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Artigos


Subsídios para a compreensão da cobertura jornalística da Polícia Política no Estado do Rio de Janeiro (1979-81)

Por José A. Argolo*

Documentos oficiais, manuscritos inéditos (tais como cartas, ordens pessoais, bilhetes, rascunhos) e depoimentos que, por sua natureza, contribuam para esclarecer determinados fatos, costumam ser aceitos e valorizados como peças de referência não somente nos procedimentos destinados à instrução judicial, mas em trabalhos acadêmicos.

Alguns, inclusive, são interpretados como imprescindíveis à compreensão deste ou daquele episódio, a exemplo do estranhíssimo telex enviado (de Brasília) pelo comandante-geral da Polícia Militar fluminense, Nilton de Albuquerque Cerqueira, ao coronel Ile Marlen Lobo Pereira Nunes (determinando a suspensão do policiamento externo do Riocentro, na noite de 30 de abril de 1981), ou dos diários do presidente Getúlio Dornelles Vargas recentemente liberados por seus herdeiros para publicação - ainda que cortados em certas passagens mais "picantes" ou envolvendo personalidades ainda vivas.

Não sem razão cresceu no meio editorial o interesse pelo relato de personalidades da vida nacional, seja no que diz respeito àqueles que (segundo a ótica dos governantes) prestaram relevantes serviços ao Estado, ou em se tratando dos que contra ele se insurgiram nos períodos contaminados por dispositivos jurídicos de exceção.

Destacam-se, pois, nesta relação infelizmente reduzida no Brasil, as entrevistas concedidas pelo general Góes Monteiro (a Lourival Coutinho), Osvaldo Cordeiro de Farias (a Aspásia Camargo e Walder de Góes), Carlos Lacerda (à equipe de O Estado de S. Paulo), Luiz Carlos Prestes (a Dênis de Moraes e Francisco Viana), Antônio Carlos Magalhães (a Marcelo Pontes e outros). E, ainda, as declarações acrescidas da cessão - em caráter definitivo - da coleção de documentos (aproximadamente dez mil), feita pelo general Golbery do Couto e Silva ao jornalista Élio Gaspari (no momento emprestando sua inteligência à tarefa de dar os últimos retoques no texto do quarto e quinto alentados volumes - os três primeiros já publicados - sobre a chamada Era Geisel), bem como o pormenorizado relato concedido pelo próprio general-presidente Ernesto Geisel à equipe de historiadores do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (totalizando mais de 40 horas de gravação).

Coadunam-se com esta visão inovadora a trilogia publicada - no início dos anos oitenta - pela Editora O Estado de S.Paulo, contendo entrevistas do gênero pingue-pongue com expressões da vida brasileira (Ivete Vargas, Oscar Niemeyer, Darcy Ribeiro, Henrique Teixeira Lott, Hélio Jaguaribe etc), obra esta que apresenta como único porém o fato de não ter sido reeditada e ampliada relativamente ao número de tomos.

E, por extensão - nos planos da documentação e da memória política - os livros de Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá (Imagens da Revolução), Francisco Antonio Doria (No Tempo de Vargas), Roberto Campos (A Lanterna na Pôpa), Domingos Meirelles (As noites das Grandes Fogueiras), Luís Mir (A Revolução Impossível), Jacob Gorender (Combate nas Trevas - A Esquerda Brasileira: das Ilusões Perdidas à Luta Armada), que tratam de um ciclo histórico ainda não suficientemente dissecado.

Da mesma forma, o trabalho não dogmático do repórter especializado merece importância, já que a sua meta optata é assegurar à Opinião Pública informações precisas, ajudando-a a compreender melhor os episódios que, num fragmento temporal, impulsionaram ou retardaram as ações dos governantes.

Destacam-se, neste primeiro caso, os cinco volumes enfeixando dezoito anos da coluna diária finamente elaborada por Carlos Castello Branco, indiscutível e incontestável Termômetro Político da Imprensa Brasileira.

No presente caso, a intenção do Autor é oferecer aos pesquisadores interessados no tema um resumo do que foi possível anotar e recordar durante a recidiva dos atentados perpetrados na antevéspera da redemocratização do País. Momentos difíceis para os (pouquíssimos) repórteres acreditados na Secretaria de Segurança Pública, pois, a cada explosão ou incêndio de autoria desconhecida, correspondia a desagradável e imediata estratégia do "fechamento"; isto é, os portões e corredores da Polícia Política eram bloqueados e nem sempre os jornalistas (no esforço para proporcionar informações fidedignas aos leitores) conseguiam burlar a vigilância.

Relato

As jornadas de trabalho nunca se repetiam, apesar da rotina que (aparentemente) marca o início das manhãs nos diferentes setores da Administração Pública - com as pessoas chegando para o serviço cheirando a água de colônia e sabonete; os ternos e vestidos recém-passados. Todavia, para aqueles repórteres especialmente designados, a cobertura jornalística da Secretaria de Estado de Segurança Pública, na segunda metade da década de setenta - quando a "distensão lenta e gradual" implementada pelo general-presidente Ernesto Geisel evoluía no plano prático e passou a ocupar espaço cada vez maior no noticiário -, era uma "caixa de surpresas". Mesmo nos "dias de calmaria" era necessário guardar o fôlego para as tempestades ocasionais. Estas, por sua vez, manifestavam-se sob inúmeros disfarces:

  • Sob a forma de adendos às ordens judiciais encaminhadas aos diretores de departamentos (e ao próprio secretário), quase sempre relacionadas a acusações de práticas lesivas à paz social (ao tempo em que o Autor destas linhas cumpriu sua missão profissional junto à SSP, dois foram os titulares da Pasta: Edmundo Adolpho Murgel e Waldyr Alves Costa Muniz - ambos generais reformados, já falecidos);
  • Camufladas sob o indicativo de "greves brancas" impulsionadas por esta ou aquela facção insatisfeita com as determinações do secretário;
  • Abertamente provocativas e traduzidas por intermédio de sirenatas, passeatas nas ruas do Centro da Cidade, bloqueio de ruas e avenidas e disparos para o alto durante o sepultamento de policiais tombados no cumprimento do dever (tais episódios decorriam do interminável conflito entre os quadros de ambas corporações encarregadas de prover a segurança dos cidadãos e os representantes do Poder Judiciário, face às denúncias sempre freqüentes de violações dos Direitos Humanos);
  • Mediante pequenos atos de sabotagem no âmbito burocrático, objetivando minar as ordens do secretário e dos seus auxiliares;
  • Por intermédio de pronunciamentos (e atos públicos) sempre contundentes da presidência da Associação dos Delegados de Polícia e do Clube dos Oficiais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, numa época em que liberais e ortodoxos (isto é, adeptos da linha dura) disputavam o comando da SSP;
  • A partir da elaboração e disseminação de textos apócrifos, panfletagem e interferência clandestina no sistema de transmissão-recepção do Centro de Coordenação de Operações de Segurança;
  • Como contrapartida ao impacto provocado pelo noticiário dos jornais, revistas e emissoras de rádio e TV. Submetida durante anos à censura prévia, a Imprensa passou a destacar os fatos policiais que podiam ser interpretados à luz da política e a denunciar abusos e irregularidades.

Memória da Violência

O antigo e sólido prédio cinzento situado no número 40 da Rua da Relação, esquina com Inválidos (três pavimentos ocupando amplo quadrilátero; o espaço central aberto e dando vista para um pequeno pátio), era um dos locais mais emblemáticos para o noticiário da época.

Com efeito, mesmo passados tantos anos, era impossível dissociá-lo das histórias de violência ali praticadas durante o Estado Novo e - com menor intensidade - após a decretação do Ato Institucional Número 5 (no dia 13 de dezembro de 1968).

De 1979 em diante, porém, a sombra misteriosa e fria do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), criação do ex-tenente (e, contraditório registro, integrante da Coluna Prestes) Felinto Müller, já não se projetava tanto sobre a população do Rio de Janeiro. Seus delegados, detetives, analistas e inspetores integravam um aparato quase burocrático.

Inversamente ao observado em outras unidades da Polícia Civil (como as Delegacias Especializadas), nas salas e corredores não se notavam homens armados, nem eram ouvidos gritos e reclamações dos presos... pelo simples fato de que a carceragem estava praticamente desativada.

O Gabinete do diretor do Departamento de Polícia Política e Social (denominação adotada após a Fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975) e a Delegacia Política e Social (DPS), no terceiro pavimento - de onde, nos Anos 30, alguns descontentes com o Governo foram jogados para a morte pelos esbirros de Felinto Müller (o ator e compositor Mário Lago contava histórias tenebrosas a respeito) ou preferiram o suicídio à tortura -, ofereciam em comum apenas o silêncio das repartições de movimento quase inexpressivo.

Durante esta fase da vida republicana - aproximando-se o crepúsculo do Regime Militar -, as operações repressivas ou de monitoração aos grupos de oposição eram efetuadas basicamente pelas equipes dos órgãos de Inteligência das Corporações Armadas: Centro de Informações do Exército - CIE; da Marinha - Cenimar; e da Aeronáutica - Cisa, além das redes de observação e análise do SNI.

Um exemplo sobre como este último gerenciava o trabalho das equipes nas capitais: os escritórios da Agência-Rio do Serviço Nacional de Informações ficavam no último andar do prédio do Ministério da Fazenda (Centro da Cidade); mas as projeções avançadas ocupavam imóveis próprios ou alugados em áreas vizinhas às universidades, sindicatos etc, de modo a facilitar a vigilância em relação aos estudantes e trabalhadores em geral.

Um desses birôs - era voz corrente na época - ficava na Rua Farani (Botafogo), quase em frente ao restaurante Zero Zero Quatro (freqüentado pelos alunos das instituições particulares de ensino superior mais próximas: Universidade Santa Úrsula, Faculdade Hélio Alonso, Instituto Metodista Bennett e Fundação Getúlio Vargas).

Apesar da estratégia fixada pelo Governo no sentido da desmobilização do aparato da Polícia Política estadual e da transferência dos gigantescos arquivos acumulados em décadas de paciente trabalho para instalações militares inominadas, era sempre possível (por intermédio de conversas com delegados, escrivães ou detetives) extrair informações importantes.

O trabalho dos jornalistas apresentava certa complexidade face à natureza sensível das questões. Era exigida cautela (devido às injunções políticas) e savoir faire na relação com as fontes - algumas delas acostumadas a sonegar informações ou transmiti-las tão-somente em off -, além de prudência na elaboração do texto, por causa do caráter reservado dos documentos obtidos ou transcritos. Daí a utilização de fórmulas práticas embora evasivas, como por exemplo: "uma fonte do Gabinete do secretário", ou "um delegado que faz jus à estreita confiança do diretor do DGIE...".

Especificamente sobre os atentados verificados no Rio de Janeiro (entre 1979 e 1981), a elaboração do noticiário exigia cuidados adicionais; isto porque - desde aquela época - existiam fortes indicativos de conivência entre agentes da "velha guarda" do DPPS e os extremistas da Direita . De início transpiraram comentários sobre a (quase) impossibilidade de identificação dos autores; posteriormente, porém, as suspeitas se avolumaram, devido à interferência de algumas autoridades (no exercício de cargos executivos), no sentido de obstaculizar os esforços para a elucidação desses crimes.

Ficou clara, por exemplo, a colaboração de agentes do DPPS com os extremistas que incendiavam bancas de jornais (onde eram vendidos semanários alternativos), pichavam prédios públicos e empastelavam escritórios/sucursais dos periódicos que faziam oposição ao Governo.

"Sabemos quem foi. São pessoas protegidas por esquemas poderosos e, mesmo que nós quiséssemos, nada poderíamos provar contra elas", assegurou ao Autor um policial especificamente sobre às explosões que destruíram parte das unidades impressoras da Tribuna da Imprensa, na Rua do Lavradio 98.

Esta e outras informações não foram imediatamente comprovadas porque, apesar dos inquéritos instaurados, as conclusões jamais chegaram ao conhecimento da Justiça e da Opinião Pública. Na prática, os relatórios de campo (e as análises periciais) eram encaminhados ao diretor do DPPS (em situações especialíssimas ao superior deste no DGIE) que - a seu critério -, recomendava novas diligências ou determinava o arquivamento.

Sistemática de trabalho da Imprensa na SSP

Os jornalistas chegavam ao prédio da Secretaria, na Rua da Relação esquina com Gomes Freire, entre 9 e 10 horas da manhã, conversavam com o assessor de Comunicação Social e seus (dois) auxiliares, de modo a atender às indagações da Pauta ou da Chefia de Reportagem e, em seguida, liam o Diário Oficial do Estado do RJ (parte do Executivo) e o Boletim de Serviço - órgão de circulação interna onde são transcritas instruções extensivas aos servidores daquela Pasta, advertências e transferência de funcionários.

Entre os repórteres credenciados havia um pacto não escrito segundo o qual, no final da tarde, todos deviam trocar entre si as informações coletadas. Se alguém recebia uma "dica" importante, compartilhava-a com os demais. As exceções diziam respeito às matérias exclusivas (publicadas preferencialmente nas edições dominicais), abordando assuntos do interesse específico de cada diário.

Em casos como estes, se houvesse reclamação por parte das respectivas chefias, os outros repórteres tinham como defender-se, argumentando que aquela notícia fora tratada confidencialmente, ou que os documentos publicados no jornal concorrente ali chegaram por intermédio dos Correios. Tais procedimentos - embora corporativistas - surtiam os efeitos desejados, uma vez que a disputa pela primazia das informações entre os repórteres dos diários fluía com a mesma intensidade que o fantasma das demissões. Como curiosidade vale assinalar que, muito dificilmente, as emissoras de televisão mobilizavam equipes para a SSP. A justificativa era costumeira: falta de pessoal.

Todavia, apesar das precauções adotadas pela cúpula da Polícia, vez por outra o noticiário era sacudido por terremotos provocados graças à perspicácia deste ou daquele jornalista. Tais "abalos sísmicos" originavam-se geralmente nos subterrâneos da própria Secretaria com reflexos na esfera política.

Assim aconteceu quando o Autor - literalmente sozinho [sequer pôde contar com o apoio de motorista e repórter-fotográfico], após meses de levantamento sigiloso ao qual não faltaram ingredientes de um topbook de espionagem (reprodução de documentos reservados com minicâmera fotográfica, conversas discretas em garagens de prédios residenciais e locais distantes do Centro da Cidade) - divulgou a cessão, por empréstimo, de automóveis recuperados pela Polícia ao Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e Primeiro Distrito Naval, com o objetivo de facilitar operações clandestinas de vigilância e captura de opositores do regime.

Na manhã em que as bancas receberam os jornais - e tão logo o secretário tomou conhecimento do noticiário publicado no Globo -, foi instaurada sindicância reservada no âmbito do DGIE para que fossem apuradas responsabilidades pelo vazamento daquelas informações sigilosas. Retaliações de todo naipe foram dirigidas ao repórter - "convidado" inicialmente a prestar depoimento perante uma Comissão Especial de Investigação; ao diretor da Divisão de Roubos e Furtos, delegado Armando Panno (que determinara o envio de ofícios ao Cenimar e ao 1º DN solicitando a restituição dos automóveis para que fossem devolvidos aos seus legítimos proprietários), e aos chefes de equipe que com ele trabalhavam.

A justificativa para a pressão: a publicação da reportagem (que motivou, inclusive, editorial no Jornal do Brasil, ver notas), desagradou o ministro da Marinha Maximiano da Fonseca e o comandante do Primeiro Distrito Naval, almirante Alfredo Karam. Os resultados da sindicância jamais foram revelados e, durante meses, os jornalistas credenciados na SSP encontraram sérias dificuldades para entrevistar o general-secretário Edmundo Adolpho Murgel.

Contatos

As visitas dos repórteres aos gabinetes dos diretores de departamentos e outros policiais exercendo funções de chefia eram diárias; um ou outro, porém, mostrava-se mais arredio, evitando conversar com a Imprensa; em contrapartida havia os que somente falavam com este ou aquele repórter com o qual mantinha amizade.

Esta receptividade, porém, não acontecia no âmbito da Polícia Política; seja pelo caráter confidencial dos trabalhos ali realizados desde a sua implantação, no Estado Novo, ou devido às filigranas provocadas pelo comprometimento (à época inevitável, pode-se dizer) da administração estadual com o Regime Militar. Para os generais-secretários, jornalista era quase sempre (a ressalva poderá ser lida mais adiante) sinônimo de intrujão e indesejável.

Havia outros fatos que complicavam o trabalho da Imprensa. Um exemplo: o então governador Antonio de Pádua Chagas Freitas, acatado como dos mais hábeis caciques da política fluminense (além de proprietário de dois jornais: A Notícia e O Dia), jamais se arriscaria a trombar de frente com os gerentes da cornucópia financeira, em Brasília, sempre acessíveis às lideranças regionais que demonstravam "propensão ao diálogo".

Para que os leitores deste relato compreendam melhor, até mesmo o preenchimento de quadros (detetives, delegados, escrivães etc) para a dobradinha DPPS-DPS era complicado. Ao contrário do que aconteceu após 31 de Março de l964 e, em seguida, de 1968 até 1975 (aproximadamente), quando a apresentação da carteira funcional de um desses agentes significava problemas muito desagradáveis para os cidadãos que caíssem no desagrado do regime (e, particularmente, de uma autoridade classificada naquele órgão), entre 1979 e 1981 a situação era muito diferente.

As explicações: salvo para aqueles indivíduos habituados ao trabalho burocrático num sistema de quase total isolamento e máxima discrição, a transferência de um policial para o DPS-DPS somente interessava àqueles que:

  • De outra maneira seriam transferidos para as Delegacias Especializadas (e de alto risco, tais como: Entorpecentes, Roubos e Furtos etc), ou unidades distritais situadas em áreas críticas (São João de Meriti, Nova Iguaçu, Pavuna, Belford Roxo);
  • Preferiam ficar de fora do Gibi (isto é, da propina distribuída mensalmente pela Contravenção, para que os policiais não atrapalhassem os "negócios"). Comentava-se, à época, que o jogo-do-bicho jamais privilegiava a Polícia Política (sempre utilizada como "ponta-de-lança" quando algum secretário pretendia reduzir a influência dos contraventores sobre a tiragem, ou - hipótese contrária - uma autoridade qualquer planejava aumentar a escrita , ou seja, a arrecadação extra);
  • Manifestavam clara simpatia por esse campo da atividade policial.

Ainda no que diz respeito ao efetivos do DPPS-DPS, vale observar que o manuseio de material classificado (informes, bilhetes e recomendações de próprio punho, mapas, esquemas, dossiês, fotografias, transcrições de gravações sigilosas etc) relacionado a parlamentares, militantes de facções extremistas (da Esquerda ou Direita), e outros indivíduos implicados em conspirações (incluindo-se aqui alguns militares), era feito tão-somente por pessoal familiarizado com os códigos específicos dos arquivos, além de dotado de razoável memória sobre os fatos e personagens que marcavam o painel histórico até então desenhado.

Naquele universo quantitativa e qualitativamente limitado de funcionários, destacavam-se os delegados-especiais Moacyr Hosken Novaes, José Nicanor de Almeida, Newton Costa, Francisco de Paula Borges Fortes e Arthur Britto Pereira . Em seguida, como auxiliares diretos, os delegados Deuteronômio Rocha (chefe da ultra-confidencial Divisão de Arquivos), Zonildo Castello Branco (executivo-mor da Divisão de Fiscalização de Armas, Explosivos e Agressivos Químicos) e Ciro Advíncula (sempre exercendo funções de assessoria nos gabinetes).

Sob as ordens desses homens - e, num patamar de prestígio por vezes inversamente proporcional às atividades que exerciam -, trabalhavam criptógrafos, taquígrafos e estenógrafos, técnicos em fotografia etc.

Havia, inclusive, alguns estereótipos. Exemplo: um inspetor da Seção de Capturas (hoje delegado aposentado e ex-proprietário de uma conhecida casa de samba na Zona Norte do Rio de Janeiro) era escultor nas horas vagas e mantinha, às próprias expensas, um pequeno ateliê no Centro da Cidade.

Retomando ao dia-a-dia

Para os jornalistas, as dificuldades variavam conforme o desdobramento das crises observadas no âmbito parlamentar, em decorrência do aumento nos índices da criminalidade ou como produto das desinteligências internas. Se, por hipótese, o presidente do Clube dos Oficiais da PM e do Corpo de Bombeiros divulgasse nota contrapondo-se às determinações do Secretário, imediatamente espoucavam retaliações administrativas (PM e Bombeiros integram a Reserva Estratégica do Exército).

Em resumo, toda e qualquer iniciativa discordante era interpretada como "articulação patrocinada pelos comunistas". Daí, como num passe de mágica, os serviços reservados (PM-2 e BM-2) eram mobilizados; o DPPS investigava possíveis conexões e estabelecia comparações a partir de outros episódios observados no País.

Apesar da paranóia manifesta do Governo, que fazia com que as polícias estaduais enxergassem por toda parte os tentáculos do totalitarismo soviético (historicamente fragmentado desde o início da década de setenta [esquecendo-se do modelo autoritário e repressivo em vigor nas terras brasileiras] ), durante todo o período em que o Autor reportou o cotidiano da SSP, foi possível filtrar notícias importantes junto aos delegados em funções executivas (e auxiliares) no DPPS/DPS.

A exceção era o Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE), dirigido com mão-de-ferro pelo delegado Newton Costa. Somente o jornalista Carlos Vinhaes (Última Hora) - amigo de longa data daquele policial - tinha livre acesso ao Gabinete, mas guardava consigo as informações que ouvia; os demais repórteres sequer ultrapassavam o hall dos elevadores. Eram "brecados" por dois ou três "secretários".

Nas raríssimas oportunidades em que o delegado Newton Costa falou aos jornalistas (encontros fortuitos ao término do expediente ou em solenidades públicas), recorria aos monossílabos - em muito fazendo lembrar o ex-ministro da Justiça Armando Falcão, com o seu monocórdio nada a declarar.

Este comportamento derivava da antipatia daquele policial em relação à liberalização do regime. Isto se refletia tanto nas questões de trato político-partidário como em relação ao aspecto moralidade. Aliás, esse último tópico perturbava de tal modo as "sentinelas da ordem" que bastava a simples exibição (nas bancas de jornais) das páginas centrais de uma revista masculina com fotografias um pouco mais ousadas, para acontecerem atos de violência (incêndios e explosões).

Essa preocupação, todavia, não se estendia aos diários populares (O Dia, Luta Democrática), que abusavam - sem que fossem advertidos - de fotografias nas primeiras páginas de pessoas assassinadas ou vítimas de acidentes de trânsito.

Quase tragédia

Um exemplo dessa intolerância (seria mais adequado dizer insanidade, grifo do Autor) que repassava pelas cabeças dirigentes do DGIE aconteceu na tarde de 14 de março de 1980, quando pessoas não identificadas colocaram uma bomba relógio no escritório do advogado e jurista Heráclito Sobral Pinto, no Centro da Cidade. Como é do conhecimento geral, foi ele quem, durante o Estado Novo, defendeu o Sr. Luiz Carlos Prestes -encarcerado à época em condições subumanas - utilizando como argumento básico a Lei de Proteção aos Animais.

Informada sobre este fato através de um telefonema, uma equipe do Serviço de Recursos Especiais foi mobilizada. A detonação podia acontecer a qualquer instante e os policiais já se preparavam para desarmar o artefato quando receberam - por intermédio do rádio transmissor-receptor - a contra-ordem: "é muito perigoso, deixem explodir!".

O que aconteceu logo depois foi um momento de angústia, espanto e indecisão. O chefe da equipe contactou o delegado Newton Costa e seguiu-se um rápido diálogo. O primeiro questionava o absurdo daquela recomendação; o outro, sustentava que não valia a pena arriscar as vidas dos policiais para impedir a destruição do escritório de um defensor dos comunistas.

Corte para a SSP

Tão-logo souberam da existência da bomba - por intermédio de um agente lotado na Delegacia de Polícia Política - os jornalistas avisaram as

respectivas chefias e foram para a ante-sala do gabinete, onde o secretário acompanhava, via freqüência exclusiva do DGIE, o desenvolvimento daquela operação. O fato em si era complicado, uma vez que o Dr. Sobral Pinto, tanto pelas relações de amizade que mantinha com as lideranças católicas no Rio de Janeiro, como por sua audácia ao rejeitar qualquer apoio à linha-dura - era respeitado inclusive pelos militares vinculados aos setores mais liberais.

Um pouco mais sobre esse advogado franzino e corajoso

A História credita ao Dr. Heráclito Sobral Pinto passagens extraordinárias: em janeiro de 1964, depois que tropas do Exército invadiram a Faculdade de Filosofia no RJ, redigiu uma carta ao comandante do Primeiro Exército, general Armando de Moraes Âncora, denunciando:

Começou ontem, sob a proteção abusiva e violenta de tropas do Exército, suspeitas e sem comando, a Revolução Bolchevique Brasileira .

E algum tempo depois, quando o general-presidente Arthur da Costa e Silva declarou que o Movimento de 31 de Março havia estabelecido no Brasil um Governo do povo, para o povo e pelo povo, acrescentando que o Ato Institucional fez o Governo Representativo, contra-argumentou, também por carta:

Vossa Excelência mostrou que não tem a menor noção do que seja ditadura, apoio do povo e do que seja Governo Representativo (...) Saiba Vossa Excelência que estamos sob o domínio da primeira ditadura, que procura apenas disfarçar-se.

Retomando aos corredores do DGIE

Houve, como assinalado, uma intensa discussão entre os dois policiais. Aquele, a poucos metros do petardo que devia desmontar mas, pressionado pelas ordens do chefe - hesitava em fazê-lo; o outro, no abrigo refrigerado do Gabinete, calculando a repercussão política que o fato causaria e sabendo que, em poucos minutos, ocorreria uma tragédia.
Prevaleceu o bom senso e foi anulado o dispositivo de tempo. A bomba, artesanalmente preparada, oferecia considerável poder destrutivo.

Quando a situação serenou e o delegado Newton Costa deixou o Gabinete do secretário, deparou-se com os jornalistas que o aguardavam. De passagem, comentou que o Dr. Sobral Pinto tivera muita sorte.

Situações como esta eram felizmente raras. Sabe-se hoje que, mesmo durante os Anos de Chumbo (1968-1972) - houve, entre os policiais lotados no DPPS - quem desobedecesse às regras quanto ao tratamento que deveria ser dispensado aos presos políticos, levando-lhes frutas, cigarros e até jornais (discretamente recolhidos antes da troca das equipes de plantão).

Como assinalado, ao tempo em que o Autor destas linhas desempenhou, como repórter, sua missão profissional junto à SSP, inexistiam presos políticos nos xadrezes do DPPS; quando muito, pessoas implicadas nas denúncias investigadas pelo DGIE (logo transferidas para as unidades do Departamento do Sistema Penitenciário - Desipe). Estudantes e ativistas das organizações de Esquerda surpreendidos promovendo pichações ou panfletagens nas ruas, ficavam algumas horas detidos na ante-sala da carceragem e, uma vez identificados e ouvidos, eram liberados.

Hoje, devido às revelações publicadas sob a forma de livros ou por intermédio dos jornais, a Opinião Pública dispõe de informações sobre a autoria de muitos atentados praticados ao longo do Regime Militar. Mas, naquela ocasião, as especulações giravam em torno de personagens e organizações misteriosas como a Tradição, Família e Propriedade (liderada pelo Sr. Plínio Corrêa de Oliveira), além das facções radicais autoproclamadas Comando de Caça aos Comunistas, Vanguarda de Caça aos Comunistas e Aliança Anti-Comunista, entre outras.

Comentava-se à boca pequena que os atentados em série constituíam manobras diversionistas dos grupos clandestinos interessados em promover uma onda de insatisfação popular e, com isso, forçar o Governo a "estrangular" o Projeto de Abertura. No caso dos incêndios às bancas de jornais, foi veiculada a hipótese de tratar-se de piromaníacos (somente identificados com a publicação de A Direita Explosiva no Brasil.

Eram eles o marceneiro Hilário José Corrales e o agrônomo Ronald James Watters).

Alguns desses episódios mereceram destaque na Imprensa. Pela audácia na execução (ou devido à qualificação das vítimas). São eles: o tríplice atentado perpetrado contra D. Lyda Monteiro da Silva (secretária do Conselho Federal da OAB) - e que, por extensão, atingiu a presidência daquela Casa, Câmara dos Vereadores (gabinete do vereador Antonio Carlos de Carvalho) e Superintendência Nacional de Abastecimento; os petardos que provocaram danos à residência e destruíram um dos automóveis do deputado Marcello Cerqueira (militante comunista desde os anos cinqüenta, Maracelo Cerqueira escreveu tempos depois um pequeno volume intitulado Cadáver Barato), bem como a detonação das duas bombas no Riocentro.

Embora, no primeiro caso, os alvos estivessem localizados em pontos diferentes do Centro da Cidade, a estratégia terrorista decorreu de uma ação única, com utilização de idêntico aparato destrutivo.

Relativamente à explosão que destruiu o automóvel do parlamentar (como advogado, Marcelo Cerqueira participava ativamente na defesa dos presos políticos), vale assinalar que:

  1. Um especialista do Exército posteriormente identificado como sendo o sargento Guilherme Pereira do Rosário (morto pouco tempo depois no interior do Puma no Riocentro), teria estado no local para acompanhar os trabalhos da perícia;
  2. A justificativa apresentada pela Polícia foi a de que, como o veículo dispunha de um tanque suplementar de combustível, este - por motivos não explicitados - acabou explodindo.

1980, 27 de Agosto, de tarde

Após o almoço frugal - geralmente no restaurante do Hotel Marialva, ou numa pequena pensão à minuta, ambos na Rua Gomes Freire (Centro) - os repórteres se dispersavam e, cada qual ao seu estilo, dava início à sondagem de informações nos gabinetes e junto a outras fontes de confiança.

No dia 27 de agosto o Autor voltava a pé do Quartel General da Polícia Militar (Rua Evaristo da Veiga), quando, nas proximidades do prédio da Secretaria, observou intensa movimentação. Os portões do antigo prédio do DPPS estavam fechados e protegidos por soldados portando com metralhadoras, enquanto agentes do DGIE, também fortemente armados, saíam em carros com chapas frias e tomavam direções diversas.

O que pôde ser apurado na hora é que uma bomba havia explodido numa das salas do Conselho Federal da OAB (a informação sobre a morte de D. Lyda Monteiro chegou depois) e outra na Câmara dos Vereadores. As ordens do secretário tinham sido taxativas: "ninguém da Imprensa está autorizado a subir ao Gabinete, nem a entrar no prédio do DPPS".

Devido à gravidade e a complexidade da situação, até mesmo escrivães e funcionários administrativos foram mobilizados para reforçar as equipes de vigilância. Recomendações verbais e memorandos (soube-se depois) eram transmitidos a todo momento e somente com paciência e muito jogo-de-cintura os repórteres conseguiram driblar os seguranças e entraram no prédio por uma porta lateral (que permitia o acesso à garagem), subindo ao terceiro pavimento pelo elevador de carga.

Para que os leitores possam imaginar o nervosismo entre os funcionários da SSP, o delegado Arthur Brito Pereira, pessoa de hábito afável, fechou-se em copas durante horas. Mais tarde, porém, ele mostrou - discretamente-a três jornalistas (José A. Argolo e Marcelo Pontes - de O Globo - e Luiz Carlos Modesto, do Jornal do Brasil) os fragmentos da carta-bomba que matou D. Lyda Monteiro, bem como o envelope que ocultava o tablete de nitroglicerina e nitrocelulose, enviado ao general Glauco de Carvalho, presidente da Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab).

A audácia dos extremistas, bem como a sofisticação no preparo dos engenhos, provocaram pânico na população fluminense e a preocupação das autoridades policiais. E com toda razão, porquanto - alguns dias depois - os sensores eletrônicos da Empresa de Correios e Telégrafos detectaram duas outras cartas-bombas (os nomes e endereços dos destinatários não foram revelados). Esse episódio, registre-se, não foi o primeiro na história da violência política praticado no País. Bem antes, em 1972, seguranças da Embaixada de Israel interceptaram um pacote contendo explosivos; detectado a tempo, o mecanismo de destruição foi anulado.

No caso do tríplice atentado, a Polícia Política trabalhou rápido e, na madrugada subseqüente e manhã seguinte às explosões, a Divisão de Arquivo do DPPS elaborou uma lista de suspeitos dentre os indivíduos fichados e considerados aptos a preparar petardos semelhantes.

A lista era encabeçada pelo Sr. Ronald James Watters, ex-colaborador da Agência Central de Inteligência (CIA) e anti-comunista ferrenho. Em 1962 ele teve pela primeira vez o seu nome apontado à Polícia Política como implicado em ações terroristas. Isso aconteceu por ocasião do quase-atentado à Exposição Soviética no Pavilhão de São Cristóvão. Diga-se de passagem, somente trinta e dois anos depois o coronel de Artilharia Alberto Carlos Costa Fortunato confessou ter sido ele próprio o construtor do engenho (dez bananas de dinamite acopladas a um relógio do tipo despertador), que não explodiu porque um dos implicados na trama, o coronel-aviador José Chaves Lameirão, antecipou-se e telefonou ao brigadeiro Guedes Muniz, alertando-o sobre a tragédia que poderia acontecer.

Mas o esclarecimento sobre esse fato ainda pertencia ao futuro. Na ocasião, a confirmação sobre o nome de Ronald Waters como principal suspeito na trama foi dada exatamente na tarde seguinte (ou seja, 28 de agosto), em Campos (município do norte Fluminense), após solenidade de inauguração da Delegacia da Polícia Federal naquela cidade, presidida pelo superintendente-geral da corporação, coronel do Exército (reformado) Moacyr Coelho.

Paralelamente, outro repórter de O Globo (Sylvio Paixão) localizava - em Itaguaí (RJ) - o pequeno e mal cuidado sítio onde Ronald James Watters costumava descansar nos finais de semana (ali também esteve o Autor destas linhas dois dias depois, para complementar o levantamento iniciado em Campos).

O que houve em seguida é de domínio público: manifestações de protesto nas ruas das capitais, abertura de processo na Justiça Federal, julgamento e absolvição do principal acusado. O que ainda não se conhece - pelo menos oficialmente -, é a identidade do construtor dos petardos. É bem possível que esta somente venha a ser revelada por uma pessoa muito, muito próxima desse indivíduo, e ainda assim somente algum tempo após a sua morte.

Como acréscimo a estas linhas vale assinalar que a investigação encomendada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1996, a uma firma de detetives particulares (ao custo de R$ 80 mil), em vez de auxiliar as autoridades do Judiciário a esclarecer o atentado embaralhou ainda mais a situação, porquanto apresentou, sob a forma de relatório final, conclusões estapafúrdias e envolveu na trama criminosa pessoas que, historicamente, nutriam notória antipatia entre si, como o general-ministro Golbery do Couto e Silva e o coronel Luiz Helvécio da Silveira Leite (ex-chefe do setor de Contra-Informações do Centro de Informações do Exército - CIE).

30 de abril, 1981, tarde

A festividade no 18º Batalhão de Polícia Militar, em Jacarepaguá, transcorreu sem incidentes: soldados das quatro companhias em ordem de desfile, o coronel Sebastião Faria de Paula, bastante emocionado, passou o comando da unidade ao coronel Ile Marlen Lobo Pereira Nunes e, em seguida, foi oferecido um coquetel aos convidados no salão nobre. A equipe da Rede Globo de Televisão retornou à Redação para que o tape fosse aproveitado na edição do Jornal Hoje. Até aquele instante, nenhum prenúncio de turbulência (pouquíssimas pessoas sabiam da ordem de prisão aplicada, por ordem do comandante-geral, ao coronel substituído.

Com efeito, o coronel Sebastião Faria de Paula deixou as dependências do 18o BPM sob escolta).

Uma explicação:

Na época, devido às mudanças que, vez por outra, tiram a paz dos repórteres, a Direção de Jornalismo do Globo determinara o corte - sob a justificativa de "contenção de despesas" - de 42 profissionais, inclusive o Autor (que aliás, estava fora do País, no eixo Bolívia-Peru em gozo de férias e, extra-oficialmente, tentando coletar informações sobre a ação das quadrilhas de ladrões de automóveis e a co-relação destas com o tráfico de drogas e o contrabando de armas para o Brasil). Para compensar parcialmente o "equívoco" - passível de ação trabalhista -, os próprios editores cuidaram para que fosse agilizada e aceita a sua admissão no Núcleo RJ da Rede Globo.

Retomando:

Naquela tarde, cumprida a missão jornalística, a equipe regressou à Vênus Platinada (sede da emissora assim apelidada devido à tonalidade da pintura do prédio), onde o Autor elaborou um texto bastante - sabendo antecipadamente que, quando muito, valeria um registro - e, em seguida, foi para casa. Somente na manhã seguinte, durante a leitura dos jornais à hora do café, soube do que acontecera no Riocentro. Logo depois, já na Redação, o chefe de reportagem (Antonio Henrique Lago) lhe atribuiu a missão de participar da entrevista coletiva que o secretário de Segurança, general Waldyr Alves Costa Muniz, convocara para o início da tarde. Jamais poderia supor que esta provocaria tantos problemas.

O secretário - em cujo currículo pontificavam cargos de destaque: comandou o Regimento Escola de Infantaria e chefiou a Assessoria de Segurança e Informações da Petrobrás - sentou-se junto dos repórteres e, sem se importar com as recomendações feitas discretamente pelo jornalista Wilson Sayão (assessor de Comunicação da SSP), deu início à sua exposição com um indignado protesto dirigido aos comunistas que planejaram o atentado, e reproduzindo o que teria sido o último e suposto diálogo (travado no interior do Puma), entre o capitão Wilson Machado e o sargento Guilherme Pereira do Rosário, palavras estas que viria a amargar em seguida.

- Há uma coisa estranha aqui! (a bomba) - teria exclamado o sargento voltando-se para o capitão, quando ambos entraram no automóvel após uma brevíssima caminhada a passos rápidos no amplo estacionamento do Riocentro, onde milhares de pessoas assistiam a um show de música popular promovido pelo Centro Brasil Democrático - Cebrade.

Questionado pelos jornalistas sobre como poderia reproduzir com tanta fidelidade a conversa, porquanto o sargento estava morto e o capitão internado em estado grave no Hospital Miguel Couto (após transferência sob forte esquema de segurança do Hospital Lourenço Jorge, na Barra da Tijuca), Waldir Muniz acrescentou, constrangido, que "havia gente por perto".

Daí, quando o Autor destas linhas indagou se, tomando como fundamento a antiga experiência do general-secretário de Segurança como oficial de Informações - e seguindo os mesmos parâmetros que aqueles utilizados nas investigações destinadas a esclarecer os atentados -, ele poderia estabelecer uma co-relação entre a ação terrorista que vitimara D. Lyda Monteiro um ano antes e as bombas no Riocentro, Waldyr Muniz perdeu o controle sobre si mesmo, deu um soco na mesa e disse que a pergunta era impertinente, descabida. A conversa foi encerrada bruscamente, com o general levantando-se e deixando a sala na companhia dos auxiliares.

As declarações inoportunas do secretário de Segurança, publicadas na íntegra nos diários e reproduzidas nos telejornais, deixaram-no em situação tão precária que ele foi admoestado no mesmo dia pelo comandante do Primeiro Exército, general Gentil Marcondes Filho.

Waldyr Muniz não tardou a ser afastado do cargo pelo governador, mas não sem antes exonerar - intempestivamente - o coronel Nilton de Albuquerque Cerqueira do Comando-Geral da PM, substituindo-o pelo (também) coronel do Exército, Edgard Pingarilho.

Entretanto, quando aconteceu este último fato, a repercussão provocada pelo escândalo do Episódio Riocentro ultrapassara de muito as barreiras de proteção e desinformação plantadas pelos militares, no sentido de atribuir o atentado aos extremistas da Vanguarda Popular Revolucionária, como tentou demonstrar o coronel Job Lorena de Sant'Anna (posteriormente promovido a general-de-brigada), durante a sessão-show especialmente montada no QG do Primeiro Exército e realizada no dia 30 de junho de 1981.

De todo modo, ao tempo em que a Imprensa destacou as conseqüências do episódio - por intermédio de editoriais, artigos assinados, charges, depoimentos de juristas e oficiais de alta patente do serviço ativo e também da reserva das Corporações Armadas -, os fatos corriqueiros observados nos bastidores da Polícia Política perderam espaço nas mídias.

Privilegiou-se o desdobramento no âmbito da Auditoria do Exército e, depois, junto ao Superior Tribunal Militar (cujo Conselho de Justiça optou mais tarde pelo arquivamento do IPM).

Extra-oficialmente, ainda que continuasse a exercer suas funções como repórter da Rede Globo (não mais designado para acompanhar os desdobramentos do caso, uma vez que a pergunta formulada durante a entrevista com o general Waldyr Muniz desagradara pessoas importantes), o autor desenvolveu minucioso levantamento para o semanário alternativo Movimento.

Na tentativa de atingir os objetivos, entrevistou militares e outras fontes não convencionais, recolhendo - aqui e ali - detalhes nunca desmentidos sobre as ações executadas pelos integrantes da célula extremista abrigada no Codi-Doi. Mas, apesar do esforço dispendido, somente treze anos depois soube da existência e da intenção alucinada da principal personagem até então oculta na História: o marceneiro Hilário José Corrales (apoiado pelo Grupo Secreto em sua nova configuração), no sentido de "acabar com a baderna comunista no Riocentro", isto é, com as festas populares e shows com a participação de artistas engajados na luta pela redemocratização do País.

Algumas visitas aos gabinetes dos diretores de departamentos e às seções do Instituto de Criminalística e do DPPS constituíram a tônica dos trabalhos de apuração naquele período e resultaram na negativa sobre a existência de mais dois petardos no interior do Puma - que teriam sido recolhidos imediatamente após a explosão por uma equipe do próprio Codi-Doi. Esse fato, porém, não impediu que fosse consolidada a versão segundo a qual os militares pretendiam colocar bombas não somente no estacionamento, mas em outros locais "estratégicos" do Riocentro, aproveitando-se do vazio de segurança proporcionado pela ordem transmitida de Brasília (onde estava reunido com o Inspetor Geral das Polícias Militares) pelo coronel Nilton Cerqueira, ao comandante do 18º BPM. Esta situação somente foi confirmada em 1996 pelo coronel Ile Marlen, em depoimento prestado à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

Como é do conhecimento público, o policiamento preventivo e ostensivo fora suspenso horas antes do início do espetáculo, o que facilitou a ação dos extremistas.

Poucos dias após às explosões, o diretor do Instituto de Criminalística, delegado Roberto Villarinho, procurado por este repórter em seu gabinete, negou peremptoriamente a apreensão de outras bombas que estariam no banco traseiro do veículo e não confirmou a existência de um livro reservado daquele Instituto, onde os peritos teriam consignado anotações importantes sobre aquele e outros episódios terroristas praticados no Estado do Rio de Janeiro.

Os fatos políticos subseqüentes: final do Governo João Baptista Figueiredo, vitória (no Colégio Eleitoral) do Sr. Tancredo Neves e sua morte após prolongado sofrimento, posse do Sr. José Sarney como Chefe do Executivo, criação da Nova República, eleição e impeachment do Sr. Fernando Collor de Mello, Governo Itamar Franco e a aprovação do seu sucessor - através do voto popular - são conhecidos. Na penumbraficaram protegidos os dossiês da Polícia Política.

Esses arquivos, como assinalado, ficaram acautelados muitos anos na Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal. Havia o temor de que o recém-eleito (para o primeiro mandato) governador do Estado, Sr. Leonel Brizola, bastante ressentido pela tentativa de fraude aplicada contra ele durante o pleito (fato que passou à História como o Escândalo da Proconsult) deles se utilizasse para incriminar indivíduos comprometidos com a repressão. Esta situação prevaleceu até o reenvio desse material para o Arquivo Público do Estado.

Notícias e comentários publicados na Imprensa revelaram a existência de extensas lacunas quanto à numeração das pastas e arquivos, sugerindo que nem todos os documentos foram devolvidos e poderiam estar destruídos ou em poder dos órgãos de Inteligência das Forças Armadas.

Estas, resumidamente, as reminiscências do Autor (ao tempo em que trabalhou como repórter-de-campo na cobertura da Secretaria de Segurança Pública) sobre alguns momentos significativos da História recente do País.

Rio de Janeiro, março-abril de 2004

*José A. Argolo é Professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atualmente realizando programa de estudos de pós-doutorado no Departamento de Jornalismo da ECA-USP, com apoio do CNPq.

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