Listening to/with Mar Paradoxo: Relatos de Escuta

[English version]

[relato a]
Comecei o processo de escuta por volta de 16h30, com fones de ouvido monitores de estúdio (design semi-aberto) em posição de meditação e com olhos fechados. O percurso dentro do álbum foi escutar todas as faixas em sua ordem de gravação (silêncio 1 até o 100, em ordem crescente, e, por fim, silêncios sobrepostos). Por ser a segunda vez que escutei o álbum inteiro, percebi importantes diferenças entre escutar na ordem original das faixas e seguindo o percurso que fiz. A ordem original de faixas, que privilegia a duração das faixas como parâmetro de ordenação (das mais curtas para as mais longas), produziu em mim uma escuta que varia bastante, principalmente no começo, o que, gerou uma dificuldade em entrar no projeto, dificuldade que foi se dissipando conforme as faixas foram ficando mais longas. Ao escutar na ordem de gravação essa sensação diminui consideravelmente. Como entramos em contato com os ambientes e sonoridades por “blocos” e as durações variam bastante, a imersão no projeto me pareceu mais intensa com esse percurso. Durante o processo de escuta, com os olhos fechados e tentando concentrar apenas na escuta (ou seja, sem estar fazendo outra atividade em paralelo), tive a sensação de que os silêncios de Stolf são como molduras para os sons incidentais, mais fortes, que ocorrem no entorno. Molduras que podem ser mais densas, com texturas complexas, ou mais lisas e suaves, molduras que, como em um quadro, podem ser mais rebuscadas ou simples, tirando um pouco da atenção do centro, mas ainda sim “enquadrando-o”, ou privilegiando o “enquadramento” nos sons incidentais do entorno. Notei que o fato de estar com foco na escuta do álbum amplificou minha escuta dos sons do entorno, no início lutei um pouco contra essa escuta do entorno, que me irritava, por estar com um fone semi-aberto em um local que não era totalmente silencioso, até o momento em que a imagem da moldura veio à tona, nesse momento passei a acolher os sons do entorno como parte do processo de escuta. Em alguns momentos, principalmente quando o entorno estava mais silencioso e os silêncios de Stolf eram mais lisos ou menos densos, senti como se emoldurassem os pensamentos. Outra questão que me chamou atenção na escuta da produção de Stolf é que boa parte dos sons submarinos não remete ao clichê dos SFX de Hollywood, o som muffled ou abafado, que têm cortes severos na região dos médio-agudos e agudos. Em boa parte dos silêncios de Stolf a sensação, para mim, foi de estar próximo a uma fogueira, com seus estalos médio-agudos. Fisicamente a empreitada de escutar 1h40 minutos em postura de meditação, imóvel, foi bastante desafiadora. Consegui ficar totalmente imóvel até o silêncio 59, quando abri pela primeira vez os olhos e fiz alguns leves movimentos de alongamento para voltar a circulação nas pernas, logo voltei à postura inicial e assim fiquei até o silêncio 92, quando repeti o processo de alongar e voltei para escutar até o fim em imobilidade. Esse desafio, porém, não foi em vão, já que, com o passar do tempo, conforme a sensibilidade das pernas começou a diminuir, a sensação de escutar o álbum ficou mais interessante. Em alguns momentos parecia que eu estava com parte do corpo imersa em água, ou, em algumas escutas que continham motores, senti a sensação de estar em um veículo flutuando ou voando, desta forma, apesar da dificuldade provocada pelo longo processo de escuta, penso que o desafio produziu uma experiência de escuta mais complexa, que envolveu o corpo, definitivamente com mais nuances do que se estivesse deitado ou sentado em uma cadeira confortável, ou ainda se escutasse o álbum em percursos mais curtos.
[relato b]
Preparação:
Disponho em minha frente todos os impressos contidos no disco, conecto o fone de ouvido no notebook, busco um copo de água.
Escuto: ruídos do serviço de funilaria, cachorros latindo e uivando, o sol que me obriga a apertar os olhos enquanto escrevo.
Visto os fones de ouvido.
Ondas. Trovões. Escuto em cada faixa três ou quatro camadas de sons. Escuto sobretudo os cortes entre as faixas – mas os cortes, eles mesmos, não têm som.
Às vezes há um sussurro no alto, como o vento entrando por uma fresta na janela.
Um sapo: hm, hm.
Quando o sussurro de vento desaparece, o silêncio se acalma.
Escuto enquanto releio o que escrevi. Isso me incomoda, então tento não escutar meus pensamentos.
silêncio costeiro 100: algo está à espreita, algo que me espia fora do enquadramento.
silêncio costeiro 24: silêncio. Quando o mar desaparece.
silêncio costeiro 40: fritando um ovo.
Alguns silêncios têm menos camadas. Alguns são quase homofônicos (97, 85).
Este silêncio eu já conheço: em cima, o sussurro de vento (não tão intenso agora); em baixo, estalos percussivos.
Superfície: sussurro do vento
Camada intermediária: estalos percussivos
Fundo: um sapo gigante
(silêncio costeiro 80)
silêncio costeiro 62 (e 45): soa como a funilaria ao lado da minha casa.
Nova categoria: o ‘silêncio funilaria’.
Não me lembrava desses pássaros (estão no disco ou estão aqui?).
Escrevendo, dou nomes para tudo.
silêncio costeiro 3 e 1: rugosidade com mar ao fundo.
silêncio costeiro 61: duas camadas, como em tantas fotos do horizonte à beira do mar. Metade água, metade céu. A metade de baixo se movimenta (ondas); a outra, apenas oscila.
silêncio costeiro 56: os mesmos elementos familiares, mas com outro timbre. O espaço está mais comprimido.
45 – 20 – 22 – 75: silêncio funilaria – silêncio silencioso – silêncio de mar – silêncio de vento
Cortes radicais: do 45 para o 20; do 75 para o 38.
Os silêncios silenciosos (20, 25) me fazem escutar com mais atenção.
Sinto que o álbum é formado por cinco ou seis paisagens que se alternam. A cada vez que reaparecem, convivemos com elas por mais tempo.
Essas paisagens são formadas por um conjunto de personagens (o vento, as ondas, o sapo, o trovão, os estalos percussivos, a rugosidade, a água corrente). Frequentemente os personagens reaparecem em diferentes paisagens.
Não ouço mar no silêncio ruidoso (55). Alguém procura um objeto em uma caixa de ferramentas.
Silêncio silencioso; silêncio ruidoso; silêncio funilaria; rugosidade com fundo de mar; silêncio de mar; silêncio de vento.
Camadas do silêncio costeiro 74, de baixo para cima: sapo / rugosidade / estalos percussivos / vento
Uma vírgula: um breve silêncio digital marca a transição entre o silêncio costeiro 76 (faixa 100) e os 100 silêncios empilhados (faixa 101).
[relato c]
É como se eu escutasse o som que outros tempos têm. Aqui o tempo é articulado como significado e me leva a pensar em um triângulo, entre tempos, silêncios e sujeitos. Como se nenhum dos três fosse fixo, mas unidos eles construíssem realidades muito fortes e íntegras. Ouço ao mar paradoxo em ordem aleatória e me faço sujeito de outros tempos e silêncios, procurando construir e desconstruir os significados que emergem de cada etapa de minha escuta, ora instintiva, ora elaborada. Me parece curioso como cada silêncio sugere um tempo abstrato diferente. Silêncios densos e rarefeitos, tempos intensos, suaves, breves e lentos. Paradoxos. Aumento o volume, meu tempo mudou. Pois meu tempo tem intensidade e os de mar paradoxo também têm. Polyphlóisboio, como lembraria meu pai. Me pergunto qual a identidade dessa tal physis que se traduz por sujeitos. Será que ela é inanimada, como nós, estes de agora, a concebemos? Ou ela é mesmo uma deusa que faz despertar em nós a sensação de tempo por meio dos sentidos? Seria o som nosso vínculo? Me lembro de que o som é tato também, pois sinto o frio da água pela escuta. Me arrepio. O tempo arrefece, fica mais lento novamente, estou chegando ao fim dessa conversa com silêncios, que é também conversa com a matéria. Ou talvez eu tenha apenas ouvido uma história, sonoro-silenciosa, do tempo.
[relato d]
Escuto o primeiro CD, da primeira faixa à última em sequência. Dentro dessa gama de silêncios, imagino vários mares. Os da Baía de Todos os Santos, o do Rio Vermelho, da praia de Iracema, da praia do Futuro, do Meireles, do Mucuripe. Os silêncios me levavam às costas, aos espigões, aos barcos de pescadores ancorados no porto. Imagino o pouco de mar que eu conheço em Florianópolis e vou misturando aos meus mares mais próximos.
No início da escuta, há muitos planos, muitos cortes, os silêncios são bem contrastantes. Pareço me deslocar para superfícies diferentes desse(s) mar(es). Um momento estou no raso, de repente me encontro no fundo. Ora as ondas me levam, ora me escondo delas nos espigões, nas pedras ou nos barcos.
Eu sou o microfone? Ou eu tento ser a Raquel? Tento localiza-la. Imaginá-la. Onde eu colocaria esse microfone? Onde ela colocou? Que som é aquele? O silêncio agora é mais silencioso e o ruído do gravador emerge.
As águas parecem fogueira. Estalam feito fogo. Meu pensamento corre para vários lados, não consigo me concentrar apenas em um determinado som. Penso no microfone na água - no hidrofone -, penso na água-fogo, nas ondas (se elas me pegariam ou não), nos ruídos contínuos, nas profundidades, no corpo de quem capta(va). Ela capta(va) dentro, fora d’água? As duas coisas, acho. Imaginava que ela não entraria na água. Mas no decorrer da escuta, imagino que em alguns momentos tenha entrado. O pescador também entra na água para pescar. Ela pesca, pesca silêncios. Esses silêncios, ao contrário dos peixes, não entram pela minha boca, mas pelos meus ouvidos, no apartamento, em frente ao computador, almejando ser o corpo que capta esses sons que ouço ou o próprio hidrofone, empurrado, pressionado, arrebatado, acalentado pelas águas.
Os planos vão se tornando “planos-sequências”. As cenas agora são mais longas. Fico mais relaxada, já que as próximas faixas são mais longas que as anteriores. Chego nos silêncios sobrepostos. Não me assusto tanto quanto nos cortes secos dos áudios mais curtos. Acho que já estou preparada para reescutá-los nesse empilhamento. A “cama” dos silêncios mais longos também não deixa os cortes secos tão nítidos como antes. Os silêncios empilhados não me parecem tão interessantes quanto foi escutar a sequência de planos curtos com os cortes secos.
[relato e]
Relato de escuta - Silêncio costeiro 4, 61, 42 e 51.
quinta-feira, cinco da tarde, 18 graus. escuto uma moto no panorama da direita para a esquerda, mas ela não vem dos dois falantes de dentro do meu fone de ouvido. Deles saem outro movimento diferente de um pan, agora é preenchimento, o som filtrado de uma onda me inundando. Eu estou num quarto de trabalho que divido com meu companheiro que está sentado à minha direita e de lá se somam sons de cadeira rangendo e vez ou outra, avisos sonoros de whatsapp que me levam sempre para fora do meu fone. As ondas batem nos meus ouvidos, mas quando espero que elas continuem, um corte, próxima faixa. Um minuto não é suficiente para me fazer mergulhar.
Pronto, silêncio costeiro 61 e depois 42, esse me lembra estalidos de fogo e água fervendo. Mas isso não é possível! É um hidrofone, oras.
[relato f]
Preparação:

Escuto as faixas do álbum enquanto resolvo um problema burocrático da minha profissão. Há oito abas abertas no navegador. Eventualmente volto na aba em que estão hospedadas as gravações, toco e faço anotações. As gravações são fragmentos: minha escuta é fragmentária e acho isto justo. Minha escuta desses fragmentos é flutuante, e acho isso justo, no sentido de praticar uma conduta de escuta que entendo ser adequada à situação. Uma escuta fragmentária de um objeto fragmentário.

Silêncio costeiro 2: um caminhante faz uma trilha sobre um chão de pedras.

Silêncio costeiro 8: aguinha pequena e baldadas de água.

Silêncio costeiro 9: Em frente a uma casa dessas de beira de estrada. Alguém joga baldes de água em um pequeno córrego.

Silêncio costeiro 14: Esqueci o gravador do celular dentro do meu bolso.

Silêncio costeiro 17: Mexo meus pés ou mãos na água. Carros passam ao longe.

Silêncio costeiro 31: Lux Aeterna do Ligeti. Vem aí o monolito negro e pousa próximo a este córguinho.

Silêncio costeiro 40: Próximo a um computador barulhento, tento abrir uma embalagem de plástico pouco simpática.

Silêncio costeiro 58: resolvi curtir o som dos meus dedos clicando nos botões da interface do gravador de mão.

Silêncio costeiro 66: E a agulha do fonógrafo corre sobre o cilindro de cera.

Silêncio costeiro 72: Beira de estrada. Carros passam por mim enquanto peço carona. Ajusto o microfone.

43. Estou numa sala com máquinas ao fundo, alguém mexe em um pedaço de plástico perto de mim.

64. Alguém abre e fecha uma torneira com boa pressão. Raspa e raspa. O som é tátil.

78. Água. A água respira.

96. Água um pouco mais agitada. Passa um carro.

Silêncio costeiro 34: Drone médio agudo e eventos táteis.

Silêncio costeiro 64: Drone alto e eventos táteis.

Silêncio costeiro 46: Drone médio-agudo, eventos táteis e percussão contínua.

Silêncio costeiro 52: pedrinhas miudinhas batendo umas nas outras. Ou então: a agulha de um fonógrafo sobre o cilindro de cera.

Silêncio costeiro 98: Trilha sonora de ficção no gênero horror. Estou assistindo à TV, e neste episódio, há momentos decisivos da série.

Silêncio costeiro 62: outra cena da mesma série de ficção de gênero de horror. Ou outra cena fr outra produção, mas composta pelo mesmo sound designer.

Silêncio costeiro 100: Estou sozinho na cozinha aqui de casa. Não sei se faço outro café ou não.

[relato g]
{Na semana anterior}
Naveguei por todo o álbum Mar Paradoxo. Retenho bastante dessa experiência. Também li o texto The Noisy-Nonself e assisti o documentário My Octopus Teacher. Aquela quimera bípede e aquele polvo-fêmea não me saem da cabeça.

{Dia 1}
Caminho pela praia com a água na altura dos tornozelos. Escuto, olho, cheiro, sinto, estou no mar. Tiro do bolso o celular, abro o aplicativo de gravação e começo a falar sem qualquer preparação ou direção, meio que à deriva.

“é bem difícil imaginar que o mar possa ser algo silencioso
essas ondas branquinhas
ruído branco
tantas frequências, tantas intensidades
eu não consigo pensar no mar como um lugar de silêncios
talvez essa totalidade, essa imensidão
visual, sonora, tátil
um preenchimento tão grande que beira o silêncio?
o silêncio como cheia, não como vazio
tudo o que habita o mar, todo um universo subaquático
cheio de cores, cheio de sons, cheio de formas, de movimentos
a gente desconhece as profundezas
várias criaturas
muitas que a gente nem nunca viu
o que a gente escuta? o que a gente não escuta?”

(Transcrição de excertos do áudio feito caminhando na praia)

{Dia 2}
De volta à praia, caminho novamente pela beira do mar. Escolho a faixa 30 do segundo disco - uma das faixas que mais me intrigaram - e a coloco em loop. Me esforço para mixar o som do mar onde estou (mas que escuto do lado de fora, com os ouvidos secos) com o som do mar onde não estou (mas no qual pareço estar com os ouvidos mergulhados). Dentro, fora, aqui, lá. Acelero um pouco a caminhada, percebo o ritmo da minha respiração. A certa altura, alguma coisa na areia me chama atenção. De súbito, paro e abaixo para verificar: uma espécie de concha, está quebrada. Em pouco tempo me percebo engajada em coletar pedaços, fragmentos, restos, rastros de criaturas que habitam o mar. Me envolvo nessa tarefa até me cansar dessa escuta-ação. Levo comigo uma pequena coleção de vestígios costeiros e elejo um deles como Silêncio Costeiro 74.

Fig. 1 - Coleção de vestígios costeiros
Fig. 2 - Silêncio Costeiro 74