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Opinião - Artigos


Liberdade de imprensa:
concessão feita aos jornalistas
ou um dos direitos do cidadão?


Por Mauro Santayana*

Os jornalistas conscientes de sua condição não podem aceitar esse abominável Conselho - proposto pela Federação da categoria de assalariados que somos - mediante o qual alguns, escolhidos ao sabor das circunstâncias políticas, terão o direito de orientar, fiscalizar e punir os jornalistas.

John Wilkes foi uma das figuras mais controvertidas da Inglaterra, em um dos períodos cruciais do Império, o do reinado de Jorge III, quando estava em curso o movimento de independência dos Estados Unidos.

Membro do Parlamento e dele expulso por duas vezes, condenado à prisão, prefeito eleito de Londres, autor de um livro obsceno "Essay on Woman", paródia pornográfica de "Essay on Man", do celebrado Alexander Pope, Wilkes era detestado pela aristocracia britânica. Mas foi o político mais popular de Londres em seu tempo.

Wilkes foi tudo o que contrariava a boa ordem aristocrático-burguesa da segunda metade do século 18 na Inglaterra. Nenhum outro homem lutou com tanto denodo pelas liberdades políticas, tendo como eixo de seu combate a reivindicação da total liberdade de imprensa.

Wilkes editava seu próprio jornal, que escrevia sozinho, o North Britton, que em seu número 45 foi considerado o mais subversivo dos impressos contra o Rei Jorge III. É preciso lembrar que, naquele tempo, não havia sindicatos de jornalistas, nem registros profissionais, mas - apesar de toda a força da nobreza e da burguesia ascendente - havia alguma liberdade de imprensa.

Liberdade de imprensa não é concessão feita aos jornalistas, sindicalizados ou não, mas um dos direitos do homem e do cidadão. Qualquer pessoa, dentro desse raciocínio, goza da liberdade de imprimir papéis e os distribuir, neles escrevendo o que quiser.

Foi essa liberdade, tolerada antes de ser reconhecida pela Revolução Francesa e pelo "Bill of Rights" da Constituição norte-americana, que possibilitou os grandes debates do Iluminismo e abriu caminho à democracia moderna.

Wilkes não tinha o título de jornalista, como não o tinha tampouco a outra imensa figura daquele tempo, que foi Tom Payne, o principal articulador intelectual da independência dos Estados Unidos com "The Common Sense".

Payne foi também o precursor do "welfare state", em suas obras antecipadoras, entre elas "Rights of Man, Agrarian Justice" e outras. Eles foram jornalistas, como outros cidadãos comuns, porque exerceram o jornalismo. Um deles, Payne, era homem pobre, de origem proletária.

O outro, Wilkes, nascera rico e, quando se viu sem dinheiro, não lhe faltaram admiradores para mantê-lo em sua vida confortável. Em suma: qualquer um, em qualquer tempo, deve ter o direito de imprimir e distribuir o que quiser. Hoje, com a internet qualquer um, com seus blogs, é jornalista.
Vejamos o jornalista como profissional, que recebe seu salário ou sua remuneração como colaborador, e disso vive.

Ele é empregado como outro qualquer, tenha a posição que tiver. Isso me lembra velho companheiro, dos mais respeitáveis da imprensa brasileira, diretor de jornal e íntimo de seu patrão, que se viu demitido de uma hora para outra, sem qualquer indício de que isso ocorreria.

"Descobri que era apenas um empregado, e que o fulano é um patrão" - disse-me em seu desabafo. Como advertem os comunistas, não podemos ter ilusão de classe. Somos empregados, ganhando um pouco mais ou um pouco menos, conforme as leis do mercado e da conveniência política das empresas editoras.

Por isso, precisamos de sindicatos, que defendam os nossos direitos de empregados. Os sindicatos podem ter diretorias de esquerda ou de direita, dependendo das circunstâncias políticas, mas não podem ser sindicatos de esquerdistas ou de direitistas.

Os sindicatos são dos trabalhadores, em sua condição de trabalhadores, e não em sua opção ideológica ou político-partidária - da mesma forma que um presidente da República é o presidente de todos os brasileiros: petistas ou pefelistas, progressistas ou reacionários, católicos e protestantes, devassos ou castos.

Os jornalistas conscientes de sua condição não podem aceitar esse abominável Conselho - proposto pela Federação da categoria de assalariados que somos - mediante o qual alguns, escolhidos ao sabor das circunstâncias políticas, terão o direito de orientar, fiscalizar e punir os jornalistas.

Primeiro, a orientação a que nos submetemos, queiramos ou não, é a da pauta decidida pelas empresas que nos pagam os salários e são donas dos jornais. Podemos discordar da orientação, e por isso, perder o emprego, o que não podemos é contrariar a própria consciência.

Não se adquire a consciência moral em cápsulas, como se adquirem os tranqüilizantes. Nós a adquirimos na dialética do sofrimento, na rebeldia contra a injustiça e na solidariedade para com os outros - quando a adquirimos; se não a temos como um hormônio da alma, não há Conselho que dela nos possa suprir. Somos trabalhadores empregados como outros quaisquer: industriários, comerciários, bóias-fria e vaqueiros. Somos mais dependentes do que os camelôs, quando donos de sua mercadoria e de sua banca de rua.

Para os que defendem a criação do Conselho, iludidos pelo apoio político que a iniciativa recebe, essas reflexões não são agradáveis - mas necessárias. E é bom lembrar que só entre os leitores anônimos podemos contar com alguma admiração sincera.

Os poderosos, salvo alguns, e de modo pessoal - não nos amam. Já é muito quando nos respeitam. E para nos punir, nos crimes de calúnia, injúria e difamação, já é um exagero a Lei de Imprensa em vigor. Basta o Código Penal.

Se se criasse tal Conselho, qualquer jornalista poderia ter o seu registro cassado por meia dúzia de pessoas dependentes de patrões, nacionais ou estrangeiros, de partidos políticos ou do governo.

Esse tribunal espúrio também poderia impedir, pela ameaça ou constrangimento moral, a circulação de idéias e informações, impor a autocensura e retirar dos jornalistas, além do direito ao trabalho, a liberdade de expressão, que a Constituição garante a todos os brasileiros.

*Mauro Santayana é Jornalista, colaborador do Jornal da Tarde e do Correio Braziliense - Secretário de redação do Última Hora (1959), correspondente do Jornal do Brasil na Tchecoslováquia (1968 a 1970) e na Alemanha (1970 a 1973) e diretor da sucursal da Folha de S. Paulo em Minas Gerais (1978 a 1982).

Fonte: Agência Carta Maior - 13.08.2004.

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