Inerte

A INVESTIGAÇÃO

A experiência de uma espectadora que ante o descortinar de um acontecimento teatral se depara com a angústia suscitada pelo desconhecido, o que está prestes a ser revelado. A trajetória desta personagem é apresentada a partir da rememoração de cenas de sua existência, e de momentos vividos, ansiados ou ainda imaginados de sua experiência com o teatro.

Este Instável Núcleo de Estudos de Recepção Teatral surge, assim, da vontade comum de seus integrantes de compreender e refletir acerca da atividade do espectador em sua relação com a obra teatral, viabilizando encontros em que se propõe um debate, convidando os participantes a se debruçarem sobre o papel do espectador ante a experiência artístico-teatral e, ao mesmo tempo, a análise de aspectos do fazer teatral e as suas possibilidades de atuação na vida contemporânea.

Partindo da angústia do espectador frente ao universo desconhecido de um encontro teatral que está a ponto de começar, procuramos investigar autores que possam nos trazer elementos de reflexão tanto sobre o movimento interior que gera esse sentimento, como sobre os vários momentos que compõem a experiência estética a partir do confronto entre os que se colocam em cena e aqueles que estão na sala.

Neste ponto, nos debruçamos sobre o Seminário. Livro X, de Lacan (2004), que, como destacado acima, ao apontar a angústia como aspecto primordial da relação do espectador com o que será apresentado em cena, nos indica pertinente linha de análise acerca da experiência teatral, o que procuramos desdobrar em nossa construção cênica. A angústia tomada não como uma emoção, mas como algo fundamental, primário, que não pode ser recalcado, e que se manifesta como anunciação de que há algo relevante que está prestes a ser revelado. Como em um processo de análise, o que se revela para o espectador, no momento em que se “abrem as cortinas”, não são significados prontos, mas significantes prenhes de sentidos possíveis, e que solicitam o esforço interpretativo do observador.

Na tentativa de compreender a atitude proposta ao espectador teatral enquanto experiência pedagógica, recorremos ao enfoque sutil presente na alegoria benjaminiana (Benjamin, 1993), que sugere que o ouvinte de uma história - ao ouvi-la, compreendê-la em seus detalhes e empreender uma atitude interpretativa - choca os ovos da própria experiência, fazendo nascer deles o pensamento crítico. A imagem de chocar os ovos da própria experiência está relacionada com a idéia de que o espectador, para efetivar uma compreensão da história que lhe está sendo apresentada, recorre ao seu patrimônio vivencial, interpretando-a, necessariamente, a partir de sua experiência e visão de mundo. Ao confrontar-se com a própria vida, nesse exercício de compreensão da obra, o espectador revê e reflete sobre aspectos de sua história e os confronta com a narrativa, chocando os ovos da experiência e fazendo deles nascer o pensamento crítico; analisando a narrativa, interpretando-a, e também acerca de sua história, do seu passado, revendo atitudes e comportamentos, estando em condições favoráveis para, quem sabe, efetivar transformações em seu presente, e - levando-se em conta a perspectiva de um processo continuado de exercício de sua autonomia crítica e criativa – assumindo-se enquanto sujeito da própria história, tornando-se capaz de (re) desenhar o seu futuro.

O nosso processo de investigação acerca da recepção teatral tem nos colocado em diálogo permanente com os textos de Jauss (1978), que nos permitem vislumbrar que a leitura é algo que não se fixa, não se engessa, mas que está em permanente construção. E que pode ser constantemente revisto, revisitado. Tanto a leitura que o artista (como espectador) faz de seu próprio trabalho, quanto a leitura que o espectador (como artista) faz da obra de arte, ou de lances contidos em um trabalho artístico. Os encontros propostos pelo iNeRTe, assim, tentam se configurar em uma reunião de espectadores que, como artistas, analisam e (re) inventam possibilidades de compreender o ato teatral, a partir do ponto de vista do receptor.

Investigamos, ainda, a teoria estética de Mikhail Bakhtin que, em suas reflexões acerca da criação artística - mais particularmente em seu ensaio intitulado O autor e o herói (1992) -, define e analisa a atitude do contemplador em sua relação com uma obra de arte.

O sujeito da contemplação (o leitor, o espectador), comenta Bakhtin, ocupa um lugar único na existência, o seu ponto de vista é singular e intransferível. A insubstituibilidade do meu olhar, do lugar que ocupo no mundo, me permite uma produção única, “porque neste lugar, neste tempo, nestas circunstâncias, eu sou o único que me coloco ali, todos os outros estão fora de mim” (Bakhtin, apudZoppi-Fontana, 1997, p. 117). Ou seja, cada contemplador da obra participa do diálogo com o autor, e compreende os signos apresentados na obra artística, de maneira própria, de acordo com a sua experiência pessoal, sua trajetória, sua posição na vida social, seu ponto de vista. Assim sendo, o sentido de uma obra é inesgotável.

Podemos compreender, ainda, que o contemplador, em seu ato de elaboração do sentido presente nos signos utilizados pelo autor, pode ser visto como um co-autor da obra. Deste modo, podemos tomar esta concepção particular da obra, articulada por cada receptor quando formula uma interpretação da mesma, como um ato de criação. Ou seja, o fato artístico solicita que o indivíduo formule interpretações próprias acerca das provocações estéticas feitas pelo autor, elaborando um ato que é também autoral. Assim, o contemplador, para desempenhar o papel que lhe cabe no evento, precisa colocar-se enquanto sujeito, que age, pois a contemplação é algo ativo, e que cria, pois a sua atuação é necessariamente artística.

A atitude do espectador diante de uma cena teatral pode ser compreendida, ainda segundo Bakhtin, como uma tensão constante entre ele e a obra: em um primeiro movimento, o espectador se aproxima da obra, vivenciando-a, para, em um segundo movimento, afastar-se dela e refletir sobre a mesma, compreendendo-a. Ou seja, ao se relacionar com a cena teatral, no momento dos atos de contemplação, o espectador se aproxima do mundo vivido pelos personagens de uma determinada história criada, ou se lança no interior do universo ficcional criado pelo autor. Depois, ele retorna a si mesmo, ao seu “lugar na poltrona”, para completar o horizonte com tudo o que descobre do lugar que ocupa, baseado na sua ótica, no seu saber, no seu desejo, no seu sofrimento pessoal, na sua experiência.

Assim, a fusão com o horizonte interno da obra não se constitui no objetivo principal da experiência artística; neste primeiro movimento do espectador, em direção ao universo interior da obra, a atividade propriamente estética nem sequer começou. O contemplador só engendra um ato estético no momento em que compreende o todo do acontecimento representado - que implica um ponto de vista externo à obra -, retomando o seu ponto de vista, que lhe possibilita uma dimensão única do acontecimento, e efetuando uma interpretação particular do mundo narrado.

Ao afastar-se da obra, olhando-a do exterior, o espectador, sujeito da contemplação, adquire condições para uma abordagem estética da existência interior da cena e para estruturar o seu entendimento do todo. Distante dela, o espectador pode completar o seu ato, que solicita uma relação ativa com a obra, um ato de criação, pois “o todo estético não é algo para ser vivido, mas algo para ser criado” (Bakhti, 1992, p. 83).