Carmina Burana notas de programa (Carmen Helena Téllez)

Carmina Burana: um concerto alegórico

Vejam o texto em que a professora Carmen Helena Téllez explica sua concepção artística para os concertos desta semana

Carmina Burana – Notas de programa

Carmen-Helena Téllez

O evento desta noite pode ser definido como uma apresentação alegórica ilustrada de uma composição muito popular, ainda que misteriosa. Carmina Burana é a obra mais conhecida do controverso compositor alemão Carl Orff. Com sua famosa abertura “O Fortuna” utilizada em diversos filmes e comerciais e seus empolgantes ritmos sobre sexo e jogos de azar, Carmina Burana é apresentada praticamente todos os dias, em algum lugar do planeta. Ainda assim, o compositor considerou essa composição como a mais obscura e enigmática das suas obras. Esse comentário do artista abre a possibilidade de que Carmina Burana possa ser uma máscara para uma mensagem subjacente.

As pesquisas recentes sobre Orff e sua obra focaram na sua conivência com o regime nazista e na sua omissão em prestar ajuda ao seu amigo e colega, o musicólogo Kurt Huber, quando este foi preso por liderar o movimento de resistência “Rosa Branca”. O persuasivo filme de Tony Palmer, O Fortuna, assim como os convincentes escritos de Kater, Fassone, Taruskin e outros sugerem que Orff mentia e, alternadamente, sentia-se atormentado por essa questão. Apesar de nunca ter sido provado que Orff era um membro do partido nazista, ele hoje é visto como um carreirista perspicaz, um homem tomado pelo “sacro egoísmo” de artista, que apesar de ser julgado por alguns como conservador e indigno por ter se vendido, é respeitado por outros como uma figura influente nos campos da educação musical e da música para cinema.

Os textos e a inspiração para Carmina Burana surgem de um manuscrito medieval de mesmo nome, encontrado na Abadia de Benediktbeuern, na Bavária. É uma coleção de canções e poemas escritos entre os séculos XI e XIII em latim, alemão, francês e outras línguas, por goliardos – universitários itinerantes da época. Hoje, a Carmina Burana medieval alcançou o nível de símbolo da unidade europeia, por representar um tempo em que acadêmicos facilmente viajavam de região para região, todos falando latim, mas ao mesmo tempo preservando e disseminando a cultura vernácula. Entretanto, é pouco provável que Orff tenha se empolgado com esta ideia em 1937, ano em que a obra foi composta e estreada. Em vez disso, esse projeto representava seu interesse na música antiga.
Orff classificou Carmina Burana como uma coleção de “canções seculares para cantores e coros, para serem cantadas junto com instrumentos e imagens mágicas”. Esse subtítulo levou a muitas produções cênicas de Carmina Burana, frequentemente como balé. A produção de hoje não seguirá esse caminho: ela deve ser considerada como um concerto que demonstra os símbolos e alegorias sugeridas por pesquisas sobre Orff e por comentários do próprio compositor. Na forma de emblemas medievais, os textos originais representam um tipo de inscriptio, o significado evidente, enquanto nossa interpretação aparece como um subscriptio, a revelação de um conteúdo mais abrangente, embora escondido.

A produção não representa a vida de Orff mas, usando suas experiências como exemplo, medita sobre o terrível destino de artistas vivendo em um regime fascista. A crueldade desse destino, para o artista, pode ser não apenas o exílio, o ostracismo ou pior, mas também o fato de que uma necessidade de aquiescência pode destruir a sua alma.

Carl Orff diz no filme de Palmer, O Fortuna, que “ onde você nasce e quando você nasce é tudo”. Em outras declarações ele também revelou sua crença em que o mundo é tudo o que existe, e que depois deste mundo, não há nada. Essas ideias são bastante consistentes com interpretações esotéricas do significado da Fortuna, como uma das cartas do Tarô, e como um difundido emblema em manuscritos da Idade Média, incluindo a Carmina Burana. O professor da Universidade de Indiana John Woodcock comentou que a lição a ser aprendida é que estamos todos andando sobre a Roda da Fortuna, que inexoravelmente sobe e desce, e nós dançamos em seu topo da melhor forma que conseguimos. Além disso, os emblemas insistem em que a Fortuna é cega e que o homem que a seguir será levado por um mal caminho. Destes significados empíricos podemos prosseguir para significados mais metafísicos, como a Fortuna significando os grandes ciclos do universo, e por extensão, o karma. Essas interpretações podem explicar porque o famoso exordium da obra, o refrão “O Fortuna”, tem um caráter sombrio e premonitório, contrastando com a sensualidade orgiástica demonstrada no resto da peça.

Carl Orff considerava-se um herdeiro dos mitos da humanidade e das mensagens arquetípicas da tragédia grega. Ele fez versões de Édipo e Antígona, assim como de um conto dos irmãos Grimm, Der Mond (A Lua). Na verdade, entre todos os símbolos presentes em seu trabalho, a Lua é o que aparece com mais frequência. Sua Carmina Burana abre com uma referência direta à Lua e, nesta produção, a Fortuna e a Lua tornam-se permutáveis. Em interpretações arquetípicas, assim como no Tarô esotérico, a Lua representa o feminino, o inconsciente, a relação com as massas e a decepção.

Apesar de esta produção não ser uma biografia de Carl Orff, uma pequena referência à sua experiência pessoal está inserida no segundo quadro. Sabe-se que o musicólogo Kurt Huber ajudou Orff em sua composição e na pesquisa para Carmina Burana. Seu sacrifício como líder do movimento Rosa Branca, somado ao sacrifício de sua aluna Sophie Scholl é oferecido aqui como uma representação do sacrifício de todos aqueles que lutaram pelo resgate do verdadeiro espírito alemão e de todos aqueles que sofrem sob regimes autoritários de todas as vertentes políticas. Somos gratos ao especialista Jud Newborn por sua pesquisa sobre esse trágico estágio da história europeia.

(Tradução: Rafael Igayara da Silva Ramos)

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