Nº 10 - Jul. 2008
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 

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ARTIGOS
 

Múltiplos códigos no tempo contínuo da televisão

Por Cremilda Medina*

RESUMO

Em programas transmitidos exaustivamente ao vivo, encontra-se uma farta exposição dos códigos não verbais reveladores de significados muitas vezes opostos ao que os protagonistas declaram em público.

Reprodução

PALAVRAS-CHAVE: Representação / Política / Televisão / Cobertura / Transmissão

Para quem não assina a tevê a cabo, uma despesa considerável no orçamento doméstico, não há como recuperar a riqueza informativa da representação de determinadas situações na telinha.

É o caso, por exemplo, das nove horas de programa contínuo emitido pela CNN em espanhol no dia 7 de março de 2008, data da reunião do Grupo do Rio em Santo Domingo, República Dominicana. Ali estavam, sentados à mesa de negociações, presidentes da quase totalidade dos países latino-americanos, à exceção do Brasil, que enviou seu chanceler Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores).

Numa jornada que fugiu inteiramente à rotina da retórica política e das barganhas econômicas, travou-se, aos olhos do espectador, um combate acirrado que as câmaras instaladas na sala – aberta como espaço público – procuraram transmitir em direto.

Raros intervalos, com presença de âncoras jornalísticos, apenas resumiam os conteúdos verbais do tema que eletrizou o grupo: o bombardeio do exército colombiano ao acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a Operação Fênix da madrugada do dia 1º de março.

O caudal de gritos e sussurros, mais gritos que sussurros, foi radicalmente resumido no noticiário da televisão aberta, da rádio, das mídias impressas e da Internet. No entanto, nem mesmo os jornalistas presentes ao evento chegaram perto da pluralidade de códigos em jogo que a CNN mostrava.

A narrativa convencional do noticiário produziu um fato jornalístico, em que a referência – um acontecimento histórico – contemplava sutilezas e contradições do caos dinâmico do grupo presidencial. Os profissionais que cobriam a reunião tampouco estavam preparados para compreender fatores indeterminantes numa situação quase sempre pré-concebida e in-formada por argumentos determinantes.

Nesse contexto, o aperton de manus final foi catalogado como surpreendente virada do jogo ou solução imprevisível.

Nas nove horas de emissão direta, o espectador privilegiado pôde perceber inúmeros focos da representação política. Embora se reconheça que a câmara é também um ator dessa produção simbólica, o esforço contínuo de acompanhar a cena e seus protagonistas oferece um rico itinerário de percepções e interpretações. Os jornalistas e todos os formadores de opinião ganhariam em experiência, ao despender esse tempo de audiência disciplinada.

As oportunidades se sucedem com o espaço democrático da transmissão ao vivo, sem a preocupação de recortar o acontecimento de indiscutível significado para a cidadania contemporânea. No Brasil, as tevês institucionais – sobretudo a do Senado, da Câmara e a da Justiça – têm se mostrado braços de utilidade pública na distribuição de conteúdos políticos ao vivo.

No âmbito dessa distribuição democrática da renda simbólica, não muito distante das nove horas de Santo Domingo, os brasileiros puderam acompanhar as cinco horas da transmissão da sessão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da constitucionalidade da Lei de Biossegurança. Considerado um julgamento histórico, a emissão pública ofereceu outra contribuição para a comunicação social. Há quem tema a presença das mídias nos ambientes fechados antes da presença da televisão, em uma afronta ao direito social à informação.

Muito já se debateu o tema no século passado. Mas a primeira década do século XXI aponta para conquistas inabaláveis da cidadania. Uma delas, que agora se destaca, é a transmissão direta – na medida do tempo real – que já se ensaiou até mesmo em canais abertos e que hoje está presente na tevê por assinatura como nos casos assinalados. Não se podem esquecer as longas sessões de CPIs que ocuparam a tela e o imaginário político brasileiro em 2006 e 2007.

São cada vez mais freqüentes as coberturas em que as mídias tradicionais se reportam às emissões em direto da TV Senado ou, no âmbito externo, da CNN. O investimento profissional e financeiro dessas empresas ou instituições jornalísticas afinal compensa e, pelo menos em acontecimentos de grande repercussão coletiva, dá um retorno compensatório.

A tevê aberta comercial também mostra sinais esporádicos de valorização dos tempos inerentes a certas realidades. Vem à memória, de imediato, o tempo sagrado do coveiro que abriu a cova do cemitério de São João Del Rei, Minas, para ali ser enterrado o presidente Tancredo Neves, em 1985. A TV Globo reverenciou vinte preciosos minutos em que o gesto do coveiro e o som ambiente da terra sustentaram a transmissão.

Alguém teria dito na emissora que tinha de cortar, ou de enxertar a locução de uma voz de âncora? Duvido. Esse foi um momento antológico de representação de um tempo que nega o pique global técnico ou o ditame financeiro da publicidade, time is money.

Pena que o aprendizado da pluralidade de códigos, assim como a pluralidade de tempos e diversidade de espaços não conste da pauta de aperfeiçoamento profissional do comunicador. Exceto em ambientes universitários, alguns de graduação e mais seguidamente em nível de mestrado e doutorado, essas questões correm ao largo da eficiência técnica dos que elaboram as narrativas da contemporaneidade. 

A operação de rotina privilegia redução de conceitos como, por exemplo, esquerda e direita, imperialismo, neoliberalismo, socialismo, populismo, positivismo etc. Verdadeiros clichês da inércia mental, posta a serviço da velocidade das opiniões e das ideologias da moda. Ora esse ciclo vicioso se sustenta exclusivamente de palavras de ordem, o que significa produzir sentidos sobre a realidade em chaves verbais, por sinal, adjetivadas.

Em programas transmitidos exaustivamente ao vivo, encontra-se uma farta exposição dos códigos não verbais reveladores de significados muitas vezes opostos ao que os protagonistas declaram de público. Em Santo Domingo, a leitura de gestos manuais, dos ritos do rosto, da proxêmica (relação do corpo com o espaço) com que os câmaras da CNN brindaram o espectador com um grau de ambigüidade que as frases não contemplavam.

A confiabilidade, o pacto de leitura, ganham com os códigos da representação não-verbal dimensões sutis para a comunicação humana. Na cena, os presidentes em conflito – Rafael Correa, do Equador, e Álvaro Uribe, da Colômbia –, bem como o terceiro que se incluiu no embate, Hugo Chávez, da Venezuela, mostravam sinais incontroláveis que a palavra procura mascarar. A partir do bombardeio simbólico de códigos, a recepção ativa reelabora sua atitude empática ou antipática perante o que se passa na cena.

A palavra persuasiva (ação comunicativa para Habermas) tem efetivamente um papel decisivo na construção democrática. No entanto, o jogo de cena corpo a corpo abre as perspectivas de interação social criadora. Nessa situação fluem sinais não esquadrinhados pela lógica verbal. Os códigos não verbais traem os freios do consciente na negociação política ou na negociação amorosa. Basta lembrar a arte, em que a pulsação inconsciente se rebela contra os cânones.

A literatura, puro código verbal na arte, dinamita a palavra burocrática e explode na palavra poética, ambigüidade metafórica. Mesmo num ambiente que, por excelência, deve controlar o discurso persuasivo como na corte do Supremo Tribunal Federal, quem acompanhou ao vivo o voto do ministro Carlos Ayres Britto, em mais de três horas de leitura, navegou para além das informações e argumentos lógico-analíticos, para se perder e achar nas intuições poéticas que brilhavam em seus olhos e em suas palavras, cuja dicção (fisiológica) mudava de tons e de tempos.

A própria ministra Ellen Gracie, presidente do STF, emite sentidos visuais e proxêmicos que fogem ao disciplinado controle de sua elegância racional. Não foi diferente quando o segundo voto seria proferido e o ministro Carlos Alberto Direito pediu vistas do processo, adiando assim o tão anunciado julgamento da legitimidade da pesquisa com células-tronco embrionárias.

A palavra da ex-ministra (Ellen Gracie deixou o cargo no dia 12 de março) era de quem coordena uma suprema corte com equilíbrio, mas, ao mesmo tempo, assume atitudes corajosas, como a de reforçar a posição de Ayres Brito, e antecipar seu voto pela constitucionalidade da Lei de Biossegurança. A antecipação do voto da magistrada, após o pedido de vistas que de antemão interromperia o julgamento, e mais ainda, o enérgico apelo para que as vistas fossem rápidas em função dos prejuízos das pesquisas genéticas no País, estavam reforçados por um corpo irritado.

A contida ministra não segurou o desassossego e a emissão, no contínuo televisivo, expôs, em direto, preciosas informações não-verbais em defesa da pesquisa científica das células-tronco embrionárias.

Os analistas, cientistas sociais ou jornalistas canalizam tanto diagnósticos quanto prognósticos para a esfera conceitual e argumentativa das lógicas verbais. Cada vez mais se expande esse domínio do aprofundamento da informação. Jornalistas de amplo repertório e experiência profissional dividem os espaços com sociólogos, antropólogos, biólogos, médicos, geógrafos, educadores, juristas, enfim, representantes de todas as correntes da ciência contemporânea.

A coluna, o artigo, o editorial, a autoria opinativa nas mídias, aí incluída a Internet, acentuam a autoria de que assina a análise, o comentário, a posição explícita perante o acontecimento contemporâneo. A arguta reflexão se enriquece toda a vez que o autor usa o argumento cruzado com a experiência viva.

Cabe àqueles que têm contato direto com o mundo e os protagonistas sociais uma sensibilidade sutil que vai além dos parâmetros conceituais ou das convicções ideológicas, para não falar dos achismos dos livre-atiradores.  São os repórteres e os cientistas que vão a campo testar suas hipóteses e descobrir tendências e comportamentos não fixados nas gramáticas teóricas – esses autores podem trazer para as narrativas a contemporaneidade em processo, processo esse regido por regularidades e indeterminações.

leitura do acontecimento busca apreender a dinâmica do caos nos seus múltiplos códigos. Jornalistas que narram o cotidiano e o extraordinário marcam seu texto verbal com notações não-verbais. Um exemplo recente: o relato da imprensa por ocasião da demissão e pedido de desculpas do governador de Nova York, Eliot Spitzer, em 12 de março, não poderia prescindir da narrativa emanada diretamente da tevê e da fotografia nos jornais.

A atitude corporal, o rosto, a comissura labial, as olheiras de Silda, a mulher do governador, diziam muito mais que a palavra oficial do marido, se desculpando para a família (mulher e três filhas) por seus envolvimentos com prostituição.

El apertón de manus de Santo Domingo não seria uma surpresa tão espantosa, se jornalistas e analistas assistissem, por exemplo, à cobertura em direto da CNN-espanhol no dia 31 de dezembro de 2007, quando Álvaro Uribe desmontou, em duas horas de face conturbada, a farsa da entrega do menino Emanuel aos delegados humanitários regidos por Hugo Chávez.

Quem estava lá, na selva, no paraíso prometido para a entrega das reféns e do menino, recebeu com descrédito as palavras enunciadas pelo presidente da Colômbia. A cobertura jornalística e os analistas brasileiros desconfiaram, levaram alguns dias para dar credibilidade a Uribe e ao blefe das Farc.  No primeiro momento, entretanto, a proxêmica, o gestual, o rito angustiado de Uribe na tela na tarde do 31 de dezembro, codificavam uma verdade factual, para os jornalistas um lance político duvidoso.

Também essa emissão deu a oportunidade de conhecer em direto a fala e a presença do comissário da paz colombiano. Luis Carlos Restrepo estava visivelmente na retaguarda de Uribe para relatar a história de Emanuel. Não era apenas uma autoridade, lendo um relatório oficial, era uma pessoa emocionada, tentando apertar os braços num ato de constrição. Para um leigo, mais um do poder constituído, conservador, alinhado ao presidente.

Para quem estuda a crise contemporânea, porém, Restrepo é o autor, entre outras obras, de O direito à ternura (traduzido no Brasil pela Editora Vozes). Nesse livro, o psicanalista e epistemólogo aborda, com contundência, o analfabetismo afetivo da cultura ocidental e detalha a atrofia de nossos sentidos, aqueles que favorecem a relação humana: tato, olfato e paladar. Em palavras sintéticas, andamos por aí, esquizofrênicos sociais, ouvindo o que queremos, olhando o que nos interessa.

Ainda uma vez, o movimento de corpo do apertón de manus: não é por acaso que Uribe e Restrepo são parceiros no cotidiano colombiano. O presidente, sensível e conturbado na reunião do Grupo do Rio, conhece a teoria e prática de Restrepo; levantou-se e atravessou a fronteira de guerra para abraçar (com toque de corpo, não apenas aperto de mãos formal) tanto Correa, quanto Chávez, quanto Daniel Ortega, o presidente da Nicarágua que havia engrossado o mutirão de ataques ao colega colombiano.

O ato culminante que nem será a solução dos conflitos latino-americanos, nem apagará a unânime reprovação à invasão do Equador, ressalta um gesto latino-americano mais eloqüente que as fórmulas diplomáticas ou as farsas políticas dos discursos verbais. Graças ao contínuo televisivo ou graças a repórteres presenciais, sensíveis à riqueza simbólica, a cidadania pode desfrutar do direito à compreensão do acontecimento contemporâneo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAMASIO, A. O erro de Descartes, emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa I e II. Madri: Taurus, 1987.

MEDINA, C. O signo da relação, comunicação e pedagogia dos afetos. São Paulo: Paulus, 2006.

RESTREPO, L. C. O direito à ternura. Petrópolis: Vozes, 1996.

*Cremilda Medina é jornalista, pesquisadora e professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).


Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]