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Artigos


Leituras Suicidas:
análise de uma conferência
de Gilberto
Amado de 1910

O Fait Divers e a má leitura, uma contribuição da História Social da Cultura para a História da Imprensa Brasileira

Por Valéria Guimarães*

No Rio de Janeiro de 1910, Gilberto Amado pronunciou uma conferência, gênero muito em voga na época, intitulada "Crime e Suicídio", mais tarde reunida no volume "A Chave de Salomão e outros escritos" onde comenta um crime de assassinato:


Um caso de polícia

ilustração de Roberto Rodrigues
Revista Para Todos (1927)

Dias passados, correu a notícia de um crime notável, um caso nietzschiano, um romance de individualismo violento cujos antecedentes literários andam pelas obras de Dostoievski, pela tragédia dannuziana Più Che l'Amore e cujas circunstâncias cênicas dariam páginas de uma intensa vibração dramática. Foi o caso do bacharel que envenenou um rapazito que educara com requintado carinho e que escolhera para instrumento da sua ambição monstruosa. Estávamos, porém, em plena ebulição da revolta; ninguém pode nos atropelos do terror fixar atenção nesse estranho drama de uma vontade delirante, que, numa sofreguidão mórbida da fortuna, premedita um crime e o executa com a meticulosidade de um profissional.
Em Paris, um caso assim daria aos jornais uma inesgotável fonte de sensações; seriam as enquêtes, as reportagens ruidosas; falariam notabilidades, especialistas ou não; clínicos, criminalistas, professores, psiquiatras, literatos, a definir, cada um a seu pensar, a natureza do fenômeno. Aqui não chegamos a esses hábitos de vulgarização, nem os nervos têm essa vibração fácil. (1)

Ele se refere aqui a um fait divers publicado pelos jornais à época de sua conferência. Este tipo de notícia, como nos faz supor a fala de Gilberto Amado, tinha ampla circulação e sua história era compartilhada coletivamente. Basta ele resumir "o caso do bacharel que envenenou um rapazito" em poucas palavras que seu ouvinte poderia identificá-lo rapidamente. Era mais um "caso" entre tantos outros que corriam pelos jornais e bocas da cidade.

O que mais chama atenção, no entanto, é a comparação que o pensador faz entre o "notável" do crime e seus "antecedentes literários" - um folhetim de Dostoievski, uma tragédia de D'Annunzio - e o potencial cênico do "caso" de "intensa vibração dramática".

Realidade e ficção aparecem indissociáveis na notícia.

O que ele chama de "reportagens ruidosas" são fórmulas pra vender jornais, de claro tom sensacionalista, inspiradas no modelo francês de grande circulação desde o século XIX, momento de modernização da imprensa. A marca é o exagero, o extraordinário, o romântico e o dramático. A realidade é contada como ficção e muitas vezes toda a narrativa é uma invenção. Em um fait divers encontramos o mundano e indefinido do cotidiano.

A sociedade dos grandes centros urbanos brasileiros como Rio de Janeiro e São Paulo na passagem do dezenovevinte, sob os auspícios da revolução científico-tecnológica, sofria um processo intenso de modificação que incluía desde sucessivas reformas urbanas até a difusão de novos valores e padrões, onde a Imprensa ocupava papel de destaque pelo seu poder de integração e circulação de informações.

Contar crimes e fatos extraordinários dessa maneira dava um charme a mais para a sociedade, um ar chic e europeu, dava a chance àquela elite com sede de se atualizar e entrar no ritmo do maquinismo de se ufanar "de possuir, como eles possuem, grandes e horrendos crimes".(2)

Quando Gilberto Amado comenta em sua conferência um fait divers, ele também está fazendo esta ligação entre uma cultura tida como referência, a cultura francesa, e seus pares brasileiros. Aqui, como ele diz, não se chegou ao mesmo grau destes "hábitos de vulgarização", "inesgotável fonte de sensações" em uma sociedade ávida por reconhecer a si próprio na sua diferença, no "outro", que via, escandalizada, aparecer nos jornais.

De fato, na França o fait divers era recurso muito usado pela imprensa, a qual requisitava as opiniões de especialistas para tentar explicar fatos que, como esse comentado pelo conferencista, escandalizavam a opinião pública. Por aqui estes hábitos apenas começavam, mas já existiam, com a consulta aflita às vozes da medicina, do direito e da literatura, em busca de uma resposta dada por estas autoridades.

A brevidade da notícia, a facilidade propiciada pela não necessidade de referências anteriores, a linguagem que misturava reportagem e folhetim, atraíam e entretinham ao mesmo tempo. E, além disso, o fait divers também era um suporte para a circulação dos ideais de civilização inspirados nas doutrinas cientificistas e deterministas amplamente presentes no discurso da virada do século XIX para o XX.

A Escola do Recife, faculdade de direito e grande centro intelectual da época, foi porta de entrada destas doutrinas no Brasil. Nela, inclusive, Gilberto Amado formou-se bacharel, sob os auspícios da Geração de 70, grupo de intelectuais que se investiram de uma missão civilizadora, difundindo os novos ideais em prol da nação brasileira.

É interessante notar que além de seu discurso estar impregnado destas referências intelectuais, quando ele comenta o fait divers sua leitura parece determinada pela estrutura folhetinesca da notícia: porque ela é romanceada, ele vê associação entre morte e literatura. Vejamos a continuação de sua preleção:

É curioso observar, porém, com esse caso, que, aliás, interessa pela sua complexidade e pelo seu ineditismo, como a estação tem sido fértil em dramas estranhos e complexos. É a árvore, o desequilíbrio da sensibilidade, são as múltiplas perversões da época, a saciedade da vida. As formas variam. Há dias foi o caso misterioso de S. Paulo: um cadáver aparece boiando no Tietê. É um lindo rapaz, cabelos claros, pele fina, mãos leves e uma expressão de doçura que a morte não transmudara. Na autópsia, abrindo as vestes, a polícia reconhece espantada que este lindo rapaz é uma mulher, uma virgem de 17 anos. Esta menina tem namoradas, com quem, fingindo-se homem, se corresponde liricamente, desperta ciúmes e quase ateia suicídios; e nas vigílias da meia-noite, após os trabalhos do dia, lê os mais complicados autores, as filosofias mais estranhas, escreve versos em que há, segundo dizem, uma emoção profunda. Esta menina foi caixeiro, viveu entre rapazes, fumou charutos, notambulou pelos cabarés e com seu ar andrógino, falas finas, penas grossas e olhar doce, suscitou suspeitas pícaras. Mas a curiosidade comum não avançou muito. Maria Prairie passou pela vida em São Paulo, entre a admiração úmida das moçoilas e o encanto intrigado dos homens, sendo o belo Mário, um adolescente suave que tinha uma graça muito langue de gestos, uma voz musical e uns olhos mansos. Um dia aparece flutuando ofelicamente sobre as águas. O mistério. Não há explicações que elucidem o caso; e creio, até hoje a polícia de São Paulo, de olho arregalado e faro aceso, procura vãmente a revelação.
Tem um perfume singular de romanesco, de macabro, a história dessa raparigota que lê autores rebarbativos. (3)

Pelos jornais ele soube deste fait divers de suicídio que tornou-se ainda mais extraordinário devido ao travesti e às leituras feitas pela moça, caso que ficou muito conhecido na imprensa paulista pelo título de "Mulher-Homem". (4) Novamente aqui aparece a escória da sociedade, a antítese do civilizado homem moderno, ligado às leituras perigosas, rebarbativas, ou seja, desagradáveis, repelentes.

Levanta, no início deste trecho que acabamos de ler, a ligação certa entre crimes, suicídios e o clima: "como a estação tem sido fértil em dramas estranhos e complexos". Este é um típico raciocínio determinista que defendia a relação entre manifestações da natureza e o indivíduo. Com a ampla difusão do cientificismo entre uma camada intelectual adepta fervorosa do determinismo, formada nos Institutos Histórico-Geográficos ou nas Faculdades de Medicina e Direito, o clima era entendido como um dos fatores que mais influenciava o comportamento humano. (5)

E ele segue tentando, em seu raciocínio, achar alguma lógica para estes "casos" monstruosos. Cita outro "caso", o da "rua Miguel de Paiva":

...o fulminante drama da rua Miguel de Paiva, que é de uma inexplicabilidade psicológica verdadeiramente de atarantar. Todo mundo pergunta a razão por que se mataram estes dois jovens de 17 e 15 anos. Eles amavam-se com vivacidade primaveril; eram protegidos em seus amores; cochegavam-se todos os dias em intimidades cálidas; aproveitaram decerto estes momentos para entressonhar venturas menos superficiais, e nessa embriaguez sentimental radiaram perspectivas suaves - um larzinho fecundo, pontualidades burocráticas do marido, ternuras permanentes da mulher, esses devaneios fatais dos 17 anos, que, apesar de se repetirem todos os dias, não perdem o sabor do encanto. Resolvem acabar com tudo isto, e com uma decisão que tanto tem de pronta quanto de definitiva, escrevem alguns barbarismos pernósticos e põem de improviso duas famílias e a sintaxe da consternação. Não quero aludir ao estado de exaltação nervosa a que naturalmente chegaram os dois jovens, na proximidade em que viviam, juntos longas horas, justamente nos calores fumegantes da puberdade recém-desabrochada. Nem me dou a discutir o suicídio. Nessa matéria, aliás, as opiniões estão bem divididas.

Neste trecho do autor sobre um duplo suicídio de um jovem casal fica claro novamente como o fait divers é compartilhado pela comunidade: "Todo mundo pergunta a razão por que se mataram estes dois jovens". Esta mobilização social faz dos intelectuais os pivôs na busca das razões que expliquem tais atos extraordinários e macabros, sobretudo quando em contraste com um panorama idílico como era a vida do casalzinho. Como escrevem bilhetes, logo vem a associação com possíveis leituras. Como são jovens, logo salta aos olhos de seus contemporâneos a possibilidade de a fase da vida em que se encontravam, que acreditavam determinadas por reações orgânicas, ter relação com seus atos.

A aceitação das teorias evolucionistas, que parte deste discurso científico, implicava o reconhecimento da inferioridade "natural" daqueles que não estavam absolutamente "adaptados" ao meio em que viviam.

A pobreza, o desajuste social, o criminoso, o louco, o suicida, o viciado, a mania, a exaltação nervosa, enfim, todos aqueles que não se enquadravam no modelo de indivíduos bem sucedidos, não só materialmente, mas também socialmente, eram dados como inferiores.

Se formos mais longe, e não podemos neste artigo, veremos como isso vem do vazio deixado pelo fim do racismo tradicional e da sociedade do privilégio, onde as diferenças eram asseguradas pelo nascimento. Como a doutrina liberal deixava um vazio neste sentido, a ciência, cuja glória esteve vinculada ao próprio liberalismo, vinha sanar esta lacuna existente na teoria, instituindo diferenças "naturais".(6)

Existiam basicamente duas tendências das teorias racistas na Europa: a teoria monogenista e a poligenista. A primeira propunha que a espécie humana teria uma origem comum cuja evolução dava-se como um gradiente que ia do menos ao mais desenvolvido. Os poligenistas pensavam na origem múltipla dos homens, atribuindo a ela o grau de desenvolvimento de cada tipo racial. Esta teoria fortaleceu a interpretação biológica e deu respaldo para novas técnicas como a frenologia e a antropometria, que visavam detectar a capacidade humana através do tamanho de partes do corpo.(7)

No Brasil, estas idéias chegam juntas em um ambiente intelectual eclético, herdado das teorias européias do século XIX, o que inclui o positivismo, o evolucionismo e o naturalismo.(8) Esse ecletismo é notado na notícia: ela incorpora esse universo mental. Aparecem referências à raça (que se confundia com nacionalidade), idade, estado civil e às características físicas (antropometria).

A legitimação do controle social que se estabelece com a consolidação do ideário nacional, sobretudo nas cidades que se urbanizam, tem origem, portanto, nestas doutrinas. Os novos profissionais resgatados para agir sobre a sociedade não se restringem apenas ao médico ou ao juiz, mas incluem também o arquiteto, o engenheiro, administradores, urbanistas, enfim, técnicos em geral, formando a nova "burocracia científico-tecnológica".(9)

Estas novas teorias surgem e colocam em cheque as explicações tradicionais.

Não se trata de vincular automaticamente aqui o nacionalismo com a dessacralização do mundo, mas entendê-lo em face aos valores já existentes e profundamente arraigados na cultura popular, como a religião e a monarquia.

Isto é, o nacionalismo não vem em substituição, mas em sobreposição ao passado. E a palavra escrita e, sobretudo impressa, é um dos componentes da formação da comunidade imaginada seja através da imprensa, seja dos livros.(10)

Esta elite intelectual brasileira, da qual faz parte Gilberto Amado, acabou se revestindo de verdadeira missão civilizadora. O projeto regenerador foi colocado em ação, resultando em um esforço coletivo dos homens de pensamento. Na busca do entendimento deste "outro" a elite erudita se esmera em delinear teorias que a um só tempo dessem conta de traçar éticas de comportamento ligadas aos ideais de progresso e civilidade e de caracterizar o que era considerado, por assim dizer, anormal e patológico, prejudicando o caminho evolutivo positivo.

Todos os assuntos estavam em pauta neste momento de estruturação de uma identidade e o suicídio também passa a ser tema de reflexão. A ambivalência entre a identidade e alteridade passa a ser a peça-chave deste pensamento que se compõe como guia dos novos rumos da nação. Desde o século XIX, com base na teoria de Martius, passou-se a adotar a idéia da constituição da nação brasileira sobre os pilares das três raças, onde o elemento branco seria o encarregado de civilizar os selvagens índio e negro e a nação deveria caminhar para o progresso guiada pelas mãos do saber erudito proveniente do solo europeu.

Este historiador, que ganhou o concurso brasileiro no Instituto Histórico e Geográfico, acabou influenciando os componentes da escola do Recife como Sílvio Romero e Araripe Junior e através destes torna-se um legado intelectual que vigora até, pelo menos, a década de trinta do século XX. (11)

Daí que Gilberto Amado, como seus mestres e contemporâneos, vai levantando inúmeras possibilidades para explicar os prodígios que tomam as páginas de jornais e a opinião pública.


Roberto Rodrigues. Ilustração
para o jornal "Crítica" (1929)

De um lado está o noticiarista. Quando uma rapariga engole um copo de ácido fênico, ateia chama às roupas, ou algum desesperado estala a cabeça com uma bala, o bom senso do repórter otimista declara: "a tresloucada moça", o "tresloucado rapaz", e assim interpreta a reprovação do Estado; do outro lado, opondo-se ao luzido corpo dos noticiaristas nacionais, se alinham alguns sujeitos não menos luzidos. É uma grande linhagem que vem do Eclesiastes até Schopenhauer, Leopardi e outros que os continuam, os quais demonstram, com uma lógica ainda não contestada seriamente, que o suicídio é a única solução lúcida ao mal originário de ter nascido. (...)

E esta semana ainda os telegramas nos contaram o comovente caso do criado de Tolstoi, que não querendo sobreviver ao Mestre, deita-se sobre o túmulo onde ele repousa, abre as veias e ali, com abnegação, expira. (...)
Porque sendo realmente "tresloucados", eles, os dois jovens, chegam com sua poesia arbitrária às mesmas conclusões de desalento, do horror à vida, à mesma sensação de inanidade e vazio, a que atingiu aquele poeta sombrio a quem chamaram o "cisne negro de Recanati" e que compôs o Canto Noturno de um Pastor Nômade na Ásia, e à mesma negação da vida daquele filósofo de Francfort, um dos raros que Tolstoi não catalogou entre os imbecis. (...) Felizmente nem todo mundo olha para a vida com profundeza. (...) Nem a vida foi criada para ser contemplada; sim para ser vivida. Para que não a olhemos, é que as religiões nasceram, e que o doce véu da ilusão primeira caiu-nos sobre os olhos. Talvez porque nesta hora de esclarecimento universal o véu se esgarce, ela aparece ao homem, a espaços, como toda a nitidez, na sua horrenda inanidade.
Mas, nada no mundo acontece de irremediável; à medida que se extinguem as crenças, que as ilusões se esvaem, e que o olhar do homem ia a pousar-se, numa inquirição desalentada sobre a vida, ei-lo que é arrastado num turbilhão novo. A ciência, despovoando o céu, rasgou todas as ilusões, mas criou a pressa moderna. Multiplica ao infinito os meios de ação; obriga o homem a correr, de modo que nessa vertigem as imagens se aligeiram, e o seu olhar não tem o instante de contemplação que desalenta. (12)

Loucura, como dizem os cronistas, que da mesma forma que os relatórios oficiais colocam o suicídio ao lado das doenças mentais? Extrema lucidez, como a passagem da Bíblia faz supor ou autores de grandes clássicos defendem? Influência dos "telegramas", dos elementos forasteiros que invadem a sociedade brasileira junto com os ares da civilização? Ou da ausência de religião, que desaparece como explicação aceita, sendo substituída pela ciência? Não, nenhum destes motivos pode explicar, para Gilberto Amado, estes casos misteriosos.

Para o nosso conferencista o que leva a estes atos é a leitura que fazem os assassinos ou suicidas, cujos autores são "assassinos invisíveis". São, para ele, casos da vida imitando a arte.

Este caso do duplo suicídio prova também quanto a realidade justifica a arte. Quando D'Annunzio fez o Trionfo della Morte não minguaram críticos que levaram à conta da fantasia pervertida do poeta a história romântica de Hippolyta e de George. E na sua essência psicológica, as duas paixões muito se assemelham. Mas a influência dos autores pode gerar a realidade. Todos os dramas que referi tressuam reminiscências literárias. No caso do bacharel, parece ouvir-se um escritor do neo-individualismo dizer ao herói Raskolnikov ou Conrado Brando: - "Vai, mata, sê rico; os homens amanhã te aplaudirão; tu serás querido, adulado, feliz" (...) Na história de Maria Prairie andam as sombras da fantasia romanesca; há romances e filosofias no seu mistério. (...)
Quanto a Nelson e Zulmira, os noivos trágicos da semana, estavam em pleno período romântico. O bardo sabia talvez de cor Casimiro de Abreu, Soares Passos e outras aves noturnas desse tempo. Muitas vezes aos ouvidos da "barda", em vez do cicio cálido do beijo, soaram cavamente estrofes do Noivado do Sepulcro. Sente-se em todo o drama um eco de traduções baratas. Andam nesse caso, invisíveis, com responsáveis mandantes, sujeitos como Hector Malot, George Ohnet e outros. São uns assassinos: são uns verdadeiros "impunes", contra os quais a sociedade não tem armas nem pode precaver-se. Numa escala superior, os homens de gênio são verdadeiros devastadores. Quantas mortes não terá Goethe? E Balzac? (13)

Ele não busca na sociedade - à época um cenário de vertiginosa mutação, onde a maioria da população estava sujeita à mais terrível opressão e miséria - uma causa para a presença ostensiva da violência entre os personagens que protagonizam a notícia. O máximo a que o escritor se permite é pensar tais aberrações frente ao que chama de "múltiplas perversões da época". Não há qualquer tipo de análise sócio-econômica.

Todas as análises se voltam para questões morais, uma espécie de contágio pelas palavras. Para Amado, os suicidas agem levados pela sua inspiração macabra em leituras consideradas ruins, de escritores tidos como "responsáveis mandantes" destes crimes horripilantes.

Entendida como um organismo neste contexto, a sociedade está à mercê do bom funcionamento dos órgãos que integrados devem concorrer para a saúde do todo. A leitura intensiva, que na intimidade do quarto podia causar "a desordem dos nervos e o esgotamento do corpo",(14) tal qual as práticas sexuais solitárias, era alvo de condenação pelo discurso médico, entendida como patológica e contagiosa.

Nesta breve análise da conferência de Gilberto Amado que nos propusemos neste artigo vemos, portanto, a busca do entendimento do "outro", estranho e ameaçador, através do uso das teorias deterministas então em voga. A idéia de uma leitura que exerce má influência sobre os leitores, no entanto, já era presente muito antes da difusão maciça das doutrinas positivas. A confusão entre o mundo da leitura e o da realidade era tido como prejudicial desde o século XVIII, pelo menos. Com a medicalização do discurso, como ocorre à época da palestra em questão, a leitura intensiva e mais ainda a solitária, são tidas definitivamente como patológicas, verdadeira epidemia. No caso dos leitores serem considerados seres degenerados, como o suicida, ou simplesmente "inferiores", como a mulher, este risco se multiplicava ao infinito, sendo alvo das mais sérias preocupações, como podemos ver em Gilberto Amado. (15)

Podemos constatar também uma intensa circularidade de um substrato cultural comum, compartilhado pelo leitor de jornais, pelo intelectual Gilberto Amado e pelo cronista, que a notícia traz à tona, reforçando as teorias subjacentes ao discurso da elite, que por sua vez acha espaço no periódico, num ciclo infinito.

Da mesma forma, sobretudo, vemos a clara distância entre um projeto regenerador de elite que frente ao desconhecido mundo dos horrores tentava explicações as mais diversas, sempre em busca de trazer para o seio da sociedade o indivíduo saudável e produtivo.

Se formos um pouco mais longe, poderemos arriscar que talvez esse abismo que separa estes mundos tão díspares também se dê em função de modos diversos de encarar o mundo.

Além de ser mais "fácil" de ler, estas "traduções baratas" trazem junto com as marcas de oralidade uma forma de se relacionar com o mundo diferente daquela que surgia na cultura escrita. Talvez daí o desprezo a que são relegadas. Mesmo o fait divers, inspirado até o último grau neste tipo de literatura popular, acusa a leitura de estar por trás das mortes narradas, visto que registra as leituras feitas pelos personagens que aparecem nas páginas policiais. Disso sabemos pelo próprio discurso de Gilberto Amado, que tem como fonte os jornais como forma de se inteirar de detalhes - que ele parece julgar como verdadeiros e incontestáveis, embora em nossa pesquisa termos provas abundantes de que o formato do fait divers permite uma grande liberdade, digamos assim, do jornalista.

Um exemplo é quando ele afirma sobre a "mulher-homem": "e nas vigílias da meia-noite, após os trabalhos do dia, lê os mais complicados autores...". Esta informação só pode ter vindo da sua leitura das crônicas semanais.

O leitor é visto como suscetível, porque inferior, mau leitor. Apenas por momentos ele tenta colocar no mesmo patamar grandes literatos e leitores pois que estes "chegam com sua poesia arbitrária às mesmas conclusões de desalento, de horror à vida, à mesma sensação de inanidade e vazio, a que atingiu aquele poeta sombrio", referindo-se a Leopardi, poeta italiano do século XIX, grande influência para os românticos.

Mas essa nobre comparação não se mantém, posto que são eles, os jovens personagens dos fait divers, "realmente tresloucados". Ainda que aparente querer eximir os leitores de sua parcela de culpa jogando-a sobre os ombros dos escritores, há subjacente afala de Gilberto Amado o tempo todo a admissão de um mau leitor, frágil talvez, mas despreparado para separar convenientemente realidade e ficção.

Por isso arriscamos esta tentativa de explicação, onde o conceito de representação nos é caro.

Uma vez que para nós, letrados, representar implica uma operação abstrata, para uma parte do nosso leitor-ouvinte do início do século XX, representar vinculava-se diretamente a presentificar, materializar. Não há uma mediação abstrata. Levando em conta a presença de uma maioria não letrada ou letrada em graus diversos, muito rudimentares, expostos a uma sociedade ainda predominantemente oral, o homem comum que pertence à esta sociedade não "reconhece este ato de idealização ou de abstração, mas pelo contrário, [o faz] como uma participação no universo que o rodeia."(16) Para os leitores cultos, ao contrário, os relatos de crimes, mortes e horrores em geral soavam como grosseria, exposição sádica, quase uma superstição.

Em resumo, para nós ou para os leitores cultos ou medianamente cultos da época, leitores de jornais, os fantásticos dramas e aventuras dos romances baratos representam, no sentido moderno do termo. Para os personagens que compõem as tragédias estampadas e expostas nas páginas de jornais, essa representação trazia para o convívio público a história em detalhes, o que a superdimensionava.

Trabalhar com o conceito de representação, portanto, implica admitir a existência destas duas dimensões. Uma, a que estamos familiarizados, que é a do cronista e dos homens letrados: representar é abstrair. Outra, que nos causa estranhamento e desconforto, é a da população que lia ou ouvia literatura folhetinesca (e mesmo os próprios os casos de crimes publicados nos jornais): que é a ausência da representação, para dar lugar à presentificação propriamente dita.

Intelectuais como Gilberto Amado acabam por concluir que o problema é o livro e seu autor, que leva a uma verdadeira leitura suicida, que, por sua vez é contagiosa, uma ameaça à organicidade social e ao progresso. Quando o que ocorre é um distanciamento tal entre os projetos (o da elite e do povo) que torna a avaliação correta impossível, mesmo por estes homens brilhantes.

Eles não conseguem ver, como ninguém viu em Canudos ou no caso de Febrônio Índio do Brasil,(17) que a chave para entender esta ausência de diferenciação entre o que é lido e o que é vivido não estava num atraso ou numa suposta incompetência da maioria. Mas na forma como estes digeriam o mesmo substrato social.

O sucesso que estas notícias tinham, circulando de boca em boca, estava mais relacionado ao fato de sua estrutura retomar certas fórmulas da cultura popular como o exagero, que é um recurso mnemônico, ou como a transformação dos personagens em heróis, cujas histórias todos compartilhavam.

Com as leituras de romances se dava o mesmo encanto e interesse de uma parcela da população que se identificava com seus tipos e situações.

O leitor do jornal, principalmente o público masculino, afeito mais a uma leitura pragmática e informativa que de entretenimento, via os fait divers com desprezo e baixaria, com histórias que só vinham confirmar a fraqueza, suscetibilidade e inferioridade naturais desta gente.

É mais plausível supor que, embora o sensacionalismo nas notícias incentivasse o "circo de horrores dos suicídios", a violência era algo muito presente nesta sociedade independente de uma influência externa.

Não são os livros, a Imprensa, os folhetins (ou hoje a TV, o cinema e a música) que causam violência ou levam alguém a ser assassino ou a se matar. É a sociedade violenta que gera tanto os criminosos quanto o sensacionalismo.

Notas bibliográficas

1. AMADO, Gilberto. Crime e Suicídio In: A Chave de Salomão e outros escritos, SP/RJ: José Olympio, 1947, Col. Obras de Gilberto Amado, vol. I, p. 83.

2. BROCA, Brito apud MEDINA, Cremilda. Notícia: um produto à venda - jornalismo na sociedade urbana industrial. SP: Summus editorial, 1988, p.52.

3. AMADO, Op. Cit., p. 84 - 88.

4. O Estado de S.Paulo, 22/11/1910.

5. Cf. SCHWARCZ, Lilia. O Espetáculo das Raças - cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. SP: Cia. Das Letras, 2001.

6. HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital-1848-1875. SP: Ed. Paz e Terra, 1997, 5a edição, p. 370.

7. Cf. SCHWARCZ, Op. cit.

8. CRUZ COSTA, Panorama da História da Filosofia no Brasil. SP: Ed. Cultrix, 1959, p. 40.

9. SEVCENKO, Nicolau (org.). O Prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso In: NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil. SP: Ed. Cia. das Letras, 1998, vol. 3, pp. 15-17.

10. Cf. ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional, SP: Ed. Ática, 1989, série Temas, vol. 9.

11. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, SP: Cia. Das Letras, 2000, p. 66.

12. AMADO, Op. Cit., p. 85-87.

13. Idem, p. 87-88.

14. CHARTIER, Roger. Do palco à página - publicar teatro e ler romances na época moderna, séculos XVI-XVIII. RJ: Ed. Casa da Palavra, 2002, p. 107.

15. Idem, p. 108.

16. KRISTEVA, Julia. A linguagem na História. In: História da Linguagem, Lisboa: Ed. 70, 1969, p. 69.

17. Cf. SEVCENKO, Nicolau. Op. Cit. Ver também Orfeu Extático na Metrópole - São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos vinte. SP: Cia. das Letras, 1992.

*Valéria Guimarães é Doutoranda do Depto. de História Social da Cultura da FFLCH/USP e Professora do curso de jornalismo da UniFiamFaam.

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