Nº 12 - Nov. 2009
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO VI
 

 

Expediente
Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 



ARTIGOS
  O texto da cultura
História e memória textual do pathos urbano reportado
em mídias impressas de diferentes épocas

Por Terezinha Tagé*

RESUMO

Este artigo [1] apresenta uma contribuição para os estudos da memória textual na história das mídias impressas em diferentes épocas. Refere-se à história das formas sígnicas de reportar conflitos sócio-urbanos em livros e reportagens impressas em determinados contextos sócio-políticos considerados hegemônicos no plano da significação (na semiosfera, segundo I. Lotman).

Imagens: Reprodução

M. C. Escher, "Drawing Hands", 1948.

Considera como mídias não apenas os meios tradicionais de informação social, mas também os dispositivos de mediação impressa nos quais estão configurados em múltiplas linguagens integradas os sentidos da vida urbana e imediata (gêneros de discurso, segundo Bakhtin) para cumprir sua função na Comunicação Social. Foram selecionados para análise textos com repercussões de acontecimentos sociais que envolvem o pathos existencial e cotidiano das metrópoles em duas épocas: o século XIX e o século XXI.

O apoio teórico para o raciocínio desenvolvido parte da “teoria da estética do pathos” elaborada pelo cineasta russo Serguei Eisenstein em seus estudos sobre os romances realistas de É. Zola (séc. XIX) e relacionada à leitura de resenhas críticas de documentários sobre conflitos da atualidade (séc. XXI) escritas pelo historiador Peter Burke e publicadas em jornais paulistanos.

PALAVRAS-CHAVE: História da Mídia / Pathos e Mídia / Comunicação e Linguagens

1. A configuração das sensibilidades no cotidiano

O universo da comunicação humana é composto por diferentes códigos sistematizados em símbolos, criações específicas e artificiais produzidas para esta finalidade. Nas palavras do pensador Vilém Flusser: “os homens comunicam-se uns com os outros de uma maneira não ‘natural’: na fala não são produzidos sons naturais, como, por exemplo, no canto dos pássaros, e a escrita não é um gesto natural como na danças dasabelhas” (Cf. FLUSSER, 2007:89).

Mas, apesar desta artificialidade, o necessário registro das ações diárias, dos acontecimentos sociais significativos em diversas culturas e diferentes tempos históricos tornou-se parte integrante da segunda “natureza” humana, o necessário convívio social. Desse modo, legitimaram-se as múltiplas formas de representação dos aspectos marcantes da vida coletiva impressas em materialidades sígnicas (traços, sons, grafemas, letras, cores, sinais, e outros) desde os primórdios até os espaços urbanos do mundo contemporâneo.

A memória e a história das mídias impressas de diferentes épocas guardaram características desta manifestação. Entre elas, as comunicações do sofrimento, da dor, da violência, das emoções sempre estiveram presentes.

Esse percurso histórico nos coloca diante da evidência de uma característica altamente reiterativa: a dor, física e principalmente a dor existencial, o pathos sempre foi incorporado no cotidiano. Esta marca é comunicada nas formas impressas midiáticas (considerando esta palavra em sentido amplo) de todas as épocas, mesmo anteriores ao que conhecemos por: “meios de comunicação” na atualidade, e nos mostra que vivemos mergulhados em violências, estigmas, preconceitos, brutalidades e banalidades que abalam nossa sensibilidade e afetam nossa condição humana. Petrificam a mente e o espírito. Por este motivo é inevitável a companhia constante de uma espécie de angústia social generalizada, de uma turbulência das emoções.

Em tempos históricos e espaços culturais diferentes sempre nos deparamos com o registro impresso sobre a fome, a guerra, a dificuldade de discernimento entre realidade e ficção, a violência autorizada para fins políticos e outras circunstâncias que se tornaram lugares comuns nos textos e discursos verbais e não-verbais das notícias e reportagens, documentários em livros e outros dispositivos esmerando-se em exibir discursos de impacto, fotos e infográficos com requintes técnicos, grafismos e diagramações cada dia mais sofisticados.

Uma exposição diária de quadros do sofrimento e de uma dor coletiva que parece mover o sentido das coisas e dos fatos para comover cada instante. Comover, tocar, sensibilizar consciências, mesmo sem a esperança de algum resultado imediato ou apenas para incentivar o consumo de idéias em todos os níveis e de produtos de todas as espécies.

Estas construções sígnicas e formais são elaboradas e impressas esteticamente para expressar as ações humanas que denunciam, demonstram ou simplesmente descrevem motivações diárias desta dor. Os produtores de textos e de sentido responsáveis pela comunicação destes fatores que integram a condição humana esmeram-se em criar sistemas sígnicos de impacto cada dia maior nas mídias.

Como conseqüência, estes procedimentos sempre corresponderam às sensibilidades e configuraram aos poucos um plano conflituoso e irreversível de comunicação dos acontecimentos no mundo que nos cerca. Pensando em tipos de mídias impressas tais como as que conhecemos e para recortar exemplos mais aproximados, vamos nos ater aos livros e jornais impressos.

Abrimos os jornais, pesquisamos pela Internet, ligamos a TV, informamo-nos sobre os acontecimentos da vida imediata e confirmamos estes temas e estas formas de comunicação desdobrada em conversas em todos os espaços possíveis para troca de informações e formação de opiniões. Estamos situados em um universo de desentendimentos e segundo Jacques Rancière: “O desentendimento não diz respeito apenas às palavras. Incide geralmente sobre a própria situação dos que falam” (Cf. RANCIÈRE, 1996:11-13). As transformações nos modos de impressão midiática através dos tempos também fazem parte desta situação, o que legitima o estudo de sua história.

Ao mesmo tempo, os estudiosos da comunicação, os filósofos, os antropólogos, os semioticistas e outros pensadores nos ensinam, também, que vivemos em uma sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997) em movimento e transformação constante, onde tudo parece fluir. Ainda nas três, quatro e cinco primeiras décadas do século XX, teóricos como Walter Benjamin, Theodor Adorno, Horkheimer e outros chamavam a atenção da sociedade sobre as possibilidades de uma cultura industrializada, de uma tendência à padronização e a dificuldade de separar o que era real do que era criado artificialmente pela indústria cultural.

Mas, em nossos dias, outros pensadores nos informam que, na atualidade, vivemos  momentos líquidos que  “transbordam”, inundam”, como afirma Zigmunt Bauman. As formas  não são  facilmente contidas: “Estas são as razões para considerar “fluidez” e “liquidez” como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras na história da modernidade” (Cf. BAUMAN, 2001:9).

Tais reflexões não são supérfluas nesta exposição de idéias porque têm o objetivo de percorrer leituras e pensamentos que nos ocorrem de passagem em forma de painel e nos levam a indagar se existe um processo contínuo de estetização na forma de organizar nas mídias a comunicação do que acontece, do que é vivido e comunicado nos diferentes textos (verbais, visuais e sonoros) e discursos os meios e as mediações da Comunicação. As mídias impressas, neste caso, incorporam marcas de outros formatos e esta interferência é uma característica da atualidade.

Vivemos no “mundo codificado” de que nos falava Vilém Flusser e precisamos tomar consciência da importância do conhecimento de nossa história midiática para decifrarmos a memória das formas representativas criadas artificialmente para nos informar sobre nossa natureza. Estamos diante de um paradoxo aparente.

De nada valeria informar simplesmente os acontecimentos sem tocar a sensibilidade dos informantes e destinatários com a criação de outras das formas de representar.

Os signos tornaram-se os acontecimentos que influenciam e interferem nos modos de ver e de ser contemporâneos. Somos liderados pelo que os sistemas sígnicos nos comunicam. A forma de construção dos enunciados nos diversos gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003) e o planejamento gráfico são tão importantes quanto os temas selecionados para a pauta diária dos jornais e dos projetos dos livros nas editoras. São elementos compartilhados com a organização de grafismos, a seleção e edição de fotos e infográficos, o processo textual de modelização. Atravessam a fluidez e permanecem para a história porque produzem memória e geram diferentes semioses. É o texto que gera a significação do mundo e não o contrário (LOTMAN, 1996).

A reiteração com que os textos midiáticos comunicam a agressividade e a violência a ponto de banalizá-las têm sido objetos de estudos recorrentes entre pesquisadores das mais diferentes áreas de conhecimento. Mas, quando pensamos em pontos de convergência que caracterizam estes fenômenos, entre diversos fatores, chegamos ao mesmo lugar: são construções para manifestar uma instabilidade nas emoções coletivas, uma marca gerando um estado geral de dor existencial em grau insuportável para a vida social de boa qualidade. A felicidade se tornou obscurecida.

Há sempre um lado sufocante em nossa capacidade de atribuir sentido ao que acontece. Uma crise de significações interfere na comunicação de fatos, de comportamentos, de sentimentos e emoções.

Os estudos de Comunicação e história das mídias impressas não poderiam ficar alheios a estes fatos. Pensando nestas circunstâncias procuramos pesquisar textos verbais e não-verbais e discursos sobre o tema da dor em diferentes épocas em espaços urbanos e o processo e comunicação em jornais e romances porque estas mídias impressas exerceram e exercem uma função significativa na história do registro e na preservação da memória do pathos humano diário representado em sistemas sígnicos.

O grande número de formas expressivas em diferentes linguagens surge como necessidade essencial para representar, demonstrar e comunicar como se fosse um grito humano estetizado. As imagens significativas são inspiradas em outras produções e atividades humanas que utilizam recursos artísticos, criações e montagens infográficas que se integram e interagem na compreensão dos textos verbais.

Observamos que o grafismo, os projetos editorias em livros e jornais vão muito além da simples necessidade de comunicar informações no século XXI e, da mesma forma, outros tipos de mídia impressa, como o romance no século XIX, se constituíam em mídias condensadoras de temas emergentes e decisivos.

Há muitos modos de refletir sobre as formas de construção da emoção nos espaços urbanos e de construir sua memória de formas de representação sua história das mídias impressas, mas vamos nos restringir, nesta oportunidade de compartilhar estudos e experiências de pesquisa, a um pequeno ponto: representações da dor existencial, explícita e implícita no cotidiano em publicações midiáticas jornalísticas e literárias, porém o mesmo procedimento pode ser empregado para pesquisas em outros tipos de mídia.

2. Intervalo: a estética do pathos de Eisenstein e a construção composicional de Zola

Para compreender a proposta deste texto é preciso fazer um intervalo para situar o ponto de vista do pensador e cineasta russo Serguei Eisenstein (1898-1948) e seu estudo da obra de Émile Zola (1840-1902), mostrando a correspondência entre as escolhas estéticas deste escritor francês e as situações extraverbais selecionadas e constituídas nos enunciados e seus romances, caracterizadas pelo processo de evocação imagética dos espaços urbanos  onde se passavam sofrimentos geradores do pathos existencial de sua época.

Ele toma como objeto de referência os romances do escritor, uma mídia impressa hegemônica em seu tempo. As obras em geral retratam as dificuldades e sofrimentos de personagens típicos da vida social no processo de urbanidade em fase de organização nas transformações e crises na França do final do século XIX.

Em seguida, apresentaremos artigos publicados em jornais paulistanos em cadernos culturais pelo historiador Peter Burke e que apontam para situações de conflito urbano com princípios diferentes, mas que atentam para a mesma forma estética de representação dor diante dos dramas das cidades em nossos dias do século XXI. Há uma correspondência destes procedimentos com as formas de apresentação de textos nas mídias contemporâneas e a sensibilidade dos destinatários aos quais estas formas se destinam.

Partimos do princípio de que as formas de construção composicional e enunciados em textos verbais integrados aos textos visuais ou a determinados procedimentos discursivos de impacto estão organizados nas mídias impressas das duas épocas referidas com recursos que materializam sensações e posições axiológicas correspondentes às dos destinatários de cada veículo. Há uma interferência das transformações nos recursos tecnológicos. Na atualidade, há uma interdependência e um diálogo de códigos e de formas sígnicas nos textos jornalísticos em relação à predominância do signo verbal nos romances.

Enunciados e diferentes formas sígnicas convivem com a mesma intensidade numa mesma página de jornal. A leitura do texto verbal interage e dialoga com fotos e grafismos. Este fato remete à noção de montagem, de fragmento apreendido e graficamente editado com um mesmo objetivo: criar possibilidades de provocar no leitor um processo de identificação acontecimentos na configuração de sua sensibilidade.

Como apoio para este modo de raciocinar e compreender este fenômeno, recorremos à “teoria do pathos” ou “estética do pathos” como ficou conhecida a concepção de arte, de criação e interpretação praticada por Serguei Mikhailovitch Eisenstein (1898-1948). Ele defendia a idéia de que existe uma “semelhança estrutural entre o objeto estético e a reação humana que ele provoca” (Cf. SEGAL, Apud SCHNAIDERMAN, 1979:235).

Desenvolveu esta teoria estudando ciências, artes e técnicas, formalizando procedimentos empregados em suas próprias experiências de criação, no cinema e escritos sobre diferentes temas e elaborados em vários gêneros discursivos.

Entre estes pensamentos sobre as obras de arte elaboradas em diferentes atividades, como o desenho, a dança, a pintura, a arquitetura, escolhemos como ponto de partida neste artigo os escritos sobre literatura e o processo de criação imagético descrito por Eisenstein a partir e suas leituras das obras do escritor francês Émile Zola (1840-1902).

Este escritor francês, rotulado como naturalista pelos manuais apressados de história da literatura, segundo Eisenstein, descreveu em seus romances (mídia importante de sua época) a miséria e os problemas sociais urbanos de seu tempo, construindo imagens e descrevendo detalhes muitas vezes ignorados ou desprezados pela maioria dos escritores, da vida cotidiana, passo a passo, como se fossem enquadramentos para um filme, recortados em minúcias que continham o registro da atmosfera de uma época para a memória cultural da posteridade.

Zola procurava sensibilizar os leitores e cidadãos construindo seus enunciados nos romances e artigos para jornal como representações imagéticas de cenas da vida cotidiana de pobres, trabalhadores, operários, prostitutas, pessoas marginalizadas em sua cidadania e que sofriam a dor de viver naquele espaço opressivo em meio a uma atmosfera turbulenta e desumana.

Estas reflexões de Eisenstein estão no texto: “Les vingt piliers de soutènement” (Cf. EISENSTEIN, 1976:141-213) na qual ele estuda as obras do escritor francês, assim como as de outros escritores, como Balzac. Seu objetivo era o de mostrar o equívoco dos críticos da literatura que reduziam a contribuição destes escritores e comunicadores do cotidiano de seu tempo ao rótulo de realistas e naturalistas. Para a história das formas de representação do sofrimento urbano nas mídias impressas, a contribuição de Zola passa a ter um lugar de grande valor estético.

Referindo-se à construção composicional de Zola, retomada na linguagem fílmica, e que nós estamos considerando em nossos estudos sobre estética e pathos nas mídias, Eisenstein afirma:

De tous les éléments possibles du milieu ou du phénomène, il choisit précisement telle ambience, précisement tels objets et précisement dans tel état qui fera qu’à tel moment donné ils seront “à l’unissont” des sensations émmotionnelles (souvent même physiologiques) qu’il entend susciter chez le lecteur. (Cf. EISENSTEIN, 1976:147).

Esta escolha minuciosa e precisa da construção de dos sistemas de signos por parte do narrador nos romances de Zola fazem parte de uma história das formas de reportar as crises da vida imediata de sua época que não pode ser observada em nenhum outro tipo de mídia impressa. As grandes descrições da vida mais comum em todas as camadas sociais permitiam a revelação dos hábitos, emoções e da ordem de valores da época como nenhum outro tipo de mídia impressa. Assim, a seleção de elementos que marcavam o cenário, os objetos e personagens em suas obras, sempre tinha o propósito de causar impactos, provocando emoções na receptividade do leitor. 

Permitia, também, uma fusão de sensações físicas e psicológicas no seu espírito. Ele elaborava uma estética do pathos como foi nomeada por Eisenstein para causar emoções impulsionadas pela forma de organização e escolhas dos elementos utilizados para comunicar situações e sensações nas obras. Suas estratégias de comunicação não obedeciam aos procedimentos comuns à escrita literária, com um sistema de construções metafóricas, ritmos e sonoridades minuciosamente dispostas nas palavras.

No lugar destes recursos, Zola coloca seus personagens em um conjunto de objetos dispostos fisicamente da maneira como eles necessitam. Constrói seqüências de imagens com palavras como ícones para a imaginação do leitor e descreve quadros com elementos visuais equivalentes ao mundo interior de seus personagens.

Na obra “A besta humana”, por exemplo, a descrição de um quarto pequeno, pintado com paredes vermelhas, há um fogareiro de ferro fundido, superaquecido a ponto de provocar um torpor no ambiente, tal como o que se impunha aos freqüentadores deste espaço. Nada impedia o autor de escolher símbolos visuais no quadro da realidade, de tal modo que a significação cotidiana emergia com intensidade em diferentes graus de eficácia para produzir impressões impactantes e correspondentes às angústias vividas pelos destinatários das obras.

Como cineasta, Eisenstein apoiava-se nesta metodologia para dominar os meios de ação específicos das montagens de cenas e detalhes de seus filmes. Estes procedimentos traduziam frieza ou aquecimento em uma cena como, por exemplo, uma gama de luminosidade banhando o tema do enquadramento escolhido por ele em conformidade ou por contraste com o estado de espírito dos personagens. Estas situações levam o espectador a um estado de identificação, a uma sensação unidade, como se a ficção fosse uma vivência real como a que era representada.

Pesquisando a história da palavra pathos em fontes etimológicas, constamos que ela é marcada por inúmeras conotações. Inicialmente encontramos o significado: “algo que acontece”, um evento, um acontecimento. Mas, também pode significar: “sofrimento instrutivo” ou, no sentido filosófico, ela adquire dois sentidos, “o que acontece aos corpos”, como as qualidades, e o que acontece às almas”, como as emoções. Apenas como referência de passagem, nos limites desta exposição, chegamos às teorias materialistas da sensação que integram o conhecimento sensorial a um pathos dos sentidos.

Mas, é importante pensar que a palavra pathos antes de tudo, significa “acontecimento” e pareceu-nos pertinente a possibilidade de considerá-la como acontecimento de linguagens (verbal, visual, sonora e outras) que, uma vez compartilhada com um destinatário, permitindo a identificação como o que é comunicado. Este modo de raciocinar apóia a possibilidade de pensar em uma história de formas textuais de representação dos acontecimentos de linguagens como a representação dos signos da dor humana na mídia impressa.

Eisenstein comparou a sua forma de montagem cinematográfica com o processo de descrição imagética característico de Zola, como estratégia metodológica para suas criações artísticas. Para complementá-la, partia também de uma impressão acidental desencadeada por uma imagem apreendida ocasionalmente, ampliando-a em um sistema de imagens. Sempre guiado pelas emoções como acontecimento de linguagem, pelo sofrimento ou prazer despertado pela impressão visual ou por uma frase ouvida ao acaso. Sempre o acontecimento no espírito, o pathos gerador de sentidos e constituído esteticamente em múltiplas linguagens.

Em sua obra “Memórias Imorais”, escrita como uma coletânea de textos curtos e fragmentos, o cineasta russo escreve sobre alguns acontecimentos emotivos traduzidos na materialidade sígnica visual e verbal que acompanharam a realização de seu filme “Outubro”. Entre eles, refere-se à visão de uma ponte levantada que se tornou motivo para o desenvolvimento das cenas:

Desse modo, a impressão acidental, matutina, de uma ponte levantada se tornou uma imagem, ampliou-se num sistema de imagens, transformou-se num símbolo de dois braços estendidos e ligados por um sólido aperto de mão e, finalmente, passou a ser a estrutura capital, na concepção total do filme. (Cf. EISENSTEIN, 1987: 113).

Partindo destas leituras, acreditamos ser possível estabelecer uma correspondência entre estes mesmos procedimentos formais com as estratégias elaboradas pelo historiador Peter Burke ao elaborar ensaios publicados em cadernos de cultura de jornais diários na atualidade. Seus textos midiáticos interagem com fotos e recursos imagéticos editados para destinatários com o objetivo de desencadear uma identificação, em nossos dias, semelhante à imaginada por Eisenstein na elaboração de sua obra cinematográfica e que se baseava no processo criativo de Zola em seus romances.

Não apenas nos textos para jornal impresso do referido historiador podemos verificar estas marcas formais de elaboração textual. Muitas emoções podem corresponder às estratégias de criação destes textos em publicações que permeiam jornais, revistas de atualidade e outros veículos de comunicação da atualidade, entre elas as manifestações da dor cotidiana e planetária em todos os seus matizes.

3. Quadros midiáticos para exposição cotidiana da dor social

A abordagem dos acontecimentos em textos midiáticos na atualidade apresenta algumas tendências que se reiteram como fator constitutivo dos projetos editoriais das mídias impressas. Uma delas é a preocupação em apresentar de modo atraente, objetivo, agradável ou impactante e persuasivo as informações em todos os níveis, tanto notícias, reportagens como opiniões e artigos dos mais diversos assuntos, literatura de ficção, documentários em livro e tantos outros produtos de cultura do mundo editorial para diferentes interesses.

Nesta comunicação, vamos recortar exemplos obtidos no jornal impresso, mas os princípios podem servir como apoio para outros tipos de mídia. Como todas elas, os jornais diários seguem um modelo de diagramação e edição característico de seus projetos editoriais ditados pelos objetivos e motivações ideológicas. Transformam-se e se aperfeiçoam conforme a necessidade de cada momento e as possibilidades de integrar recursos decorrentes do avanço das inovações tecnológicas. Este fato influencia as formas de representação.

Do ponto de vista estético, surgem recursos e formatos cada dia mais sofisticados permitindo a criação de procedimentos e de soluções múltiplas que dependem da engenhosidade da equipe de produtores de textos. Estes avanços, em todos os níveis, abrem-se para inúmeras e inusitadas soluções de recursos tanto para jornalistas quanto para os colaboradores, escritores, fotógrafos, diagramadores e operadores de infografia e design e outros. São múltiplos sistemas sígnicos integrados para construir mensagens que provoquem emoções como parte da enunciação.

Ao abrirmos os periódicos a cada dia, ou quando percorremos as estantes das livrarias, estamos diante de uma exposição de quadros onde são apresentados longos desfiles de formas de linguagens que constroem nossa história de significações do que vivemos em nossa condição humana. Mais do que os acontecimentos em si mesmos, o que eles passaram a significar só porque foram construídos em matéria sígnica criada artificialmente pelos homens para revelar a sua natureza. Sem este artifício, permaneceríamos desconhecidos de nós mesmos, ignorando nossa própria natureza.

As linguagens fazem nossa história, registram nossa memória em textos da cultura com fotos, infográficos, ilustrações e outros objetos visuais e de discursos cujas vozes enunciam e denunciam os pathe coletivos vivenciados pelas sociedades no planeta.

Entre inúmeros exemplos de textos verbais e não-verbais selecionados e catalogados para nosso projeto de pesquisa acadêmica, destacamos dois textos escritos pelo historiador Peter Burke que se referem à situações e acontecimentos da vida social imediata que desencadearam conflitos sócio-políticos e reações emocionais no imaginário coletivo nas sociedades contemporâneas.

A escolha se deve ao fato de que os temas tratados são representativos do campo de reflexão que motiva nossas pesquisas e está escrita por um historiador, pensador, colaborador e produtor de discursos para jornais e não por um jornalista-repórter que dependeria de um discurso padronizado pelos gêneros jornalísticos estabelecidos pela empresa a que pertencesse. Como um cientista e ensaísta, Peter Burke, como qualquer outro escritor em sua situação, tem uma liberdade de escolha na construção dos enunciados e abordagem temática que tomam a forma do discurso da conversação ou didático.

Seus textos referem-se às informações sobre fatos da vida contemporânea citadas como exemplos de reflexões sobre a reação de cidadãos comuns movida por elementos estéticos que comunicaram emoções, dor coletiva, pathos desencadeado. Recuperam ao mesmo tempo o estado emocional e o imaginário dos destinatários das leituras promovendo identificação.

Estes textos de jornal podem ser considerados como textos da cultura, no sentido atribuído por Iúri Lotman à palavra Texto porque constroem história e memória em diferentes sistemas de sígnos, não apenas o verbal (Cf. LOTMAN. 1996:157-161).

Relatam e modelizam exemplos de situações que confirmam a força de diferentes concepções do signo verbal nas mídias na diversidade de sentidos gerados e produzidos pelos signos verbais terror, terrorismo, no primeiro texto e no segundo, é comunicado o conflito gerado em uma comunidade a partir da interpretação do simbolismo de uma escultura deslocada no espaço urbano.

O primeiro texto: ”Teatro da Violência” (ver Anexo 1), publicado no “Caderno Mais!”, do jornal Folha de S.Paulo, no dia 5 de novembro de 2006, destaca na chamada inicial: “o uso do terror para fins políticos como um fenômeno novo que substituiu o cogumelo atômico no imaginário ocidental”.

A construção do texto apresenta a pluralidade de sentidos adquiridos nas mídias contemporâneas pela palavra terror e outras palavras derivadas como terrorismo e terrorista que, segundo o autor, carregam alto grau de emoção. Ele demonstra como é possível atribuir interpretações opostas ao seu emprego porque “pessoas que aprovam aviolência em prol de causas que desaprovamos são ‘terroristas’, enquanto as que estão ao nosso lado são simplesmente ‘guerrilheiras’, ‘soldados’, ‘policiais’...”. Neste caso, o perigo está na manipulação do imaginário público depois do atentado às torres do World Trade Center.

Em seguida, lemos um retrospecto de situações nas quais o uso do terror se destaca por grupos de militantes de causas públicas, desde Robespierre, enviando ao cadafalso seus adversários, passando pela Al Qaeda, o IRA (Exército Republicano Irlandês) até outros grupos que ele considera personagens de um “teatro do terror” nos anos 1970 com os regimes militares na Argentina, no Brasil, no Chile. Os meios autoritários de imposição de poder, como uma ironia, são usados em sociedades que se consideram democráticas e civilizadas para o apoio de seus valores e ideologias.

Depois destas informações sobre os diferentes significados da palavra terror, o autor compara estes atos a um teatro da violência, uma vez que o mais importante é o efeito dramático que estes atos reportados acabam exercendo sobre os espectadores na TV, ou os leitores dos jornais. Ele cita o fato de que a destruição da Torres Gêmeas e das pessoas que lá estavam no dia 11 de setembro de 2001 foi interpretada, num primeiro momento, por muitos telespectadores como uma performance em uma cena de filme.

O autor se inclui entre elas e considera a política como um melodrama com personagens que fazem o papel de salvadores de seus países ou heróis que lutam “contra o mal”. Entre as situações recorrentes no planeta, entretanto, o uso do terror tornou-se banal como resistência à ocupação estrangeira ou ao domínio de religiões, conflitos entre deferentes etnias, fatores como o preconceito e a intolerância. A dor humana tornou-se banalizada nas mídias depois das derrotas ou das conquistas porque as formas de comunicá-la aos receptores apresentam-na como simples desempenho de personagens de uma aparente representação teatral.

O segundo texto: “Guerras culturais” (ver Anexo 2), publicado em 10 de junho de 2007, no “Caderno Mais!”, no mesmo jornal do exemplo anterior, refere-se a distúrbios populares causados por  leituras paradoxais relacionadas a compreensões opostas da retirada da estátua: “O Soldado de Bronze” de um parque da cidade de Tallinn, na Estônia.


Fig. 1. Distúrbios em Tallinn. Caderno Mais!, Folha de S.Paulo,
10 jun. 2007, p. 8.
Foto: Associated Press, 27 abr. 2007.

O monumento era símbolo da libertação do fascismo no país para os russos e símbolo da incorporação forçosa da Estônia à União Soviética para os estonianos. Os títulos remetem ao estado de espetáculo de jogos ou disputas que os textos mídiáticos atribuem aos seus discursos nas formas de elaborar uma comunicação. Eles sintetizam a gênese de pontos comuns a outros discursos desdobrados e diferentes gêneros de discurso e formatos visuais reiterados em outras seções do jornal.

Neste último caso, as “guerras” não são motivadas por problemas políticos ou econômicos essencialmente, mas partem de uma interpretação de um monumento que encena a memória de um acontecimento. O conflito político assume uma forma visual e dramática. O significado de um ícone é reconfigurado. O monumento encena um acontecimento do passado e a estátua (objeto estético, histórico, estético e político), ao ser focalizada pela possibilidade de deslocamento espacial, toca emocionalmente os habitantes da cidade e adquire o poder de reconstruir na memória coletiva múltiplos significados representativos do pathos social e histórico da comunidade, gerando e comunicando outros sentidos no presente.

O desejo de destruição não é causado pela iconoclastia, mas é uma reação diante de um fato que tocou a emoção e os significados da memória textual dos cidadãos que, embora convivessem na cidade de Tallinn, pertenciam a grupos opostos, estética, emocional  e politicamente distintos e viam a estátua do “Soldado de Bronze” por diferentes pontos de vista.

Cada grupo se manifestou de acordo como a emoção correspondente ao modo como aquele “acontecimento” de linguagem icônica “tocou a sua alma”, seus valores e provocou as reações desencadeadas.


Fig. 2. Crianças mortas durante conflitos em Nairóbi. O Estado de S.Paulo, 6 jan. 2008, p. 2. Foto: Sayyid Azim/AP.

No texto do jornal, o autor se refere a outros exemplos de como a destruição simbólica de monumentos públicos pode significar também o desejo de esquecimento de fatos do passado na história de uma cultura.

Por exemplo, a hostilidade ao comunismo, às ditaduras, por meio da eliminação de imagens ou esculturas representativas, demonstrando o poder destas criações formais de linguagens. Ele afirma, neste mesmo texto, que: “monumentos... são encenações congeladas, parte do que se poderia chamar de encenação da memória”.

O acontecimento de Tallinn referido mostra como uma forma de linguagem visual, inicialmente como significado histórico, político e estético pode se transformar em um motivo para conflitos ideológicos, em uma forma dramática de comunicação movida pelo pathos coletivo quando codificada em formas de representação.

Esses dramas urbanos da vida cotidiana vividos em diversos espaços geográficos do planeta e modelizados em diferentes linguagens (ver Fig. 2 e 3), são  publicados na imprensa e tornam-se quadros midiáticos que permitem compreender os múltiplos sentidos gerados no diálogo comunicado entre as formas de reportar o pathos que caracteriza a  sociedade humana. Registram, resgatam, preservam e geram múltiplos sentidos na memória textual dos produtos midiáticos no universo da cultura e da comunicação.


Fig. 3. Êxodo na Palestina. Folha de S.Paulo, 24 jan. 2008, p. A1.
Foto: Ibbraheem Abu Mustafa/Reuters.

Leia também:
ANEXO 1
ANEXO 2

NOTAS

[1] Trabalho apresentado no VI Congresso de História da Mídia na UFF, ao GT4: História da Mídia Impressa, Niterói, maio 2008.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

DÉBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

BURKE, P. “Teatro da violência”, Caderno Mais!, Folha de S.Paulo, São Paulo, 5 nov. 2006, p. 6.

________. “Guerras culturais”, Caderno Mais!, Folha de S.Paulo, São Paulo, 10 jun. 2007, p. 8.

EISEINSTEIN, S. M. "Les Vingt piliers de soutènement". In: La non-indifférente nature/1. Paris: Union Générale D’Éditions, 1976. p. 141-213.

______________. Memórias imorais: uma autobiografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

FLUSSER, V. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

LOTMAN, I. “La semiótica de la cultura y el concepto de texto”. In: La semiosfera 1: semiótica de la cultura y del texto. Madri: Ediciones Cátedra, 1996. p. 77-82.

________. “La memoria a la luz de la culturologia”. In: La semiótica de la cultura 1: semiótica de la cultura y del texto. Madri: Ediciones Cátedra, 1996. p. 157-161.

RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996.

__________. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2006.

SEGAL, D. M. “O problema do substrato psicológico do signo e algumas concepções teóricas de S. M. Eisenstein”. In: SCHNAIDERMAN, B. (Org.). Semiótica russa. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. p. 235-252.

*Terezinha Tagé é professora da ECA/USP.


Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]