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Hílcar Leite e a reportagem engajada
Tentativa de recuperação de um tempo histórico da crônica policial

Por José Amaral Argolo*

"Podia ser mal-entendido, gafe, o diabo. Mas o fato é que, no quarto, ainda de smoking, deixou-se possuir de uma certeza mortal. A mulher, diante do espelho, tirava os brincos.
Ele apanhou o revólver. E, muito calmo, disse:
- Não tenho coragem de te matar.
Luciana viu, através do espelho, quando o marido encostou o cano do revólver na própria fronte e apertou o gatilho."

Nelson Rodrigues: O Raffles,
in A coroa de Orquídeas, p. 83

A premissa que serve de esteio ao pressente ensaio, bastante consolidada no campo das Ciências Sociais Aplicadas, é a de que os tempos de distensão política facilitam aos jornalistas ações e questionamentos sobre todos os focos de interesse. No cotidiano ultra-segmentado das metrópoles onde existam bolsões de pobreza e atos de desídia administrativa, prevalece e prevalecerá a perder de vista, independentemente de qualquer processo de redemocratização, uma grande atração pelas informações referentes às nem sempre claras manobras palacianas, enquanto ganha corpo e reverbera a reportagem policial.

Em seguida à criação do Curso de Jornalismo, no âmbito da Faculdade Nacional de Filosofia (conhecida histórica e afetivamente como Fenefi) da Universidade do Brasil, à época localizada na Avenida Presidente Antonio Carlos, Centro do antigo Distrito Federal; exatamente onde hoje estão instalados o Consulado Geral da Itália e, no primeiro piso - como reminiscência e razão comercial de uma era mais feliz - o venerando Bar Filosofia, estudantes, funcionários técnico-administrativos e professores se reuniam no intervalo das aulas, para tomar uma xícara de café, comer sanduíches de queijo ou de pernil e conversar sobre os destinos do País. Estamos todos, neste momento imaginário, na segunda metade dos anos cinqüenta, visualizando ao longe as primeiras luzes indicativas da década de sessenta.

Um resumo dos fatos mais importantes daquele período:

  • Duramente atacado pela Imprensa após o mal sucedido atentado praticado contra o Sr. Carlos Lacerda, na Rua Toneleros (Copacabana), no qual perdeu a vida o major da Força Aérea Rubens Florentino Vaz (fato este registrado há cinqüenta anos, aos quarenta minutos da madrugada de 5 de agosto de 1954) (1); pressionado ao patamar do insuportável pelos militares que anteviam uma sublevação em escala nacional caso aquele crime não fosse apurado e os responsáveis (mandante e executores) punidos exemplarmente, Getúlio Dornelles Vargas escolheu o caminho do suicídio ou foi ajudado neste sentido por uma pessoa muito próxima, na tarefa de apertar o gatilho do revólver calibre 32.

  • No dia 11 de Novembro do ano seguinte (1955) o general Henrique Duffles Teixeira Lott deflagrou um Putsch bem sucedido graças ao prestígio entre a oficialidade e talento do general Odílio Denys. Este episódio (ação esta justificada à época pelo próprio Henrique Lott como Retorno à ordem constitucional vigente) ainda reverberava com intensidade no meio militar e, asseguram os historiadores, dele derivaram outras crises ainda mais polêmicas, incluindo-se a entrega festiva da Espada de ouro ao Ministro da Guerra (general Henrique Lott), um ano depois.

  • Acrescente-se a Rebelião de Jacareacanga (1956), chefiada pelo major Haroldo Coimbra Velloso, esfrangalhada graças à intervenção das tropas pára-quedistas cujo comando, pouco antes, comprometera-se a não intervir (a Revolta de Aragarças, sob a coordenação do tenente-coronel João Paulo Moreira Burnier, ainda estava por acontecer [1959]) e era a vez de o noticiário se ocupar com as ações e postulações de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Belchior Marques Goulart, Adhemar de Barros, Miguel Arraes, Magalhães Pinto, Leonel de Moura Brizola e (novamente) Carlos Lacerda, entre outros.

Naquele tempo, em que ainda havia razoável mercado de trabalho tanto nos diários como nas emissoras de rádio era escassa e os quadros da reportagem integrados basicamente por dois tipos de profissionais.

Um corte para a telinha.

A televisão brasileira engatinhava no eixo São Paulo-Rio de Janeiro e, entre os profissionais que já se destacavam nesta nova mídia devem ser citados Carlos Pallut, Raul Longras (com suas frases irônicas e repletas da gíria que compõe o fabulativo policial, do tipo: à meia-noite, hora em que o lobisomem faz seu carnaval, este boneco... [e apontava para a fotografia de um indivíduo que havia sido preso ou morto a tiros em confronto com policiais], e Jacinto Figueira Júnior [cujo programa de reportagens intitulado O Homem do Sapato Branco provocava impacto ainda hoje não superado]), esses três radialistas (aos quais veio a se somar depois Flávio Cavalcanti) davam o tom das matérias sensacionalistas .

Por sua vez os proprietários das corporações jornalísticas brasileiras, ainda que embrenhados na selva das disputas políticas, ocupavam-se cada vez mais com as questões financeiras e administrativas. As linhas editoriais buscavam quase sempre atingir os objetivos pautados pelos interesses comerciais.

Simples a confirmação: face às despesas cada vez maiores para assegurar a manutenção e/ou ampliação dos parques industriais, pagamento dos salários e encargos sociais - somado às perspectivas de abertura de novas frentes lucrativas, estes senhores (cópias reduzidas do magnata da Comunicação William Raldolph Hearst), modificaram aos poucos o status de que tanto se orgulhavam: o de jornalistas.

Resumidamente cito alguns exemplos no Rio de Janeiro.

Roberto Marinho, republicano e udenista convicto, era um profissional da

Imprensa na acepção da palavra. (2) O diretor-redator-chefe do Globo, título que apreciava acima de qualquer outro, começava a estender seus interesses para muito além da Rua Irineu Marinho 35, no Centro do Rio de Janeiro.

Assis Chateaubriand, O Velho Capitão, ainda não sofria da doença degenerativa que, no final da vida, o impediu de deixar o leito (seus textos eram datilografados com os dedos dos pés numa máquina especial). Guardava, até então, considerável prestígio devido ao poderio dos Diários Associados.

Samuel Wainer mostrava-se bastante fragilizado politicamente após o suicídio de Getúlio Vargas (seu grande avalista no empréstimo com prazo a perder de vista para fundar aquele que, no seu entendimento, tinha tudo para ser um diário de circulação nacional [Última Hora]), além de estar endividado até o pescoço.

Tenório Cavalcanti (Luta Democrática) enfrentou naquele período conturbado problemas ainda mais graves. Eclipsava-se lenta e gradualmente aos olhos da Opinião Pública a presença imponente daquele homem barbado, usando sempre chapéu preto e capa da mesma cor, com um colete moldado em aço à prova de balas sob o paletó, a metralhadora Ina calibre .45 utilizada para se "proteger" dos desafetos...

O outrora poderoso coronel do município fluminense de Duque de Caxias viu sua casa-fortaleza ser invadida várias vezes e acabou preso uma vez consolidado o Movimento Militar de Março de 1964.

O Homem da capa preta, apelido que o satisfazia e impunha respeito junto à Opinião Pública, conquistara projeção nacional quando abraçou a defesa do tenente Alberto Jorge Franco Bandeira, Suspeito Número 1 de ter morto a tiros o bancário Afrânio Arsênio de Lemos, no interior de um automóvel da marca Citröen estacionado na Ladeira do Sacopã, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Bandeira fora condenado a 15 anos de prisão, num dos episódios de maior reverberação na crônica policial da Cidade (ver na Bigliografia as reportagens elaboradas por Ubiratan de Lemos com fotografias de Indalécio Wanderley, publicadas na Revista O Cruzeiro e distribuídas em oito edições consecutivas).

O Sr. Antonio de Pádua Chagas Freitas, em meados dos anos cinqüenta, assenhorou-se de dois diários: O Dia e A Notícia. O segundo deles, vespertino. A partir daí foi conquistando espaço cada vez maior na Imprensa Fluminense. A tal ponto que, trinta anos depois, na década de oitenta, O Dia era o jornal mais vendido nas bancas do Rio de Janeiro.

Advocacia, Letras e Jornalismo

Como resultado desses fatos (e mesmo antes, grifo nosso), o comando das redações nos principais diários do Distrito Federal ficou quase que integralmente sob a tutela de bacharéis em Ciências Jurídicas e/ou graduados na área de Letras. Não que tais pessoas fossem requisitadas para preencher estas funções pelo fato de preencherem todos os requisitos indispensáveis ao Jornalismo seguindo parâmetros internacionais, mas - didaticamente, no primeiro caso - por um estranho e fascinante deslocamento profissional.

O Jornalismo abria (como acontece ainda hoje) portas para novos contatos a cada jornada de trabalho. Por sua vez, os escritórios de advocacia na época, com raríssimas exceções, não conseguiam captar clientela e tampouco receita suficientes para garantir o pagamento do aluguel, condomínio, salário das secretárias, ajuda de custo para os estagiários, honorários de contador e despachante, antecipação das custas processuais etc.

A dupla jornada de trabalho (escritório de advocacia/jornal) diminuía, pois, o risco de colapso financeiro e assegurava remuneração condigna àqueles profissionais. Muitos - não todos, é claro! - especializaram-se na área policial. Afinal, onde mais encontrar tantos clientes em busca de soluções para problemas que poderiam ser equacionados por intermédio de um simples habeas corpus? Ou uma boa defesa em Vara Singular? Ou, hipótese mais delicada, nos tribunais do Júri?

Aliás, não há nem nunca houve qualquer impedimento formal neste sentido determinado pelos Conselhos (Federal e Estadual) da Ordem dos Advogados do Brasil. Salvo se, por hipótese, o repórter dublê de advogado for aparentado de algum dos implicados ou tenha atuado ativamente da cobertura jornalística daquele episódio. As restrições estão consolidadas no Código de Ética do Advogado.

Destaco ainda, como curiosidade sobre este tempo heróico do Jornalismo, que a primeira Editoria de Economia (no Rio de Janeiro, ainda Estado da Guanabara) foi criada somente em 1963, no Globo. O editor foi Sr. Pery Cotta (também advogado inscrito regularmente na OAB-RJ). Entre outras reportagens de fôlego que elaborou, destaco as relacionadas ao chamado Episódio Parasar (3) e ao Escândalo da Proconsult, (4) ambos de amplo conhecimento por parte da Opinião Pública.

Estes homens (poucas mulheres!), muitos dos quais - o tempo e os acontecimentos comprovaram - deslocaram-se após uma ou duas décadas de contribuição exclusiva às lides jornalísticas, para a vida pública e outras atividades: seja como parlamentares (Carlos Lacerda, Amaral Netto), advogados especializados (Humberto Teles e Tenório Cavalcanti, ambos criminalistas), e/ou escritores de nomeada, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Antonio Callado - ex-correspondente da BBC em Londres, durante a Segunda Guerra Mundial - Otto Lara Rezende e Rachel de Queiroz.

Dentre estes bacharéis/literatos tenham nascido ou não na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, mas que deixaram marcas no Jornalismo (torna-se difícil deixar de observar nos novos jornalistas, além do desconhecimento sobre o passado histórico e da profissão, um certo desprezo por tudo aquilo que não seja técnico, operacional ou que não tenha a ver com apertar botões e estar conectado) destaco Prudente de Moraes, neto (Pedro Dantas, articulista de O Estado de S.Paulo), Barbosa Lima Sobrinho, que foi depois Governador de Pernambuco (ambos, destaque-se, ex-presidentes da Associação Brasileira de Imprensa) e Carlos Frederico Werneck de Lacerda (ele abandonou o curso de Direito no segundo ano para mergulhar com força e inteligência no caldeirão da política e no subterrâneo das conspirações que sacudiram o País.

Acrescento um pouco mais sobre o assunto.

A graduação em Direito é, na área de Ciências Humanas, a que habitualmente melhor prepara os estudantes para a vida. Seja pela dinâmica e conteúdo das aulas (principalmente de Direito Civil, Penal, Constitucional, do Trabalho, Comercial, Processo Civil e Penal), ou pela quantidade e intensidade das leituras necessárias à perfeita compreensão e extensão dos fenômenos jurídicos.

Leituras que se estendem de Aristóteles a Nicolau Maquiavel; de Thomas Hobbes a John Licke e Jean-Jacques Rousseau; de Gabriel Tarde a Émile Durkheim; de Francesco Carrara a Cesare Beccaria; de Nelson Hungria a Pontes de Miranda; de Flamínio Fávero e Hélio Gomes a Delton Croce e Miguel Reale. E, partindo destes, aos contemporâneos como Michel Foucault e Umberto Eco.

Quanto àqueles bacharéis na área de Letras, a opção pelo Jornalismo explicava-se por si. Onde mais havia tanto espaçodisponível para elaborar e difundir bom texto? Nos diários e revistas, é claro! No Brasil, fora o eixo Rio de Janeiro-São Paulo, a indústria editorial era incipiente e poucos escritores conseguiam sobreviver única e exclusivamente da Literatura. O caminho mais acessível e lógico era, portanto, a Imprensa. Daí as páginas especiais, os ensaios, as crônicas versando sobre o dia-a-dia da cidade, os comentários a respeito dass tragédias passionais...

Não que todos fossem como Nelson Rodrigues. Aliás, ninguém foi como ele: brilhante, absoluto desde 1925 quando começou a atuar na imprensa, aos 15 anos (ver na Bibliografia de referência parte da sua extensa produção). Nelson Rodrigues (a quem sou e serei sempre grato pelos conselhos e sugestões que me deu, quando, jovem repórter, trabalhava no Globo) criou um estilo inconfundível, seja como jornalista, cronista e dramaturgo.

Quase todos os seus personagens foram criados e filtrados a partir do noticiário policial.

O comando nas redações, entre o final dos anos quarenta, meados da década de cinqüenta (e estendendo-se daí por diante até meados dos anos setenta), isto é, durante todo o tempo em que perdurou a Guerra Fria, era exercido de maneira bastante diferente do que hoje se vê.

"Havia menos chefes do que índios", comentaria, por exemplo, Alves Pinheiro, poderoso grão-vizir e chefe-de-reportagem do Globo; além disso, os recursos tecnológicos eram limitados, bem como os meios de transporte (repórteres viajavam de bonde ou lotação. A utilização de táxis era somente autorizada em casos excepcionais).

Apesar das restrições orçamentárias e das dificuldades observadas nos quesitos transportes, comunicação e tecnologias, os jornalistas cobriam com muito zelo e competência os principais fatos do cotidiano, notadamente aqueles de natureza política (centrados no Palácio do Catete, sede do Governo antes da mudança para Brasília, no Planalto Central do País) e os episódios de ampla reverberação provenientes da crônica policial, de considerável reverberação numa metrópole cujas ruas e avenidas ainda estavam livres das ações praticadas pelas facções do crime organizado e do tráfico de entorpecentes.

Não que este flagelo não existisse. Cocaína, por exemplo, era comercializada livremente nas farmácias como medicamento. Maconha era coisa de pobre, dos desocupados e dos bandidos que atuavam na fímbria dos morros e para eles voltavam rapidamente após um pequeno furto. Raramente se aventuravam na Zona Sul, permanentemente mais vigiada, ou chegavam à Tijuca (bairro atualmente sob a mira de armas automáticas e literalmente tomado de favelas: Salgueiro, Borel, Formiga; do complexo do Catumbi-Rio Comprido [São Carlos, Mineira, Fungá, Fallet, Escondidinho, Portugal Pequeno] e das comunidades localizadas em Vila Isabel, sua vizinha próxima [entre as quais o Morro dos Macacos Pedra Branca e Pau da Bandeira]).

Os próprios bairros, vistos a partir desta lente hipotética que me serve agora como instrumento de prospecção eram muito diferentes do que se observa no tempo presente.

Comecemos pelo Centro da Cidade. Os morros da Candelária, Providência e Pedra Lisa, assim como os bairros proletários da Gamboa e do Santo Cristo, serviam como base para as moradias não somente dos auxiliares da estiva, como daquelas pessoas que exerciam funções ainda mais humildes: lavadeiras, engraxates, vendedores de amendoim, feirantes, empregados das leiterias etc.

Olaria, por exemplo, margeando a antiga Estrada de Ferro Leopoldina, era uma área de sítios e chácaras repletas de árvores frutíferas árvores frutíferas, destinada ao lazer dos que viviam próximos da orla da Baía da Guanabara e não pretendiam fugir para muito longe, para a região serrana quando chegava Verão. Ali, o único senão ficava por conta da chamada Invernada, órgão da Polícia Civil onde indivíduos suspeitos de participação em crimes ficavam confinados até que se comprovasse a sua culpa e de onde eram transferidos para outras unidades prisionais sediadas no Distrito Federal.

A Invernada era um local cavernoso. Comentava-se sobre a existência de um poço abandonado, onde - depois de espancados - alguns desses presos eram jogados e mantidos até a morte por inanição.
Falo agora de Vila Isabel, reduto de compositores e boêmios, com seus bares sempre e boa música durante a madrugada. Atualmente uma região densamente povoada e com problemas agudos no que tange à segurança.

Cito São Cristóvão, com os imensos jardins da Quinta da Boa Vista outrora limpos e cuidados; das alamedas levando ao conjunto arquitetônico do Museu Nacional e, um pouco mais adiante, na parte externa, o parque de diversões, muito pobre se comparado às Ilhas da Fantasia e acqua-centers disseminadas pelo País, mas com uma história triste e curiosa que ganhou corpo no noticiário dos jornais.

A da menina que brincava num carrossel e morreu em conseqüência das picadas de uma jararaca que se escondera na parte oca do cavalinho de pau.

Sobre o segundo grupo no coletivo dos diários e emissoras de rádio, posso comentar com certa desenvoltura, até porque tive o privilégio de trabalhar com alguns. Estas pessoas tinham (em comum com seus chefes), tato e sensibilidade em larga escala. Integravam uma massa crítica de profissionais formados e pós-graduados na escola das ruas; gente que passara parte da adolescência e o início da idade adulta engajada em movimentos sindicais e/ou revolucionários, que apresentavam densa bagagem de leituras e forte impregnação de natureza política e partidária.

A ordem é aleatória: Curzio Malaparte, Friedrich Engels, Ernest Hemingway, Gilberto Freyre, Giovanni Papini, Machado de Assis, André Maurois, Axel Munthe, Euclides da Cunha, não eram nomes e tampouco volumes desconhecidos nas prateleiras das estantes desses profissionais do Jornalismo. Diferente do que acontece hoje, quando vemos estagiários ou jornalistas recém-formados saindo às ruas para reportar este ou aquele fato inteiramente desprovidos de orientação prévia e com leitura mínima, quase restrita ao próprio jornal onde trabalham (e ainda assim com limitações).

Como subsídio às pesquisas futuras, cito três pessoas que, originárias da escola das ruas, projetaram-se no Jornalismo Brasileiro.

A primeira delas é um leitor finíssimo de Carlos Drummond de Andrade. Chama-se Luiz Carlos de Oliveira (LCO). Começou sua trajetória jornalística ainda garoto em Minas Gerais; veio para o Rio de Janeiro e, tempos depois, fundou a Agência Jornal do Brasil. Foi assessor de Comunicação Social de Itaipu, coordenador de Comunicação Social da Secretaria de Educação nos governos Faria Lima e Marcelo Alencar; diretor de Jornalismo da Rede Bandeirantes de Televisão (RJ) durante nove anos e oito meses.

O repórter que havia somente completado o Segundo Grau, especializou-se em política e, sem desdenhar a reportagem policial (até porque, durante certo tempo, foi redator em O Dia) juntamente com Carlos Castelo Branco e Evandro Carlos de Andrade (ambos falecidos), formou um trio de ases na Imprensa do Rio de Janeiro.

Luiz Carlos de Oliveira está aposentado. Vive em Rio das Ostras, cidade litorânea do norte do Estado e, no momento, rascunha um livro de memórias. Documento precioso que seus dois amigos: Carlos Castelo Branco e Evandro Carlos de Andrade não tiveram tempo de elaborar.

O segundo repórter era, em 1964, um modesto vendedor de máquinas de escrever que, por mera casualidade, foi convidado a trabalhar na Última Hora, ainda sob a tutela de Samuel Wainer. Quarenta anos depois, percorrida uma longa estrada na reportagem policial dentro e fora do País, é uma das estrelas do telejornalismo brasileiro. Chama-se Domingos Meirelles, escritor (As noites das Grandes Fogueiras) jornalista e apresentador (Linha Direta, Linha Direta-Justiça).

O terceiro deles é Luis Carlos Sarmento, provavelmente o melhor repórter da sua geração e sobre o qual trataremos adiante.

Um trotskista no jornal popular

Destaco por justiça e dever de ofício a figura de Hílcar Leite, durante muitos anos Chefe de Reportagem no plantão da madrugada do Jornal O Dia (do Rio de Janeiro, quando a empresa ainda pertencia ao Sr. Antonio de Pádua Chagas Freitas) e onde o autor destas linhas trabalhou exatos cinco anos: de 1983 a 1988.

Como inexistem livros, coletâneas, ensaios, artigos e separatas versando sobre esta personagem, até porque a História Rica e Pitoresca da Imprensa Popular no Rio de Janeiro ainda não foi escrita, sirvo-me de uma dupla perspectiva para ilustrar o texto: da memória datada e do privilégio de ter exercido várias funções naquele diário, tanto na produção (repórter, pauteiro e chefe de reportagem interino) como na edição (colunista, redator e subsecretário interino).

Hílcar Leite tinha duas paixões: o marxismo interpretado sob o viés do trotskismo, e a Reportagem Policial, a quem tributava cuidado todo especial porquanto, segundo ele, registrava as pequenas tragédias cotidianas, a violência praticada contra os cidadãos mais humildes, os trabalhadores - ainda que eventualmente atingisse pessoas de classes sociais mais abastadas. O noticiário policial rendia manchetes e chamadas em profusão.

Nas madrugadas (ainda hoje é assim durante os plantões) acontecem com freqüência episódios violentos: ajustes de contas entre antigos e novos desafetos, tragédias passionais, como o já citado Crime do Sacopã (visto à frente como um estudo de caso), a ação dos grupos de extermínio disseminado nas principais cidades do País e as iniciativas sangrentas e desafiadoras dos serial killers.

Hílcar Leite era uma pessoa ao mesmo tempo doce e pragmática. Quando fui trabalhar em O Dia, elegeu-me - por questão de tato e afinidades culturais - seu confidente para assuntos políticos... e policiais! Tão-logo soube da minha formação jurídica concomitante à de jornalista, e sempre que havia uma trégua no troca-troca de mensagens no rádio-alcagüete instalado à sua frente, no extremo oposto da grande mesa da redação; isto é, quando os transmissores-receptores dos bombeiros, perícia e das polícias civil e militar deixavam de comunicar acidentes, incêndios e crimes diversos, ele puxava conversa a respeito do desatino dos governantes (ainda vivíamos sob o Regime Militar), e recordava algumas tropelias praticadas tanto na juventude como durante o Estado Novo.
Sobre a criminalidade urbana, costumava repetir, num sopro de voz:

- Há pessoas que, por descuido ou desinformação, apressam o seu próprio fim e o encontram de modo violento.

Quando ao destino dele próprio, Hílcar Leite, foi antecipado pelo excesso de cigarros (quase quatro maços por dia), somado quatro anos depois ao desgosto por ter sido alijado do cargo que ocupava em seu santuário noturno quando das mudanças estruturais e de orientação de conteúdo implementadas no jornal face à chegada da equipe contratada pelo Sr. Ary de Carvalho, novo proprietário daquela empresa jornalística.

Hílcar Leite chegava cedo à Redação. Por volta das 20hs-21hs no máximo, lá estava ele. Vestia-se quase sempre da mesma maneira:

camisa azul de mangas curtas, calça em tonalidade clara, gravata invariavelmente torta e paletó ligeiramente amarfanhado, que pendurava na cadeira. Num canto da boca, o indefectível cigarro.
Como resultado disso, ao longo dos anos, o enfizema que o deixou com apenas um terço de um dos pulmões funcionando. A sua voz, quando fui trabalhar junto ele, era quase um murmúrio seguido de tosse e pigarro grosso.

Atrás da cadeira, fixado à meia altura e como resíduo sentimental de uma era que estava próxima da extinção, havia um retrato pintado a crayon de Santa Cruz Lima, ex-Secretário da Luta Democrática e considerado um dos maiores mancheteiros da Imprensa fluminense. Este retrato foi removido no dia seguinte à defenestração de Ruy Santa Cruz do cargo de Secretário de Redação (função esta equivalente à de editor-chefe em outros jornais).

Santacruz Lima era pai de Antomary Ruy de Santacruz Lima, igualmente bom jornalista embora às vezes autoritário e rancoroso por conta de coisas menores. Ruy destacava-se como um criador de manchetes, desses que infelizmente já não se fazem mais.

Ruy Santacruz, posso dizer hoje, vencidas as paixões do tempo, era como uma força da natureza. Ficava indócil quando notava, ao chegar à redação, que a manchete não estava definida. E procurava formular soluções mirabolantes para "acertar no alvo", isto é, o ponto máximo de interesse para os leitores. Identificava-se com eles, produzia a primeira página com a sensibilidade que (imaginava) agradaria o leitor comum, e lia o jornal como se fosse um deles.

Era até engraçado vê-lo assim, impaciente, girando a cadeira de um lado para o outro até que, de repente, chegava um telegrama originário das agências noticiosas internacionais, ou um repórter voltava da rua trazendo informações sobre um fato insólito, muitas vezes beirando o sobrenatural.

Certa vez a manchete veio da Índia. Um elefante furioso tinha esmagado aproximadamente quarenta pessoas durante uma festa de casamento. O local? Uma aldeia distante não sei quantos quilômetros da capital. De outra, um repórter experientes foi mobilizado para a Baixada Fluminense porque, no quintal da casa de um pequeno agricultor e criador de animais, tinha nascido um pinto... com quatro patas!

Ruy Santacruz gostava de provocar, de checar as reações da sua equipe. Quando tinha dúvida se uma fotografia deveria ou não ser publicada na primeira página, consultava os subsecretários e redatores. Prevalecia quase sempre a de maior impacto junto ao seu staff.

O todo-poderoso Secretário de Redação manteve-se leal à bandeira do Chaguismo até o dia em que foi comunicado pelo Sr. Thassilo Mitke (mantido provisoriamente como Diretor de Jornalismo, embora desprovido de qualquer força política) sobre a venda do jornal ao Sr. Ary de Carvalho. Ele e o Sr. Thássilo Mitke foram deportados depois, cada qual a seu tempo, para o limbo jornalístico.

Thássilo Mitke, ex-correspondente durante a Campanha da Força Expedicionária Brasileira na Itália, junto com Joel Silveira e Rubem Braga, embora uma pessoa um pouco amarga, gostava de prosear. Certa ocasião, quando conversávamos sobre a fase romântica da reportagem policial, lembrou que, por sua determinação (dele, Thássilo), o jornal tinha deixado de mostrar na primeira página fotografias de cadáveres mutilados e esquartejados. "Aquelas fotografias escabrosas simplesmente deixaram de ser publicadas", disse-me ele certa vez, quando conversávamos em seu gabinete na Redação.

De volta a Hílcar Leite.

O veterano jornalista e militante político levou para as redações, além da indiscutível sensibilidade e inteligência, uma singular história de vida, mesclando experiência política e percepção avançada sobre as causas populares. Não era um repórter de Polícia na acepção da palavra, mas conhecia o assunto com a delicada precisão de um relojoeiro. Com ele os fatos ganhavam proporção. Sabia identificar, neste ou naquele episódio, os detalhes que deveriam ser transportados para o imaginário das pessoas.

Conhecia, portanto, o espírito dos jornais populares.

Trotskista histórico, materialista dialético e, acredito eu, revolucionário até o último instante da sua existência, Hílcar Leite foi, no seu tempo de rapaz e já atuando na semiclandestinidade, um dos poucos quadros orgânicos da Juventude Comunista a viajar para Moscou e freqüentar o Curso de Capacitação Política oferecido pelo Partido Comunista da União Soviética.

Ali viveu um ano em regime de semi enclausuramento, estudando das 7 da manhã às 18 horas, com breves pausas para almoço e lanche. Em seguida, como o dinheiro disponível era curto e as diversões, restritas, o jeito era ficar no alojamento estudando, tomando e jogando xadrez para aguçar o raciocínio.

De regresso ao País, seguindo roteiro e meios de transporte não convencionais (pelo que me contou, viajou num navio de carga, evitando aparecer no passadiço e fazendo a higiene e refeições num pequeno cômodo, distante dos demais tripulantes), engajou-se na luta contra Getúlio Vargas e pagou um alto preço por isto. De 1939 a 1945 ficou encarcerado com outros militantes comunistas na fortaleza-prisão edificada na Ilha de Fernando de Noronha.

Devido às querelas políticas que fracionaram historicamente a esquerda brasileira, foi mantido até o final daquele conflito - exatamente por sua adesão ao trotskismo -isolado dos demais.

Disse-me ele certa ocasião, numa daquelas madrugadas mais amenas:

"aquele foi um castigo duro de suportar, mas éramos todos muito politizados, disciplinados, e não abríamos mão dos nossos princípios independentemente dos esforços para combater o nazi-fascismo e do posterior agravamento das relações políticas e internacionais entre os vencedores do conflito".

Um comentário adicional:

O assassinato de Leon Trotsky (em 1938, no povoado mexicano de Coyoacán), por um agente (Ramon Mercader) a mando de Josef Stálin, para Hílcar Leite fora ao mesmo tempo uma iniciativa perversa e um ato legítimo face à violenta disputa pelo poder que se travava na União Soviética, às vésperas do maior conflito armado da História.

Notas

1 SILVA, Hélio. 1954: Um tiro no coração. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 216-217; O Globo. (antetítulo conforme o original) "Para honra da Nação Brasileira, confio que esse crime não ficará impune, declara Eduardo Gomes a O Globo". Manchete: - O Atentado contra Carlos Lacerda - (subtítulo) " Morto ao seu lado um oficial da Aeronáutica e feridos o combativo jornalista e o vigilante municipal que tentara prender um dos criminosos". Distrito Federal, 5 de agosto de 1954.

Carlos Lacerda chegava à garagem da sua residência (o Edifício Albevânia, localizado no número 180 da Rua Toneleros), acompanhado do seu filho Sérgio e do major Rubens Florentino Vaz. Vinham de uma conferência proferida pelo primeiro no Colégio São José (na Tijuca, Zona Norte). Os três, mais o jornalista Amaral Neto e o industrial José Cândido de Souza viajavam no carro do major, um Studebaker. José Cândido de Souza ficou pouco antes no Centro da cidade e Amaral Netto em sua casa, na Urca.

Abaixo, um trecho do depoimento prestado por Carlos Lacerda à equipe de reportagem do Globo, ainda no Hospital Miguel Couto, para onde ele próprio e o major foram levados:

"Assim palestrando, chegamos à porta da minha casa. Notei, então, sem maiores preocupações, que próximo à esquina da Rua Hilário de Gouveia, quase em frente ao edifício onde resido, um homem pardo, magro, estava parado na calçada. Quase em frente ao edifício, do outro lado da rua, outro homem, este pardo e gordo, mantinha-se na mesma atitude. Observando que havia esquecido as chaves do edifício no bolso de outra roupa, pedi a meu filho que solicitasse ao garagista que abrisse a porta para nós. Sergio saiu, entrou pela porta de serviço e eu permaneci conversando com o major Rubens, até que ele voltou para comunicar que o garagista iria abrir a porta. Despedi-me então do major à porta do seu automóvel e voltei-me na direção da entrada. Vi então o homem pardo e gordo caminhar para mim e abrir o paletó. Tive a impressão exata de que ia sacar uma arma, o que ele de fato fez, começando a atirar. Agarrando meu filho saquei por minha vez do meu revólver, e atirei enquanto procurava abrigar Sérgio, correndo em direção à garagem. Ali chegando, disse-lhe que corresse para cima e dispunha-me a voltar, quando meu filho abraçou-se comigo, procurando impedir-me de enfrentar os assassinos. Levei-o para a escada e corri novamente para fora, a tempo de ver o homem pardo e gordo fugirem direção à Rua Paula Freitas. Atirei contra ele. E ele atirou contra mim outra vez. Descarreguei todas as balas de minha arma. Meu filho voltou à Rua. Percebi que a despeito da fuga do criminoso que eu enfrentara, alguém continuava atirando. Voltei à garagem com Sérgio, subi, pedindo que fosse avisar a amigos e vizinhos, e mais uma vez desci à rua, já pelo elevador social. Tinha esperança de encontrar ileso o major Vaz, mas essas esperanças foram desfeitas quando cheguei à porta. Ele estava caído na calçada, com sua camisa que momentos antes era amarela, ensopada de sangue abundante que lhe corria do peito. Várias pessoas acorreram ao local. Alguém ofereceu-nos um carro. Coloquei-me com ele no assento traseiro, depositando sua cabeça no meu colo. Rumamos para o Miguel Couto. Eu já havia sentido o meu ferimento no pé, mas esqueci-me dele quando a imobilidade do meu querido amigo nos meus braços deu-me a certeza de que ele deixara de viver. Aqui chegados, os médicos confirmaram o seu óbito".

2 Ao longo da minha carreira como jornalista, tive a oportunidade de constatar em várias ocasiões a coerência e dedicação do Dr. Roberto Marinho como empresário e jornalista. Durante certo tempo, quando atuava na reportagem do O Globo (entre o final dos anos setenta e início da década de oitenta), fui designado para trabalhar na madrugada,. Não poucas vezes ele telefonou para a equipe de plantão manifestando interesse em saber o que estava acontecendo na cidade. Eu mesmo, atendendo à determinação do secretário de turno, Sr. Deodato Maia, datilografei novos editoriais ditados ao telefone pelo Dr. Roberto Marinho. Ele costumava fazê-lo antes da impressão do segundo clichê. Em seguida, pedia que eu repetisse o texto devagar. Quando julgava melhor, corrigia alguns períodos até que se dava por satisfeito. Era uma pessoa afável e nunca deixou de telefonar na Páscoa, no dia de aniversário do jornal, no Natal e Ano Novo, para desejar saúde e prosperidade aos repórteres que estavam de plantão.

3 Trata-se, este, de um conjunto de denúncias dirigidas contra o então comandante do Centro de Informações Secretas da Aeronáutica, brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, no período mais turbulento do Regime Militar. Estas acusações, formuladas pelo Capitão Sérgio Miranda o Sérgio Macaco - ex-integrante do Parasar, grupo de salvamento, resgate e ações de comando da FAB - e tornadas públicas por intermédio da Imprensa graças a uma carta elaborada pelo Brigadeiro Eduardo Gomes - um dos sobreviventes do episódio histórico dos Dezoito do Forte de Copacabana - e patrono da Força Aérea Brasileira revelam que o brigadeiro João Paulo Moreira Burnier e outros oficiais, segundo alguns historiadores (e fundamentado no noticiário da época), integrantes de um segmento mais exaltado, pretendiam explodir o Gasômetro do Rio de Janeiro, localizado nas proximidades da Rodoviária, bem como seqüestrar e eliminar numeroso grupo de empresários, militares, intelectuais e parlamentares que se opunham ao regime. As vítimas seriam transportadas em aeronaves da Força Aérea e jogadas no mar, muitas milhas além da costa.

Estas acusações provocaram, além da ampla comoção nacional, a abertura de um Conselho de Justificação arquivado depois por falta de provas. Até hoje, entretanto, perdura a dúvida no meio civil sobre se esta ação criminosa seria empreendida. No meio militar, porém, as acusações são tidas como improcedentes.

4 Quanto ao Escândalo da Proconsult, refere-se à tentativa de fraude na contagem dos votos sufragados em favor do Sr. Leonel de Mora Brizola , candidato ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, nas eleições de 1982. Este fato foi denunciado por intermédio da Rádio Jornal do Brasil.


*José Amaral Argolo é jornalista profissional e doutor em comunicação pela UFRJ, ocupa atualmente o cargo de Diretor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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