Opinião
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A
ética como fator de
resistência no jornalismo
Por
Jorge Claudio Ribeiro*
Embora se relacionem, ética e moral não são
exatamente a mesma coisa. A palavra "ética"
provém do grego ethos e significa "identidade";
moral vem do latim mores e quer dizer "costumes".
Atualmente
entendemos que, enquanto a moral se refere a normas que definem
o bom e o mau agir costumeiro, a ética é uma ciência
da moral pois a questiona ao buscar por quê e em quais
condições determinada ação é
considerada boa ou má, até que ponto ajuda a construir
a identidade de uma nação, grupo ou pessoa.
Ora,
identidade não é algo definitivo, não é
uma substância imutável mas, como tudo o que é
vivo e, mais que isso, humano, passa por fases de amadurecimento,
dúvida, estagnação e plenitude.
Volta
e meia, como agora, a reflexão sobre a ética/identidade
no interior do jornalismo ganha atualidade. No entanto, de forma
perene ela interessa ao avanço das instituições
que devem servir à democracia. A democracia é
um princípio ético fundamental ao afirmar que
todos somos iguais em direitos, deveres e dignidade.
Sem
a democracia, mergulhamos no arbítrio, na barbárie,
no pântano dos privilégios e da corrupção.
Lutar pela democracia é, portanto, participar da construção
de uma sociedade digna em que homens e mulheres sejam respeitados
em sua dignidade.
Espírito libertário versus razões da empresa
Historicamente, a imprensa foi veículo de idéias
e propostas guiadas por um espírito libertário,
de busca da verdade e de denúncia de injustiças.
Ela é qualificada como "estalão do progresso",
"defensora do povo", "evangelho da democracia",
"sagrada indústria". Um dos fundadores do jornal
que hoje se denomina Folha de S. Paulo, Olival Costa, qualificava
o jornalismo como "a maior de todas as advocacias: a defesa
do interesse público".1
Claro
que houve, e há, veículos de comunicação
a serviço dos poderosos do dia: louvamos a contribuição
da imprensa mas pesa sobre ela a permanente suspeita de não
ser uma instituição tão isenta como apregoa.
Ao
mesmo tempo que, no Estado Novo e na ditadura militar, alguns
veículos eram censurados e reprimidos, outros "recebem
as verbas... engordam receitas de jornais, revistas, agências
noticiosas, empresas de propaganda, emissoras de rádio.
Subsídios ao papel e importação de equipamentos
gráficos e de som favorecem os que colaboram com o poder
e douram a pílula totalitária".2
Apesar
dessa ambigüidade, é imperioso que a mídia
sirva à democracia. Ela mesma tem razões até
comerciais para isso, pois se trata de uma imposição
do mercado. Embora a matéria-prima mais óbvia
dos jornais seja papel e tinta, há insumos mais sutis
e bem mais importantes: a atualidade (por definição,
"notícia velha" deixa de ser notícia)
e a credibilidade, seu tesouro mais precioso.
Se
uma empresa distribui produtos ou serviços falsificados
torna-se um caso para a Justiça: o mesmo deveria ocorrer
com um jornal que publica apenas versões oficiais, fatos
sem verificação, impressões, boatos e,
pior, informação falsa (ainda mais que a informação
veraz é o mais valorizado dos insumos econômicos).
Se
um veículo de comunicação assim o fizer,
e for desmascarado, perderá leitores e merecerá
a condenação pública. Mesmo porque a concorrência
está aí para isso mesmo.
Metamorfoses
Como todo organismo vivo, ao longo de sua história o
jornalismo passou por inúmeras metamorfoses.
Assim,
surgiram as Actas Diurnas (diurnalia, daí, jornais) afixadas
nos muros da Roma antiga, os relatórios comerciais manuscritos
das grandes empresas da Revolução Comercial e
a volumosa correspondência de viajantes, espiões
e conspiradores, lida e debatida nos elegantes salões
iluministas, as gazetas semanais impressas a partir de 1609
na Alemanha e chegando ao Daily Courant, primeiro diário
do mundo publicado a partir de 1702 na Inglaterra.
No
Brasil, o Diário do Rio de Janeiro começou a sair
em junho de 1822.
Com
a Revolução Industrial na Europa e EUA e aproveitando
a existência de um vasto público alfabetizado,
ávido de informações e de distração,
cresceram as tiragens dos diários e caiu o preço
do exemplar. A partir do início do século XX,
a imprensa deslanchou como negócio.
Criaram-se
grandes conglomerados e redes: a imprensa passou por uma crise
de crescimento e de ética, apresentando problemas de
sensacionalismo, falsificação de informações
e subserviência política.
Paralelamente
ao processo do jornalismo e mesmo anterior ao surgimento da
imprensa, a identidade (profissional e ética) dos jornalistas,
seus principais agentes, também passou por metaforfoses.
As principais referências foram as figuras do escritor
e do político.
A
atividade jornalística foi tribuna paralela de muitos
políticos e estréia dos mais importantes escritores
(entre nós não faltam exemplos: Cipriano Barata,
Frei Caneca, Rui Barbosa, Machado, José de Alencar, Euclides
da Cunha, Drummond só para citar alguns mais antigos).3
O
jornalismo foi até comparado ao púlpito. Fernando
Pessoa escreve, num jornal, que "a religião e o
jornalismo são as únicas forças verdadeiras;
o jornalismo é um sacerdócio porque tem a influência
religiosa dum sacerdote".4
Essa tradição do jornalista boêmio, criativo,
altamente vocacionado e um tanto subversivo perdura até
hoje no imaginário da sociedade, sendo elemento inspirador
de crescentes contingentes de jovens que procuram a profissão.
No
entanto, instaurou-se uma crise de identidade desde que essa
imagem heróica do jornalista se viu massacrada pelas
empresas. O profissional viu-se ferido em seu íntimo
e em sua atividade sofreu uma metamorfose semântica. O
jornalista deixou de ser "aquele que milita no jornalismo"
para tornar-se "aquele que trabalha num jornal".
Crescentemente
regida por uma lógica empresarial, por procedimentos
industriais e por estratégias comerciais - e não
poderia ser de outra forma, dadas as dimensões gigantescas
do empreendimento e a agressividade da concorrência -
a imprensa e a mídia em geral precisaram enquadrar em
seus métodos aqueles profissionais inquietos e utópicos
que funcionam como a epiderme da sociedade.
Mas
é preciso perguntar: De qual mídia se trata?
A
que democracia serve? Sendo parte integrante do contexto capitalista,
essas empresas encarnam a seu modo os valores da sociedade neoliberal
em que se inserem.
Sua
face-empresa é de tal forma determinante que reduzem
em suas preocupações o fator humano, seja em seus
processos produtivos, seja em seus produtos. Elas precisam funcionar
como uma máquina bem lubrificada e seus produtos resultam
homogeneizados, pouco surpreendentes.
Enquanto
fator econômico, o público apresenta um interesse
de segundo nível para as empresas. Estas "alugam"
seus receptores para a publicidade: a venda do espaço
publicitáiro é responsável por 85% da receita
dos jornais e a venda dos exemplares responde pelos restantes
15%.
Assim,
quanto maior a tiragem ou a audiência, mais se cobra dos
anunciantes. Nesse quadro, a mídia corre o risco de deixar-se
esmagar pelo próprio peso, produzindo materiais de consumo
rápido, sensacionalistas, superficiais e conservadores,
suscitando o tédio e abdicando de sua função
histórica.
Observa-se
crescente despolitização dos jornais, reduzidos
a vitrine de brindes, sorteios, cupons e anúncios classificados.
Ética:
afirmação e resistência
Nesse quadro de avassaladora mercantilização da
imprensa, muitos jornalistas procuram resistir e afirmar sua
identidade, intuindo que também eles correm o risco de
virar mercadoria. Isso ocorre, mediante três processos,
agressivamente autoritários: a coerção
fabrica o medo mediante as demissões, prática
corriqueira e antiga nas redações; o manejo da
tensão em que uma atividade intelectual é reduzida
à mecânica taylorista das linhas de montagem; o
aliciamento, mediante promessas, promoções e estímulos
para quem se submeter à lógica da empresa.
É
expressivo o testemunho de Raul Drewnick, antigo jornalista
do Estado de S. Paulo: "A profissão perdeu o charme;
hoje o jornalista é um profissional como outro qualquer,
que chega, cumpre seu horário e não tem sua atividade
reconhecida.
A
não ser em filmes, sobretudo de Hollywood, na prática
não se vê aquele charme antigo. Quando entrei no
Estado, os repórteres eram consideradíssimos.
A figura do repórter caiu muito. O jornalista que começa
como repórter tem muita desilusão porque não
pode ser como os de antigamente. Ele praticamente passa informação
por telefone, para não atrapalhar o fechamento da edição".5
Resistência
à imposição de valores e procedimentos
considerados inadequados e afirmação das próprias
convicções são duas faces da construção
de uma identidade (ou ética) do jornalista-cidadão.
Essa discussão no cotidiano das redações
é intensa e dá sinal da produndidade do conflito.
Encasteladas
numa sensação de onipotência, as empresas
proclamam que qualquer tentativa de colocar-lhes limites é
censura. Uma vez que a ética tem uma intrínseca
abrangência de universalidade, elas relutam em atribuir
padrões éticos a si mesmas.
Em
função da credibilidade ciosamente cultivada,
elas se apresentam como campeãs da moralidade, pregando
princípios para o restante da sociedade... exceto os
anunciantes. Isso não significa que a mídia não
aceite princípios: em geral, adotam valores médios
do público, isto é, do mercado. Algo como um bom-mocismo
mediano.
Para
com seus jornalistas, a norma das empresas é a da submissão
premiada. No entanto, tenho observado que, para muitos, seguir
a verdade é uma questão de honradez pessoal e
profissional, a qual quase envolve toda a civilização.
Segundo
Adelmo Genro Filho, convicções pessoais ou objeções
de consciência são uma frente de batalha que "pode
e deve ser travada dentro dos jornais e veículos sob
controle da burguesia, a partir do escasso mas significativo
espaço individual dos repórteres e redatores em
relação às editorias, e do espaço
igualmente importante das redações no seu conjunto
frente a diretores e proprietários". 6
Com
freqüência, na ânsia de se sobressair frente
a seus empregadores, jornalistas ultrapassam os limites da ética
quebrando o sigilo das fontes, invadindo a privacidade de pessoas
e inventando acontecimentos. O fato de aceitar a visão
do dono do jornal é considerado uma forma de capitulação
ética em que a pessoa abre mão de sua condição
fundamental de profissional.
Suas
variantes são a falta de empenho em investigar a veracidade
de informações, a preguiça intelectual
e moral, o uso mecânico de fórmulas, o estilo autoritário
de comando frente aos subordinados, o uso do poder emprestado
pela imprensa para arrancar favores.
Mesmo
jornalistas engajados na preocupação ética
caem com freqüência na armadilha de considerar-se
uma espécie de caubóis solitários e juízes
incorruptíveis. Embora a ética profissional e
pessoal se origine de um compromisso pessoal, ela só
se consolida no interior de um processo solidário.
Por
envolver grupos diferentes - leitores, sociedade, empresas e
profissionais - a produção jornalística
deve promover um acordo geral que priorize os interesses da
maioria e a construção de uma democracia que não
seja meramente neoliberal.
Para
ganhar efetividade, a luta quase anônima de jornalistas
e suas entidades, assim como a análise crítica
de cada leitor, deve adquirir uma dimensão política
que crescerá na medida em que a sociedade exigir o aperfeiçoamento
democrático de suas instituições. Dentre
elas, uma das mais cruciais são seus meios de comunicação.
1. RIBEIRO, Jorge C. Sempre Alerta- condições
e contradições do trabalho jornalístico.
São Paulo, Olho d'Água/ Brasiliense, 1994, p.
31.
2.
BAHIA, J. Jornal, história e técnica. São
Paulo, Ática, 1990 Tomo 1, p. 309.
3.
RIBEIRO, J. op. cit. , pp. 19-35.
4.
PESSOA, F. "Argumento de jornalista", in Obras em
prosa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1972, p. 283.
5.
RIBEIRO, J. op. cit., p. 202.
6.
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide- para uma teoria
marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê!, 1987, p.
143.
*Jorge
Claudio Ribeiro é jornalista, editor e professor do Depto.
Teologia e Ciências da Religião da PUC/SP.
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