilão.

O arranjo das atividades ao longo da programação mostra que as lideranças cederam parte da iniciativa às bases. Assim, parte-se da violência cotidiana e da luta de classes; daí se passa pelo contraste entre utopia e realidade, realizado no teatro; termina-se num momento de ampla gratuidade e espontaneidade - o "baile familiar". Em todo caso, espera-se que as pessoas compareçam à festa para contribuir para uma "causa nobre". Desta forma, o aspecto festivo fica em parte subordinado à dinâmica da resistência operária.

O que tornou tão marcante a tendência pedagógica da festa libertária? Primeiro, o baixo nível da organização do movimento sindical, aliado à falta de consciência de classe da massa e ao parcelamento do movimento de resistência numa multidão de minúsculas organizações. Numa época especialmente selvagem do capitalismo, quase não se fazia uso da violência simbólica: a repressão era às claras mesmo.

Dispersão e agressão acompanhavam as ocasiões de aglutinação. Em segundo lugar, a festa tendia para o pedagógico porque as lideranças, marcadas pelo racionalismo e moralismo, não reconhecerem no povo um saber próprio, o que impedia a utilização do potencial de resistência-identidade presente na cultura do povo.

Teatro- O teatro realiza no âmbito da festa anarquista uma transição entre o cotidiano mais a luta, de um lado, e a vivência lúdica, de outro. Os dramas sociais, mais próximos da parte "séria", apresentam forte componente pedagógico, retratando o ambiente classista. Também as comédias realizam uma faceta pedagógica, ao ridicularizarem as classes dominantes e ao retirar-lhes ritualmente o poder.

Mas o teatro não foi apenas um instrumento. Há indícios de que ele era encarado dentro de sua linguagem específica. Parece ter havido consciência de que a manipulação ideológica do teatro corria o risco de destruir sua dramaticidade. Por isso, dedicados ao aprofundamento artístico, surgiram numerosos "Grupos Filodramáticos". Vários artigos criticando atores e peças mal-preparados demonstram consciência de que não bastava a peça tratar de tema social para ser de boa qualidade. (21)

O teatro concentrava a dimensão utópica da festa anarquista. Ao denunciar a injustiça, ao apear os poderosos de seus tronos, alçando os oprimidos, o teatro reconstruía ritualmente o mundo. A comédia invertia posições, sentando no banco dos réus os juizes, os sacerdotes, os policiais. Nas numerosas vezes em que eram apresentadas na língua dos imigrantes, as peças fizeram a ponte entre a vivência originária de muitos operários e a luta de resistência que conduziam naquele momento.

Recursos - As festas libertárias sempre foram promovidas em prol de alguma causa. A função pecuniária foi necessária, uma vez que as organizações proletárias eram paupérrimas. Contudo, mesmo enquanto "levantadoras de fundos", as festas eram uma forma de aprendizado político, na medida em que os operários assumiam o custo financeiro de sua resistência. Para tanto, uma ampla mobilização era necessária, já que as festas não estavam isentas de eventuais déficits. (22)

Em cada edição dos jornais era feita cuidadosa prestação de contas de seus custos: a partir desses demonstrativos fica-se sabendo que a venda avulsa não cobria os gastos. Esta situação de permanente endividamento dos jornais obrigava ao recurso de rifas, de "subscrições voluntárias" e principalmente de festas. As festas em prol dos jornais às vezes rendiam bem mais que a venda avulsa.

Conclusão

Apesar de seus limites, o "festival" anarquista seguia uma proposta de libertação, relacionando-a com atividades, como os jornais, e com grupos concretos. Sendo o povo o financiador das próprias iniciativas, a festa carrega forte potencial de conscientização, pois emprega a pedagogia da participação e revela na prática o custo econômico da resistência. O teatro sintetiza a denúncia do real com a projeção do utópico, peneirando a autêntica identidade operária e separando-a dos efeitos da alienação.

Sem deixar de ser lúdica, a festa libertária conseguiu concretizar uma dimensão pedagógica voltada para a libertação. Esse evento múltiplo, orgânico às condições existentes, inovou dentro dos limites do historicamente possível.

Bibliografia

FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: Difel, 1976.

FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1978.

KHOURY, Yara Aun. As greves de 1917 em São Paulo e o processo de organização proletária. São Paulo: PUC, 1978.

PINHEIRO, Paulo Sérgio. HALL, Ichael. A classe operária no Brasil. São Paulo: Alfa Ômega, 1978.

Notas

1 Khoury, 1978: pp. 27-29

2 Fausto, 1936, p.36

3 ibidem. p. 237

4 ibidem. p. 245

5 ibidem. p. 91

6 Ferreira, 1978, p.108

7 ibidem, p. 59

8 Pinheiro e Hall, op. cit.: p.197.

9 A Plebe, no. 22, 1919, p. 2.

10 A Plebe, no. 25, 1919, p. 1.

11 Pinheiro e Hall, op. cit.: p. 92

12 ibidem, p. 119

13 A Plebe, no. 1, 1919, p. 2.

14 A Voz do Trabalhador, no. 24, 1913, p. 1.

15 A Plebe, no. 8/9, 1919, p. 3.

16 A Plebe, no. 14, p. 2.

17 A Plebe, no. 3, 1919, p.1.

18 A Plebe, no. 89, 1920, p. 3.

19 A Vanguarda, n. 23, 1921, p. 2

20 Eis alguns exemplos de programação das festas: em prol do jornal A Voz do Trabalhador, com as peças A anedota e Pecado de Simonia, apresentação de poesias, conferência; promovida pelo Centro de Sindicatos Operários, com uma conferência sob o título 'Tributo de Sangue", um drama em 5 atos (Os maus pastores), finalizando com baile familiar; em prol das vítimas de greve, promovido pelo Circolo Sociale Cuore de Arte e pelo grupo dos Jovens Incansáveis, com o drama Sangue fecundo, o recitativo social Sem pátria, rifa e baile familiar; pró-escola proletária promovido pela Sociedade dos Laminadores, apresentando os dramas O Cristo da agonia, O melhor juiz é a consciência e a comédia O dinheiro não vale nada, seguindo-se poesias dos alunos, palestra e "animado baile familiar"; ouverture pela orquestra; "interessante" conferência; drama "O Veterano da Liberdade"; quermesse com "vistosos" prêmios; baile; promovida pela União dos Empregados em Cafés, orquestra; conferência; comédia "O Tio Padre"; ato variado com o artista caipira Nhô Bamabé e o imitador Napoleão de Aguiar; bailarinos, quermesse e baile familiar entremeado com leilão.

21 A Voz do Trabalhador, n. 4, p. 2.

22 A Vanguarda, nos. 26 e 46.


*Prof. Dr. Jorge Claudio Ribeiro é jornalista e professor do Depto. De Teologia e Ciências da Religião da PUC/São Paulo.

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